Este episódio contém narrativas de gatilho e de conteúdo sensíveis que podem causar desconforto:

abuso infantil físico e psicológico /  confusão mental /  alusão a relacionamento interpessoal aluno-professor / automedicação / linguagem imprópria / luto materno / menção a suicídio

13 de março, 2017, segunda-feira

— O trauma, podemos assim dizer, é alguma coisa próxima a uma jornada no tempo. E no instante em que é ativado por um evento qualquer, uma memória ou um sentido, o paciente de pronto é levado para a ocasião que lhe causou a lesão psíquica.

Júlia Mathias faz uma pausa para beber um pouco da água disponível na mesa à sua frente enquanto segue examinando os rostos dos ouvintes que atentamente a observam de volta. Alunos da residência médica em psiquiatria forense que praticamente venderam a alma para estarem ali, participando daquela palestra, daquela aula expositiva — uma atividade cada vez mais excepcional na vida profissional de Júlia, doutora Júlia Mathias, conceituada na comunidade psiquiátrica e psicológica, responsável pela equipe de capacidade e sanidade para processos criminais de um centro de Saúde Mental que é referência em todo o país.

— Episódios de abuso emocional ou físico, durante a infância, por exemplo… — Júlia retoma a palavra. No semblante, uma expressão solene e determinada — Deixam terríveis sequelas psicológicas, comprometendo o desenvolvimento de um indivíduo drasticamente, interferindo em seus relacionamentos interpessoais e aprisionando-o em sua mente, apesar do cérebro, muita das vezes por “sentir-se culpado”, acabar criando um mecanismo que se encarrega de proteger esse individuo das suas lembranças mais traumáticas, isolando-as e separando-as para que não gerem emoções demasiadamente intensas e difíceis de suportar. E uma boa parte dessas recordações acaba esquecida, enquanto outras, as mais vigorosas, permanecem apenas dormindo, anestesiadas, causando um dano muito grande quando reaparecem, possivelmente depois de um estímulo desencadeador ou até mesmo por uma tensão crônica.

Júlia se aproxima do seu notebook e num clique rápido e sutil, avança para o próximo slide: a imagem estampa um rosto feminino, sobreposto a outros rostos, que são da mesma jovem, contudo, cada um deles carregando uma expressão diferente, humores variados. Dentre essas faces, há duas delas com traços masculinos cujos semblantes também se destacam com suas próprias emoções.

— No caso do TDI… — Júlia se volta para a imagem — O transtorno dissociativo de identidade, o cérebro, a fim de proteger o indivíduo de alguns traumas terríveis, de experiências extremamente prejudiciais, divide, fragmenta a identidade dessa pessoa para que ela consiga viver, ou sobreviver, pois decerto não suportaria lidar com os danos — ela retorna para os residentes — Um exemplo. Paciente B surgiu para que paciente A não sofresse, não vivenciasse determinado ato de violência. A e B vivem no mesmo corpo. E sim. É uma ideia bem subjetiva. E apesar de viverem no mesmo corpo, essas personalidades têm diferentes memórias, diferentes temperamentos, diferentes comportamentos, diferentes idades, diferentes experimentações e até mesmo o sexo oposto ao do paciente hospedeiro.

Júlia caminha, poucos passos, para o lado oposto ao notebook.

— O principal sintoma de um portador de TDI é a amnésia. Enquanto uma personalidade está no comando do corpo, a pessoa pioneira e as demais personalidades, caso haja outras, algumas delas cisões de personalidades anteriores, ficam de fundo, como se estivessem adormecidas. Ou seja, há fragmentos que ignora o que se passa no seu psiquismo, registrando tão somente eventos ocorridos consigo mesmo, à medida que outros assistem conscientemente a tudo, registrando inclusive pensamentos alheios em suas próprias memórias e compartilhando experiências com outras.

A psiquiatra inspira forte e profundamente.

— Há também casos em que algumas personalidades não se manifestam com frequência ou nunca se manifestarão até determinada ocasião. Mas isso não significa que não estejam nesse corpo, nesse “condomínio”. Algumas até mesmo seguem aprisionadas nos porões do inconsciente, contidas, por vezes contrariadas, nos bastidores do psiquismo do paciente hospedeiro.

Ela retorna ao notebook mudando a imagem atrás de si, que agora oferece o retrato de um rapaz; o rosto devidamente camuflado a fim de não expor sua identidade.

— Esse… — Julia passa a alternar a atenção entre o slide e a plateia — É o paciente Y. Ele tinha cerca de sete anos e sofria abusos psicológicos e físicos constantes por parte de seus pais. Não tinha irmãos e, solitário, fazia companhia a si mesmo, brincando, rindo, conversando, mas com um amigo imaginário, Claus. Durante muito tempo foram somente ele e sua imaginação fértil. Os anos se passaram e Claus simplesmente desapareceu. Contudo, novos amigos imaginários apareceram, até que o paciente Y percebeu que não eram somente imaginários, afinal, havia crescido com essa dissociação, com sintomas que considerava normais, pois nenhum deles, dos sintomas, implicava em qualquer mudança em suas experiências subjetivas.

Júlia Mathias pausa antes de prosseguir enquanto, com um breve sorriso e um rebuscado aceno com a cabeça, sinaliza para que um aluno, que acabara de levantar o braço, possa se expressar.

— Doutora, não há critérios muito bem definidos para identificar, determinar o TDI em pacientes com estresse pós-traumático, correto?

— Sim. Por isso a necessidade de intervenções nos pacientes de forma elaboradas, prolongadas e manuseadas com prudência e senso clínico.

— Até pouco tempo esse diagnóstico era feito exclusivamente por exclusão, não é doutora?

Júlia responde meneando a cabeça positivamente.

— Então… — o aluno ajeita sua postura antes de prosseguir — Esse paciente Y poderia ser portador de esquizofrenia com característica paranoide?

— Sim — Júlia responde finalmente e sem pressa, apoiando-se à borda da mesa ao passo que ato contínuo olha para a porta do auditório, onde está parado um funcionário da secretaria da universidade, antes de voltar a encarar o participante indagador — Mas diferente do esquizofrênico, que ouve vozes e tem dificuldade de diferenciar o que é real ou não, de pensar claramente e reagir normalmente em relações sociais, o paciente dissociativo tem quase sempre uma capacidade razoável, um juízo da realidade do que o outro poderá pensar que se passa em sua cabeça.

Júlia Mathias retorna na direção da porta e após uma rápida troca de olhar com o funcionário ali parado, dispensa os participantes para um coffee break de vinte minutos. Já completamente sozinha no auditório, se senta à mesa e confere o display do seu celular. Entre algumas ligações profissionais e duas chamadas perdidas de sua mãe, que certamente vai reclamar do por que não se falarem ao telefone já há dois dias, está uma mensagem da companheira com quem convive há cinco anos.

Amei as rosas. Obrigada!

Te amo!

Júlia deixa escapar um longo suspiro enquanto navega pela decisão entre ligar ou não para Gabriela, afinal, a amada está completando 50 anos. Mas acredita que talvez seja melhor deixar para depois, quando terminar a palestra, e já no hotel. É o primeiro aniversário, tanto de uma quanto da outra, que passam distantes desde que começaram a relação, Júlia certifica-se, um tanto inquieta. Mas não podia ter deixado de atender ao pedido de um velho amigo, o reitor daquela universidade, uma pessoa que a ajudou e muito no começo da carreira.

Amanhã comemoraremos e muito.

I love you too

Júlia termina de conferir sua breve mensagem antes de enviá-la e logo em seguida inclina o corpo vagarosamente até o recosto da cadeira ao mesmo tempo que cruza as pernas. Talvez tenha sido providencial aquela pequena viagem. Um hiato de dois dias para que ela e a companheira pudessem respirar e refletir sobre os campos opostos que tomaram, ao menos num primeiro momento, sobre a questão do paciente recém-chegado ao Manicômio Judiciário, no Rio de Janeiro, emocionalmente instável e sob a acusação de triplo homicídio.

23 de agosto, 1976

Camiro entrou na sala de aula um tanto alterado. Por um instante não parecia o professor de geografia a que todos da classe estavam acostumados; não parecia o professor por quem eu havia me apaixonado. Sua agitação era perceptível e ele não fez questão nenhuma em disfarçar. Não sei se foi de maneira proposital ou algo realmente havia fugido do seu controle. Não deu sequer nem um bom dia e manteve-se em completo silêncio enquanto distribuía sobre a mesa, com uma determinação extrema, os seus papéis, seus livros e o diário de chamada para logo em seguida se sentar, praticamente deixando o corpo despencar sobre a cadeira, quase um peso morto, mergulhando sem demora o rosto entre as mãos e permanecendo dessa forma por um curto período, o suficiente para me deixar muito, muito angustiado, com uma vontade absurda de me levantar e ir afagá-lo, perguntar o que estava acontecendo…

Seus olhos grandes, hipnóticos, pareciam desprovidos de vida, impenetráveis como vidro quando levantou a cabeça para nos olhar, perscrutador, como se estivesse buscando algo, alguém ou sabia-se lá o quê, até que de repente falou… Não… Na verdade, pareceu mais uma confissão… Sim. C. disse que gostaria de estar ensinando filosofia, ajudando-nos a pensar, a questionar, a sermos critico. A não aceitar todas as merdas que estavam sendo ditas, impostas…

Não entendi o que ele quis dizer. Nem eu e nem ninguém da turma, eu acho. E o professor C. também não se deu ao trabalho de explicar. Num estalo deixou de lado a carranca e mudou a expressão, forçando um sorriso, cavando um caminho para encontrar a serenidade perdida e logo em seguida tudo voltou ao normal. Sim. Ele “estava” de volta. O meu professor C. estava de volta. E quando olhou para mim os seus olhos brilharam; tenho certeza. Não foi impressão, não foi.

— Vocês todos se chamam Lucas? É isso mesmo?

Lucas repete sua pergunta, agora num tom mais enérgico, para a dúzia de jovens seminus, envoltos tão somente com uma toalha em suas cinturas e uma gravata sobre o torso, que seguem espalhados à sua frente, observando-o com admirável surpresa.

— Cada um de nós — completa um deles, orgulhoso — Sem exceção.

Lucas, ainda com grande parte do corpo imóvel sobre a cama, meneia a cabeça, confuso, inspirando e expirando fundo, bem fundo e sem pressa, enquanto tenta manter uma respiração, uma maldita respiração consciente e controlada.

— E você, acredito, também se chama Lucas, não é mesmo? — indaga outro deles.

— O que é tudo isso? Por que vocês estão seminus? Por que essas gravatas penduradas no pescoço? — Lucas pergunta, engolindo em seco ao tempo que mais uma vez se esforça para se mover, outro gesto, outra tentativa inútil — Onde estou? Estou num maldito pesadelo? Ou estou morto, é isso?

— Como o Lucas já havia dito… — se manifesta um jovem que estava sentado e que se coloca de pé conforme ajeita a gravata sobre o torso nu, respondendo depois de apontar rapidamente para um dos seus companheiros — Não teremos respostas para todas as suas perguntas, mas acreditamos que estamos aqui pelo mesmo motivo — ele apruma a postura já ereta antes de continuar — O de desejar algo que não tem e que depois de se ter, ou acreditar ter, não desejar mais…

— Por medo… — arremata outro que estava próximo à fileira dos discos de vinil — Um medo intenso e irracional de assumir a verdadeira essência. Um medo que só aumentou com o passar dos anos.

Lucas, na cama, começa experimentar cada vez mais uma sensação de desorientação que vai se espalhando por todos os recantos do seu ser na mesma proporção que segue ansiando pela liberdade daquele estado de confusão, daquele lugar estranho em que se encontra ladeado por um grupo de rapazes que jamais viu na vida. Em contraponto, estranhamente sente-se incapaz de se desligar daquele campo magnético. Sim. Um campo magnético que lhe acarreta inesperadamente uma sensação de duplicidade e até mesmo multiplicidade difícil de compreender, somada à impressão de não pertencimento de ser quem era ou quem deveria ser, ao passo que sua mente vai sendo dominada por um sem-número de sensações, algumas delas desconhecidas por completo, como se pertencessem de fato a outra pessoa, a um terceiro. Nesse momento seus olhos se cobrem de súbita vermelhidão, estampando-lhe fundo acovardamento nas pupilas, como se estivesse revivendo, imperiosamente, um sem-número de incômodas situações soterradas por arrependimentos atrozes.

Lucas se vê em diversos cenários, experiências fracionadas em que há sempre um jovem parecido com aqueles que estavam ali, espalhados naquele quarto. E esses jovens são seus objetos de desejo onde sempre, sempre seus impulsos em abordá-los, de tomar qualquer atitude a fim de aproximação, acabam sendo reprimidos. Mas por incrível que possa parecer, ele tem certeza, uma certeza ainda que frágil, de que não viveu nada daquilo; não reconhece nenhum daqueles moços, daqueles efebos cujas peles ainda não refletiam as marcas do tempo.

— Acreditamos que tudo não passa de um jogo…

Lucas é resgatado abruptamente daquela disparatada fuga mental e ato contínuo se volta na direção do jovem que lançara a observação, enquanto oscila a cabeça, buscando se livrar da enxurrada de sentimentos contraditórios, das peças em conflito despejadas dentro dele.

— Do que você está falando?

— Um jogo. Todos nós fazemos parte de um jogo.

— Um Jogo? Que tipo de jogo?

— Uma espécie de xadrez…

Lucas volta a piscar, uma, duas, três vezes, reiterada e demasiadamente, parando, consciente, decidido a não mais piscar, o que acaba durando não mais do que quatro segundos, pois o efeito rebote faz com que seus olhos voltem a piscar com uma frequência ainda maior para compensar a perda conforme segue lutando para se ver livre da confusão mental, dos flashes de memórias que lhe faz acreditar que está em outros lugares além daquele quarto.

— Somos meras peças nesse tabuleiro… — esclarece ainda o primeiro rapaz.

— Peças? Jogo? Do que vocês estão falando? Que tipo de peças vocês são?

— Somos! — salienta o jovem — Nós e você somos as peças mais fracas desse tabuleiro. Somos o resultado da confusão de alguém que se admira e muitas decisões ruins.

— Que lugar é esse? — Lucas esbraveja.

Nenhuma resposta. Todos os rapazes em completo silêncio, como se subordinados a um silêncio repleto de vergonha e raiva incandescente por não poderem se manifestar.

— Por quê?… — Lucas respira profundamente antes de prosseguir, à medida que examina mais uma vez cada um daqueles jovens — Por que estão apenas desse jeito? Seminus? E essa gravata?

— Não teremos respostas para todas as suas perguntas… — lembra o moço próximo à fileira dos discos de vinil

— Por que não fogem? — Lucas insiste enquanto vagueia o olhar novamente por sobre cada canto daquele quarto.

— Não podemos — responde um deles.

— Não queremos — replica outro.

— Mas há uma porta — Lucas aponta com o queixo na direção da porta fechada — O que os impede? …

— O nada! Atrás dessa porta existe um nada, um vazio…

— Que lugar é esse? — Lucas volta a esbravejar tomado por uma determinação descomunal.

— O quarto dela…

Replica por fim o rapaz que está menos distante dele.

— O quarto de quem?

Lucas se levanta de um salto da cama, não deixando de se surpreender por se ver livre do estado de catatonia passiva no qual estava aprisionado, e sem titubear passa por entre a dúzia de jovens como um relâmpago em noite de tempestade até se ver fora do quarto, daquele estranho quarto, ainda que não tenha atravessado nenhuma porta. Diante dele, agora, um corredor, curto, com alguns poucos quadros emoldurando imagens desconfortáveis, bizarras, deformadas, aflitas, impressionantes de se ver.

O que está acontecendo comigo?

O que está acontecendo comigo?

Ele segue adiante, passos rápidos, conforme vozes diversas invadem sua mente, bradando em dissonância, lutando para abafar umas às outras enquanto sente mãos e línguas passeando ávidas por seu corpo, invadindo-o, vilipendiando-o, usurpando-o.

O que está acontecendo comigo?

O que está acontecendo comigo?

Lucas abre os olhos, sente que acordou, mas não consegue se mexer. Não sabe ao certo se esta sensação acabou de lhe ocorrer ou se já perdura já há alguns segundos, ou minutos, ao tempo que vai tomando consciência de que seu corpo está gelado e pesado.

O que está acontecendo comigo?

O que está acontecendo comigo?

Ele tenta mais uma vez se mover, porém, agora com exceção do pescoço, todo o corpo continua não respondendo ao comando do cérebro, e isto começa a assustá-lo enquanto a respiração segue curta e acelerada e seus olhos correm o entorno até onde o raio de sua visão permite alcançar.

Há uma mesinha de cabeceira, branca, alta, revestida externamente em laminado, diferente da que ele possui, com certeza, e está com a superfície vazia, completamente vazia. Onde foram parar todos os seus pertences? O seu celular? O pequeno abajur retrô?

Lucas inspira fundo, bem fundo, e expira sem pressa, tentando, em vão, manter uma respiração consciente e controlada.

Há um pequeno sofá, não muito distante da cama e perto dele, uma cadeira. Ele também consegue divisar, mas com alguma dificuldade, uma mesa em um canto com duas cadeiras dispostas respectivamente atrás e defronte a ela, além de um armário baixo, de duas portas…

E um quadro distante de todo aquele cenário…

Sim. Há um quadro repousando solitário sobre uma parede próxima à porta. É uma pintura com dois jovens sentados lado a lado sobre uma cama e aparentemente adormecidos. Apesar de suas posturas semelhantes, o rapaz em primeiro plano é banhado em luz enquanto o outro é envolto em trevas. E o rapaz em primeiro plano tem algo entre as mãos que Lucas de onde está não consegue identificar…

Mas o que está acontecendo comigo?

O que está acontecendo comigo?

O quarto, este quarto onde permanece deitado e imóvel, não parece ser o seu quarto. Lembra a estrutura de um quarto de um hospital. Sim. É um quarto hospitalar, ele acaba tendo certeza ou se convencendo disso, afinal, o cérebro é capaz de mentir, descartar informações, manipular raciocínios e até mesmo criar ilusões. Contudo, assustadoramente este quarto lhe parece familiar…

O quarto dela.

O quarto dela.

O eco de uma voz que lhe parece também familiar reverbera pelos cantos de seu cérebro e daí ele sente uma comichão começar a tomar conta de todo o seu corpo gelado, pesado, e novamente se esforça para se mover, para se levantar, todavia, de novo, nada acontece, ao mesmo tempo que passa a sentir, súbito, algo envolvendo seus braços e pernas, cordas talvez, o que o deixa num estado de alerta real, insistindo com mais perseverança, e continuadamente sem sucesso, em sair daquele estado de catatonia passiva.

— O que está acontecendo comigo? O que está acontecendo comigo?

Lucas não consegue parar de se questionar até repentinamente vislumbrar a aproximação de uma sombra, que se move de forma lenta, quase arrastada conforme ele continua lutando para se mexer, estimular as articulações e os músculos. A sombra segue em sua direção e está ficando cada vez mais próxima na mesma proporção em que a imobilidade de seus membros vai se tornando ainda mais irrefreável. Ele precisa gritar, é isso, precisa chamar por alguém, por quem?, mas os músculos de sua língua estão travados, em guerra, um conflito que faz parecer que a língua está maior que a boca enquanto um suor irrompe por todos os poros.

A sombra… A sombra… A tal sombra agora está ao seu lado e a silhueta dela não se assemelha a uma figura humana, é indistinta, ambígua e disforme.

— Quem é você?

Lucas indaga reunindo toda a coragem que lhe é possível, entretanto, as palavras que saem de sua boca, apesar de soarem como suas, não são suas. Seus lábios, apesar de terem se movido, não foram os responsáveis por essa sentença.

A sombra, ele sente, pode sentir, sim, pode sentir que a sombra, essa sombra, agora, segura a sua cabeça e daí começa a pressioná-la, forte, ao tempo que ele percebe que a sua respiração, e a dela também, dessa sombra, está muito mais acelerada, exalando o ar mais rapidamente que inalando.

Não faça isso. É o que ele quer. Não faça…, Lucas ouve uma voz, distante, uma voz que absurdamente se assemelha à voz de Márcio Antônio — mas quem diabos é Márcio Antônio? —, ao mesmo tempo que sente a mão direita tremendo e se estabilizando numa fração de segundo conforme vai perdendo definitivamente a percepção sobre si mesmo, sentindo as ondas cerebrais mais lentas…

Há coisas que não são daqui e, portanto, não deveriam estar aqui. E você é uma delas, Lucas ouve outra voz, também distante, mas que não se parece com a de Márcio Antônio, desse tal Márcio Antônio, contudo, é um timbre masculino que lhe causa certa estranheza por ser tão familiar.

Dezembro, 1976

Era o penúltimo dia de aula. A sombra da tristeza que a súbita morte do professor C. deixara sobre todos ainda permanecia forte, presente, como se três semanas não tivessem se passado.

O desaparecimento de C., apesar de ter me deixado completamente destruído por dentro, uma dor que eu precisava carregar em silêncio, com receio de, ao expô-la, demonstrar que os sentimentos que me envolvia, nos envolvia, estava além do vínculo aluno-professor, fez-me criar coragem para começar a contestar, de fato, até onde eu ainda acreditava que teria forças para continuar vivendo nesse inferno, nesse lar que o destino, que Deus me obrigou a subsistir ao lado dele e dela… Fez-me, enfim, tomar coragem de vislumbrar um futuro digno para Bruna, minha pequena e indefesa irmã caçula, que assim como eu, como Laura, não pedimos para ter esses verdugos como pais.

Era o penúltimo dia de aula e eu me arrastava para ir e vir ao colégio, pois não suportava ter de encarar, ver e rever todos os lugares, cantos e passagens pelas quais C. existiu… A sala de aula se tornara sufocante e o ambiente ficava ainda mais opressivo durante as aulas de geografia com o professor substituto. Por que arranjaram um professor substituto se faltavam apenas três semanas para o término do ano letivo? Que falta faria a porra de três aulas de geografia no nosso currículo escolar?

De todos os locais do colégio, o banheiro do final do corredor, no segundo andar, se tornou, ou melhor, eu o fiz se tornarum local intolerado, proibido, inteiramente restrito para mim.

Era o penúltimo dia de aula e um homem se aproximou de mim depois da saída do colégio, me abordando como se já nos conhecêssemos. Improvável, claro. Antes mesmo que eu demonstrasse qualquer sinal de estranheza e resistência e o abandonasse sem nem pensar duas vezes, ele, esse homem, esse tal homem, me deteve, mas não de forma brusca, coercitiva, sequer me tocou. Tão somente palavras, sim, com palavras, uma frase com sete palavras, cada uma delas parecendo ter se livrado finalmente do embargo que as aprisionava na garganta desse estranho. E cada uma delas, dessas palavras, foi o suficiente para me fazer estacionar, instalando correntes invisíveis nas minhas pernas e pés.

“Camiro pediu para que te desse isso”.

Não tive tempo de questionar, contestar, tentar entender o que estava acontecendo, visto que o homem, o estranho, cujo rosto deixava transparecer toda dor, angústia, sofrimento e desespero do mundo, colocou, usando sem se importar de um impulso violento, um envelope pardo enrugado entre as minhas mãos e um embrulho também envolvido em um papel pardo e se foi, sem olhar para trás, como se tivesse cumprido a missão que lhe fora dada, ainda que a contragosto.

Era uma carta do professor C. para mim, certifiquei-me com alegria e aflição não muito depois de tê-la recebido, sob a marquise de um armarinho a caminho de casa.

No entanto – escutem bem -, todo homem mata aquilo que ama;

Com galanteio alguns o fazem, enquanto outros com a face amargurada;

Os covardes o fazem com um beijo,

Enquanto o bravo o faz com a espada!

Uns matam o próprio amor quando ainda jovens,

Outros o fazem na velhice,

Alguns praticam a ação com muitas lágrimas

E outros sem um suspiro, sequer.

Pois todo o homem mata o objeto do seu amor

E, no entanto, nem todo homem é condenado à morte.

Ronaldo, esse é um trecho de um poema de Oscar Wilde, “A balada do cárcere”, escrito pelo dramaturgo em seu exílio após a prisão sob a acusação de pederastia. Você ainda é muito, muito jovem, todavia, espero que um dia, no futuro, possa entender porque o escolhi para você.

Existem amores na vida que não foram feitos para serem vividos, por motivos diversos, até mesmo pela incompatibilidade de idades, ou por termos de seguir protocolos de uma sociedade complexa e preconceituosa, ou por carregarmos um senso crítico perturbador, mas necessário. Ou por tudo isso. Esses amores que não foram feitos para serem vividos são, então, guardados na memória para, algum dia, quem sabe, serem recordados com a benevolência que somente aqueles que tiveram o coração estremecido por esse sentimento, incompleto, mas devastador conseguem experimentar… Eu não terei essa oportunidade, pois escolhi fugir da vida, de você.

Camiro

Ps.: obrigado pelos livros e gibis que “esquecia” em sua carteira.

Mal terminei de ler essas palavras, fui tomado por uma vertigem, uma sensação de que tudo estava rodando, ora indo para frente, ora para trás, acompanhada de um zumbido no ouvido, náusea, espasmos na laringe e um gosto vagamente metálico na boca. Sensações que tomaram uma proporção exponencial depois que abri, rasguei o embrulho envolto em papel pardo e me deparei com uma bermuda vermelha, decerto a mesma bermuda vermelha que ele, C., usou no dia da festa da primavera, quando nos encontramos, nos esbarramos no banheiro do final do corredor, no segundo andar quando… quando…

Ronaldo, porém não o Ronaldo adolescente,mas o homem de meia-idade, estaciona a caneta sobre a folha e permanece imóvel por alguns instantes, como se o mundo tivesse parado de girar para que ele pudesse refletir, colocar em ordem todo o caldeirão de pensamentos que borbulhavam em sua mente. Entretanto, de súbito, após menear a cabeça, recusando a deixar seus pensamentos fluírem, começa a rabiscar com uma força descomunal todas as palavras escritas no pequeno diário diante de si para, logo em seguida, se colocar de pé num salto e se dirigir até à cozinha a passos largos. A medicação, ele precisa tomar a medicação, sua “automedicação”… O antidepressivo… Talvez um ansiolítico, talvez, antes que elas, as vozes, aquelas malditas vozes retornem.

— Lucas, por que me ignorou quanto tentei falar com você? Por quê?

Ronaldo repete e repete agressivo, confuso, suado, até alcançar a pia e abrir a torneira com uma força brutal, observando, ato contínuo, as juntas dos dedos ficarem vermelhas conforme raiva, ódio, mágoa, repúdio e frustração lhe invadem ao mesmo tempo e de uma só vez; emoções lutando entre si para impor-se às demais; cada uma delas presentes e concretas em sua consciência.

Aquele moleque o desprezou, sem pestanejar, quando ele, Ronaldo, na tarde anterior, tentou abordá-lo na saída do edifício, de frente para o mar, no Leblon, onde mora com os pais. E ainda por cima o chamou de maluco. Sim. Maluco. Não quis ouvir a verdade de que está sendo manipulado pelo pai, que o desembargador disse uma mentira deslavada sobre Abigail estar doente somente para se livrar das consequências dos seus próprios atos. Não quis ouvir a verdade sobre JP manter um caso com outro homem. Não deixou que mostrasse as fotos comprometedoras dos dois, do pai dele e de Márcio Antônio, as fotos que ele, Ronaldo, já tinha lhe enviado, mas que pelo jeito não adiantara de nada.

Ingênuo. Ingênuo. Ingênuo.

E o ordinário também teve a audácia de dizer que se chamava Jonas e que eu o estava confundindo com outra pessoa, certamente para escapar com mais rapidez.

Ingênuo. Ingênuo. Ingênuo.

Eu não preciso de um psiquiatra. Eu não preciso de um psiquiatra. Mas é claro que você não precisa de um psiquiatra, Ronaldo repete e repete enquanto cerra os olhos e instantaneamente imagens diversas e confusas se cruzam à sua frente, mas ele não quer encará-las ou o que seja, pois sabe que estão vagando como almas desnorteadas em todos os cantos de sua mente.

Eu não preciso de um psiquiatra. Eu não preciso de um psiquiatra. Mas é claro que você não precisa de um psiquiatra

— Bipolar. Depressivo. Ansioso… É isso. Sempre foi isso. Bipolar. Depressivo. Ansioso… E eu não vou deixar, não vou permitir que Márcio Antônio venha a ter o mesmo fim de Camiro. Não vou.

Ronaldo completa com uma determinação voraz.

Julho/setembro,2017, domingo

Um silêncio de quase um minuto inteiro toma conta do pequeno escritório do seu pequeno apartamento enquanto Gabriela apela para a razão — ou a parte dela que sua mente está lhe permitindo alcançar —, buscando assimilar a realidade diante de si, chegando mesmo a acreditar numa certeza débil de que talvez ainda esteja envolta em alguma espécie de sonho, ruim, algum absurdo. Porém, a presença inabalável da tal mulher que diz se chamar Laura, ali, à sua frente, de modo inegável, lhe afasta dessa suspeição de estar sendo assombrada por uma quimera que não vai demorar a se tornar uma mísera sombra até desaparecer por completo.

— Você ainda não me disse como entrou aqui… — Gabriela questiona depois de engolir em seco, sem tirar os olhos um instante sequer de sobre a invasora.

— Sei que tudo isso parece um tanto perturbador, Gabriela. A presença de um estranho na nossa casa naturalmente nos faz assumir uma posição defensiva, questionadora. Mas saiba: eu não sou uma estranha…

— Não é uma estranha? Nunca te vi antes na vida — a jovem psiquiatra devolve de pronto, entretanto, sem acreditar por completo na própria sentença, já que, inesperadamente, a mulher parada à sua frente começa a lhe parecer um tanto familiar, inexplicável e estranhamente familiar.

— Posso me sentar? — Laura pergunta, já caminhando em direção ao sofá, defronte à mesa, deixando transparecer uma calma sem precedentes, até, por fim, se deixar assentar sem grandes cerimônias, as costas eretas — Se quiser, pode permanecer de pé, arredia, desconfiada. Eu também agiria da mesma forma, acredite — arremata enquanto pousa as mãos cumpridas sobre os joelhos.

Gabriela recua mais alguns passos ao mesmo tempo que divisa a porta aberta do escritório na extremidade oposta de onde se encontra.

— Não precisa sair correndo, fugir do seu próprio apartamento. Eu vou embora, se você quiser… — a voz branda e macia, mas também obstinada de Laura, faz com que Gabriela retome a atenção sobre ela — Contudo, se me der uma chance, se puder me ouvir, vai entender, realmente, que o meu propósito de estar aqui é ajudar…

— Ajudar? Dessa forma? Invadindo o meu apartamento…

— Eu apertei a campainha… — Laura replica sem mover um músculo sequer, sem modificar nenhum traço do equilíbrio estampado em cada linha do seu semblante — Mas ninguém respondeu. Depois bati à porta e quando já ia desistir, ouvi gemidos, lamentos abafados que me pareceram desesperados e então voltei a bater, preocupada, e instintivamente forcei de leve a maçaneta e daí, para minha surpresa, e também alívio, eu não vou negar, a porta se abriu.

Laura faz uma pausa enquanto observa a reação de Gabriela, que permanece parada no mesmo lugar, entretanto, a fisionomia da jovem psiquiatra espelha nitidamente o quão ela ainda parece perdida, confusa, como se estivesse numa concha entorpecida.

— Então, entrei — Laura retoma a narração — E não demorei a perceber que os gemidos e os lamentos vinham daqui, deste escritório. Não pensei duas vezes, confesso, e me precipitei e te encontrei estirada neste sofá, a cabeça recostada, se movendo de um lado para o outro, e você repetindo, entre murmúrios, “o que está acontecendo?”, “ eu preciso sair daqui”…

Gabriela segue um tanto atordoada, as ideias deslizando na superfície de sua consciência sem se ajustarem ao passo que volta a olhar rapidamente ao derredor em busca do celular, do mesmo modo que procura por algo que possa usar como defesa, caso venha a ser atacada, se surpreendendo ao constatar, finalmente, que todos os objetos pequenos e móveis desapareceram, como que por encanto, lhe deixando ainda mais preocupada conforme a sensação de familiaridade com essa mulher em seu apartamento, uma sensação a princípio incompreensível, vai se tornando inquietante.

— E o que veio fazer aqui? Como conseguiu o meu endereço?

Ela indaga, voltando a fixar a atenção sobre a invasora, ao tempo que retrocede mais alguns passos, aumentando a distância que as separam.

A certeza paulatinamente visível de que talvez exista alguma conexão entre as duas vai se circunvizinhando enquanto Gabriela segue digladiando com a própria mente, buscando repelir essa absurda impressão, convencendo-se de que seu cérebro esteja sofrendo algum bug, alguma disfunção neurológica. Da mesma forma que também não consegue compreender o porquê de ainda permitir a presença dessa tal Laura no seu apartamento.

— Você acha que se eu quisesse te fazer algum mal, não teria sido mais fácil com você praticamente desacordada? Indefesa? — Laura interrompe o fluxo de raciocínio de Gabriela ao tempo que se coloca de pé, tomando o cuidado de não se afastar do sofá.

Gabriela meneia a cabeça; a desordem de seus pensamentos aumentando progressivamente.

— Eu não posso me demorar muito por aqui… — Laura encara o chão por alguns instantes, breve, erguendo os olhos novamente até pousá-los, rogativos, sobre a jovem psiquiatra — Não sei quanto tempo, agora, com a minha presença, esse viés do ponto cego pode durar…

— Ponto cego?

Gabriela volta a esquadrinhar Laura com um senso de atenção ainda mais agudo, compreendendo, por fim, numa sincronia alarmante que vagueia entre a epifania e a aflição, que está atada, sim, atada à energia que emana dessa mulher, e de um modo involuntário. Uma energia que supostamente alimenta a sensação de conexão que as une, o que vem mexendo, evidente, com sua capacidade psíquica… Mas esta conclusão labiríntica, questionável e surreal, é possível que só a tenha alcançado por estar sob o efeito de alguma medicação. Isso. E esta estranha, sim, esta estranha não passa de mais uma quimera que não vai demorar a se tornar uma mísera sombra até desaparecer por completo.

— Você precisa voltar pra clinica…

Gabriela é surpreendida com a mão estendida de Laura lhe ofertando um envelope um tanto enrugado e, ato contínuo, se volta na direção da mesa, conferindo de pronto que o outro envelope, há pouco encontrado por ela mesma, permanece no mesmo lugar e ao lado dele, decerto, o poema de Oscar Wilde lhe endereçado anonimamente. Com um gesto repentino, quase irascível, avança alguns passos e toma o envelope das mãos da invasora, retrocedendo sem demora ao ponto em que estava, enquanto acaba por reconhecer que é o mesmo envelope encontrado na clínica, na sua sala, com o seu nome do lado de fora escrito de forma desajeitada. Incrédula, abre o invólucro pouco se importando com a inquietação que a assola, devorando num átimo as linhas da carta que já havia lido repetidas vezes até estacionar no parágrafo que faz menção a certa Laura…

Ela, apenas ela, Laura, conseguirá salvaaarrr-me. Ela prometeu… mesm… mesmo… mesmo diante de todos os obstáculos que eles… eles… eles colocaram e ainda colocam… ou ao menos durante o curioso fragmento de vida que for permitido a ela…

Gabriela ergue o rosto pausadamente, como se quisesse evitar encontrar o que está diante de si e as prováveis consequências que a aguardam, sem compreender a motivação para esta advertência, esta peculiar sensação de advertência, ao mesmo tempo que é tomada por uma súbita e célere impressão de alteração da percepção de si mesma, sentindo o coração bater mais forte e um desatinado receio de que possa estar esquecendo de respirar.

A invasora permanece estagnada diante de si, uma distância considerável as separando, e os olhos dela, desta Laura, não deixam de fitá-la um segundo sequer, como se a estivesse punindo.

— É você? — Gabriela questiona logo após puxar o ar com toda força para os pulmões — A Laura dessa carta, citada por Eve, por Arnoldo, é você? — arremata sem conseguir disfarçar a impaciência e a perplexidade, piscando uma, duas, três vezes, reiterada e demasiadamente, um reflexo ainda que um tanto instável de uma consciência prestes a ser despertada.

1966

Um turbilhão de sensações e sentimentos dominava a mente daquela mulher enquanto ela caminhava um tanto desenfreada por entre lápides desgastadas, cruzes, querubins de pedra, asas, santos, palmas, vasos, tochas e mausoléus de um cemitério. A cada passo, a angústia, a frustração, a impotência, a culpa, sim, uma maldita culpa que não deveria carregar e uma mágoa e uma dor abomináveis pareciam fortalecer raízes em cada canto do seu coração que seguia em pedaços, incapaz de aceitar aquela perda, incapaz de aceitar que Deus teria feito aquilo com ela… Seis anos já tinham se passado e a cada dia aquela mulher alimentava a certeza de que carregaria o luto para sempre dentro de si com a mesma intensidade até o último dia de sua vida, até o instante do seu último suspiro.

Em seu encalço, um menino de quatro anos, que não fosse a iniciativa de agarrar-se à saia da mulher, muita das vezes sem sucesso, estaria à deriva dentro daquele cemitério, lugar que ainda não o assombrava, pois estava apenas começando a consumir as lições dogmáticas da religião de seus pais.

— Por que não vejo ninguém mais fazendo o que a gente faz?

O pequeno indagou enquanto praticamente continuava a correr para alcançar os passos da mãe, que seguia adiante, obstinada, ignorando sempre que podia qualquer manifestação por parte do menino que o destino lhe dera como filho, uma espécie de conforto que ela não havia pedido.

“Por Deus! Você nem teve tempo de se apegar, de ver sua filha viva, dando os primeiros passos, crescendo…”.

“Você terá outros filhos e aí poderá, sim, viver a benção da maternidade…”.

“É só um bebê. Ela nem sequer conheceu esse mundo. Ela nem sequer soube que tinha uma mãe…”.

A mulher balançou a cabeça amargamente buscando afastar algumas das muitas frases insensatas que escutou após a perda da filha, nas primeiras semanas em que ainda tentava lidar com o lado negro da maternidade, com o vazio nos braços e no coração, com a dura realidade de que suas expectativas, criadas e alimentadas naturalmente durante aqueles nove meses, estariam, a partir daquela perda neonatal, destruídas para sempre.

A mulher loura, de cabelos relativamente maltratados, caídos sobre os ombros, os olhos esverdeados grandes e apáticos e a compleição de uma magreza absurda, terminava de seguir seu trajeto ao passo que era tomada pela intermitente sensação de que talvez estivesse morta, de que não mais existia, de que apenas sua essência, ilogicamente, vagava ainda naquele mundo físico, uma essência disforme, nociva, condenada como Sísifo a empurrar uma pedra até o cimo de um monte só para vê-la, então, rolar de volta para daí repetir esse processo por toda a eternidade.

Uma chuva fina começou a cair no exato momento em que a mulher se deparou com o pequeno túmulo da filha, sendo assaltada fatalmente pelas lembranças de seis anos atrás, por aqueles dias de tempestades quando faltavam apenas duas semanas para dar à luz. O olhar e a mente imediatamente saíram dali, saltando no tempo e no espaço até alcançarem as recordações aflitivas da indução ao parto, a dor emocional que também era física, o enorme sentimento de vazio, uma enfermeira desatenta indagando onde estava sua filha, o suplício em presenciar no decorrer dos dias, dos meses, crianças brincando alegres por todos os lados…

Ela respirou fundo, bem fundo até decidir seguir adiante e, antes de estacionar, finalmente, frente ao jazigo, fez sinal, sem se virar, para que o menino a aguardasse, onde estava, e sem se aproximar, como das outras vezes.

Deus me deve uma explicação, a mulher balbuciou extremamente indignada e inconformada e talvez até mesmo consciente da sua momentânea irracionalidade cristã, mas não podia lutar contra aquilo, necessitava, sim, de uma explicação, se é que existia alguma, enquanto todo o seu corpo, sua essência ou o que fosse estremecia, ao mesmo tempo que a dor lancinante acompanhada pela insegurança, pelo mal-estar, por uma tristeza sem fim e pela culpa, por uma maldita culpa que ela não deveria ter, continuavam a queimar como brasa.

A dor… As dores… A escuridão puxa a luz pra dançar,

Concepção e arte, Cristina Ravela

Norma ponderou ao passo que ia se ajoelhando, devagar, à medida que lágrimas escorriam pelo rosto, à medida que a dor que carregava se estendia de dentro de si, imensa, tomando todo o seu entorno rapidamente, assumindo forma, corpo e alma conforme ela encarava a lápide à sua frente com os olhos duros, turbulentos.

Laura Antunes Justus

amada filha

 Janeiro, 1969…

Ronaldo havia completado sete anos no dia anterior. Estava eufórico por poder, enfim, brincar com os índios, cowboys e cavalos que faziam parte do forte apache que havia ganhado dos pais. Os outros poucos brinquedos com que também havia sido presenteado pelos poucos convidados que tinham comparecido em sua festa, estavam ali, bem próximos, na prateleira do quarto, devidamente arrumados e à sua espera — como Norma sempre o ensinara.

Sentado no chão, enquanto viajava pelo universo do seu minifaroeste, Ronaldo não percebeu a aproximação do pai, contudo, não se mostrou surpreso e seguiu com sua brincadeira, permitindo, por fim, que Antoniel também participasse.

— Que tal brincarmos de outra coisa?

Antoniel questionou, depois de algum tempo, com um sorriso largo no rosto enquanto Ronaldo se mostrou indiferente, totalmente voltado para o seu forte apache, respondendo apenas com um aceno negativo da cabeça após a pergunta ter sido refeita.

— Poxa, você vai me deixar triste…

Ronaldo ergueu o rosto na direção do pai e ao se deparar com o olhar cabisbaixo dele, a boca ligeiramente virada para baixo, ensaiando uma expressão de choro, não conseguiu mais manter a determinação, a concentração no seu novo brinquedo, deixando de lado os índios, os cowboys e os cavalos, sem titubear, para se atirar prontamente no colo de Antoniel, que já o aguardava de braços abertos, sorrindo com os lábios fechados e levemente curvados para cima.

No instante seguinte, Ronaldo se viu sobre a cama, sem roupa, apenas com uma gravata envolta de seu pequeno pescoço enquanto sentia mãos e lábios passeando sobre sua pele conforme começava a lidar com uma desorientação espaço-temporal acompanhada de uma inegável sensação de súbito despertar, além de pontadas na testa que reverberavam na nuca. Não tardou a olhar para baixo, para a cabeça que se movia sobre o seu corpo franzino, não demorando a ser confrontado pelo rosto recém-erguido do pai, de joelhos no chão, fitando-o com um sorriso sem dentes, debochado, ressaltando a satisfação estampada em cada linha do semblante.

Por mais que tentasse, o pequeno Ronaldo não conseguia lembrar como havia ido parar lá, sobre a cama, como havia ficado nu, completamente nu, assim como também não recordava em que momento Antoniel tinha ficado somente de cueca, vermelha, e tampouco se levantado do chão e se deitado ao seu lado e muito menos o momento em que havia começado a lhe tocar daquela maneira…

— Você é lindo, sabia?

O tom de voz gentil do pai invadiu seus ouvidos, contudo, Ronaldo não conseguia mais enxergá-lo. Ao seu lado, havia, sim, um homem, mas sem uma fisionomia definida. E as mãos daquele homem continuavam a acariciá-lo, correndo os dedos dele como se fossem perninhas de inseto sobre a sua pele até escorregá-los, um a um, alcançando a abertura de seu bumbum.

— É bom, não é?

Os dedos do homem, do tal homem seguiam avançando, deixando Ronaldo cada vez mais vulnerável, aflito, desconfortável e mergulhado num mar de confusão mental, como se algo tivesse se quebrado dentro dele, ao tempo que um calafrio de inquietação e temor percorria todo o seu mirrado corpo numa velocidade inimaginável. Entretanto, algo dentro de si parecia pedir para que se acalmasse e que satisfizesse as vontades do pai, ou daquele homem sem uma fisionomia definida; que brincasse com ele para que não deixá-lo zangado como das outras vezes…

Outras vezes? Que outras vezes? Ronaldo se questionou. Nada em sua cabecinha, nada em sua pequena mente de menino lhe entregava nenhuma confirmação de que aquilo já teria acontecido. Talvez estivesse sonhando… Ou talvez não fosse ele quem estivesse lá, deitado ao lado do pai, ou daquele homem sem uma fisionomia definida…

Outras vezes… Que outras vezes?

Ronaldo voltava a se questionar, indefeso, conforme sentia uma queimação seguida de uma dor que lhe pareciam agulhas invadindo seu bumbum, enquanto mergulhava cada vez mais naquele mar de confusão mental, enquanto uma pressão absurda tomava progressivamente conta de sua cabeça e de suas articulações… Enquanto passava a observar toda aquela cena do alto, onde nada parecia atingi-lo e de onde conseguia manipular o seu forte apache apenas com a força da mente.

28 de novembro, 2017, terça-feira, Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro

Ronaldo meneou a cabeça sem pressa, o olhar, fixado no chão. Parecia anestesiado. A lembrança daquela tarde, já há quase cinquenta anos, estava ficando cada vez mais clara à medida que sua mente voltava a visitá-la, ainda que contra sua vontade. Porém, continuava a sentir aquela recordação, tal como algumas outras recém-descobertas, como se pertencesse a outra pessoa e por um instante voltou a remoer a incerteza do quão benéfico estaria sendo todas as intervenções da doutora Júlia Mathias, todo o árduo trabalho que ela vinha fazendo desde a sua internação naquele manicômio para onde foi levado logo após os crimes que cometera… ou melhor, após os crimes pelos quais estava sendo acusado.

A verdade é algo que buscamos desesperadamente esquecer enquanto suprimimos lembranças dolorosas para sobreviver.

Ronaldo ajeita a postura, tentando alinhar as costas ligeiramente curvadas sobre o encosto do pequeno sofá no mesmo instante em que ergue a vista, vagueando pelo entorno, pelo quarto de 3,20 x 3,20 e suas paredes azul-claros. Em seguida, pela cama de solteiro, sobre os lençóis com a marca d’água do Manicômio Judiciário, arrumados de maneira sempre exemplar. De pronto, salta para a mesinha branca, alta, revestida externamente em laminado ao lado da cabeceira. E, por fim, se volta para a doutora, sentada na cadeira não muito distante daquele pequeno sofá, observando-o cuidadosamente enquanto ele estremece, se sentindo devorado por uma tristeza atroz e na mesma proporção por uma sombra de irritação ao tempo que luta tentando atribuir algum sentindo e alguma ordem na invasão paulatina que Júlia Mathias vinha promovendo em sua mente.

A verdade é algo que buscamos desesperadamente esquecer enquanto suprimimos lembranças dolorosas para sobreviver.

Ronaldo cruza as pernas e depois as descruza e cruza mais uma vez, mudando da esquerda sobre a direita para a direita sobre a esquerda.

— Você está bem, Ronaldo?

— Sim, penso que sim.

Ele consegue responder ao passo que segue refletindo sobre o impacto da ambiguidade dos procedimentos daquela psiquiatra sobre si. Do quão favorável a sua persistência ante a obstinação dele em não se permitir ser tratado até começar a ser resgatado daqueles dias que lhe pareciam um único e longo dia onde mergulhava mais e mais num mar de confusão mental, repassando cenas e recordações sempre interrompidas, invadidas por um caleidoscópio de imagens desconfortáveis, bizarras, deformadas, aflitas, impressionantes de se ver.

E por vozes.

Sim.

Por vozes.

Aquelas vozes que já o acompanhavam, intermitentes, por toda a vida: a voz de uma mulher, também a de um garoto, um adolescente, assim como a voz de um homem, um timbre grave que talvez, agora, pudesse considerar serem reflexos das vozes de seus pais e dele mesmo, da sua versão pequena, adolescente, daquele Ronaldo implorando por um socorro que nunca chegaria.

Todas, todas as vozes, aquelas malditas vozes se manifestando quase que simultaneamente, contribuindo ainda mais para a desorganização, para a desconexão de seus pensamentos…

E as mãos suadas; uma transpiração incômoda…

Mesmo depois de passados todos esses meses, ele ainda se questionava, sim, ainda se perguntava se talvez não tivesse sido melhor permanecer na ignorância de tudo o que lhe havia acontecido antes dos onze anos, quando até então acreditava que tinha começado a ser abusado pelo pai com o consentimento de Norma, afinal, lidar com peso e com a dor que aquelas chagas que carregava em sua alma desde os onze anos já eram insuportáveis demais…

Mas não.

Era um processo longo e seria bastante dolorido, sim, e terrível também, entretanto, necessário, segundo a doutora. Tanto para que ele, Ronaldo, pudesse ter a oportunidade de uma honesta avaliação pela justiça diante do triplo homicídio do qual estava sendo acusado, quanto — e também principalmente — para que pudesse, depois de todos esses anos, entender quem era de fato, costurar as fragmentações de sua infância, descobrir o real início de todo o mal que lhe fizeram.

“É bom, não é?”

Ronaldo estagna a atenção sobre um ponto qualquer da parede à sua frente conforme evoca uma passagem do livro Crônica de uma morte anunciada, de Gabriel Garcia Márquez: “ele era o mais saudável do que o resto de nós, mas quando você escutava com estetoscópio você podia ouvir as lágrimas borbulhando dentro de seu coração”.

— Você prefere continuar olhando para as paredes?

Ronaldo, de pronto, despeja o olhar sobre a médica, baixando-os logo em seguida.

— Até os quinze anos, ao menos o que consegui compreender, e ainda estamos dando início a essa caminhada de descobertas, você, Ronaldo, acreditou que o abuso que sofria era algo normal — Júlia Mathias esclarece, sem pressa, numa atitude tranquila, porém, mantendo um timbre preciso — Você não conhecia nada diferente e com isso permitiu que o abuso seguisse porque, uma vez estabelecido o padrão, a possibilidade de quebrá-lo parecia inconcebível.

“Você é lindo, sabia?”.

— Não, não…

Ronaldo, com o olhar ainda pregado ao chão, meneia a cabeça, uma reação mesclada de exasperação e contrariedade.

“Você é linda, sabia? Muito, muito linda”.

— Não!

A cueca, a cueca sempre vermelha…

O cheiro de pele…

A gravata…

O cheiro de pele humana, quente e úmida…

Os beijos dele… Ela assistindo a tudo… As mãos dele rendendo-se diante de sua beleza, a beleza de um efebo proibido…

Sim… Ronaldo observa tudo do alto. Vê o menino, aquele outro menino deitado sobre a cama e com as pernas sobre os ombros de Antoniel, e também assiste a transformação desse menino em uma garota, conforme sente o cheiro de pele, pele humana, quente e úmida. Mas aquilo não o atinge diretamente. Não o atingia até então. Mas agora lhe dá calafrios, repulsa.

— Não!

Ele ergue o rosto, por fim, inspirando e expirando na mesma cadência enquanto Antoniel baixar a cabeça até a altura da virilha do menino, da menina, deitado, deitada sobre a cama…

 — Foi por ela, por ela, por Bruna, minha irmã. Eu não podia… não podia…

É bom, não é?”.

“Você é lindo, sabia?”

— Ronaldo — Júlia Mathias chama o paciente usando um tom de voz circunspecto — Conte-me mais sobre ela, Bruna, a sua irmã.

Ronaldo se coloca de pé, passando a mirar a psiquiatra com um olhar triste, mas também desafiador, ao tempo que começa a caminhar pelo quarto, balbuciando uma, duas, três vezes e de novo e de novo e de novo o céu e o inferno provêm do mesmo coração, o céu e o inferno provêm do mesmo coração, até se deixar cair à frente de Júlia, esparramado sobre o chão, mirando o teto conforme a psiquiatra o segue observando, empertigada, mas também um tanto cautelosa, conforme descruza as pernas.

— Ronaldo, você quer falar sobre ela? Bruna? — Júlia indaga; a expressão dócil e concentrada — Você afirmava, e ainda afirma, todavia, com menos frequência, que eu me parecia, me pareço com ela, com a Bruna. Insiste na possibilidade de que possamos ser uma só pessoa. Uma projeção, decerto. Já tentamos falar sobre isso diversas vezes. Não acha que podemos tentar novamente?

Ronaldo, agora sentado no chão, apenas fita Júlia, sem grandes pretensões, conforme a imagem da psiquiatra vai se tornando embaçada, como se estivesse sendo envolvida em uma nuvem de fumaça, enquanto, simultaneamente, se vê de volta àquela noite de carnaval, há quarenta anos, fugindo da casa, daquele lugar que aprendera a chamar de lar e que já começava a ser consumido pelas chamas, à medida que seguia buscando pela irmã, pela pequena Bruna, gritando o nome dela e sem receber, já cansado, extremamente desgastado, qualquer resposta, mergulhando inevitavelmente num pressentimento terrível, no medo extremo ante a possível certeza de que a menina estaria também sendo tragada pelas labaredas junto aos verdugos a quem o destino lhes deu como pais.

Ronaldo meneia a cabeça, forte, sentindo o estômago embrulhar assim como sente também estrondos de tambores em seu crânio proporcionando uma forte dor na cabeça que se propaga a cada segundo, mais e mais, abrangendo tudo, conferindo-lhe uma sensação de peso, de pressão, conforme uma voz ecoa em algum canto de sua mente, contudo, não é nenhuma delas, tem certeza, nenhuma daquelas vozes que já o acompanhavam, intermitentes, por toda a vida.

Não. Não. Era uma voz parecida com a sua, porém, não com a sua voz de agora, a de um homem de meia-idade. Era mais semelhante à voz de um garoto, um menino, uma voz mais aguda, mais profunda que a de um adulto.

Bruna. Preciso voltar para Bruna, Ronaldo murmura à medida que engole em seco enquanto observa impotente uma cortina negra baixar à sua frente, eliminando por completo a imagem, a existência daquela mulher sentada ali, próxima a ele. Aquela mulher que de um instante para o outro se transformara em uma pessoa completamente estranha, ao passo que ela, Júlia Mathias, segue esquadrinhando o seu comportamento, o olhar vazio acompanhado da mudança súbita em seu semblante, até ser surpreendida pelo grito pungente jorrado de sua garganta; um urro que parecia vir do âmago de uma alma ferida, cheia de dor, tristeza e mágoa, para, logo em seguida, se verter num choro copioso.

Concepção e arte, Cristina Ravela

Júlia permanece sentada, sem mover um músculo sequer enquanto faz algumas rápidas anotações em sua agenda até ser interpelada pela voz de Ronaldo, ou melhor, pela voz de uma criança. Ela levanta a cabeça e se depara com seu paciente ainda sentado no chão, mas, agora, encarando-a com um olhar um tanto perplexo. Na face, apenas marcas deixadas pelas lágrimas.

— Quem é você?

— Sou Júlia.

— Ah, é?

— Sim — a psiquiatra balança a cabeça afirmativamente — E com quem estou falando?

— Onde estou?

— No quarto de um hospital psiquiátrico.

— E o que eu estou fazendo num hospital psiquiátrico?

— Você está sob terapia, Ronaldo. Eu sou a sua médica…

— Eu não sou Ronaldo.

— Então com quem estou falando? — Júlia indaga mais uma vez ao passo que se inclina um pouco na direção do paciente.

— Lucas — Ronaldo dá de ombros — Lucas Bruno. Mas detesto esse nome composto. Sempre detestei. Não sei por que não me registraram apenas como Lucas ou apenas como Bruno. Então decidi que sou apenas Lucas. Ponto — ele dá de ombros novamente — Mas isso é óbvio — Ronaldo confronta Júlia com o amálgama de um sorriso meigo e petulante — Enfim, afinal, com quem mais você poderia estar falando? Que pergunta mais boba a sua.

— Claro. E quantos anos você tem, Lucas?

— Onze.

— E por que você estava chorando?

Ronaldo silencia, mas sem deixar de encarar Júlia um instante sequer.

— Onde está Ronaldo, Lucas?

— Eu não sei… — por um breve instante o menino parece titubear, mas se recompõe rapidamente — Há muito tempo que não nos vemos. Quer dizer, eu acho que tem muito tempo.

— Então você o conhece?

— Mas é claro. Outra pergunta boba — Ronaldo observa, revirando os olhos.

— E onde vocês se conheceram?

— Nas férias de julho. Os pais dele alugaram uma chácara ao lado de outra que meus pais também alugaram…

— E isso já tem muito tempo?

Ronaldo volta a silenciar e ainda sem deixar de olhar fixamente para a psiquiatra, mas dessa vez seu mutismo é um escudo para o mar de emoções e sensações contraditórias que o invadem, invadem sua mente, a mente de Lucas, que vai atrás de alguma referência, um nome, um sinal, um bordão, um lugar no tempo e no espaço.

— E quando foi a última vez que vocês se viram, Lucas?

Lucas respira fundo, bem fundo, e então deixa os olhos irem ao encontro do chão.

— Quando eu me suicidei.

Márcio Antônio ouve ao longe o seu nome ser chamado ao mesmo tempo que sente o corpo ser sacudido por diversas vezes até, por fim, se permitir abrir os olhos, demorando alguns instantes para recobrar a consciência, recuperar-se da momentânea desorientação espaço-temporal típica de um súbito despertar. O seu entorno está iluminado sob a mesma luz difusa que, como por um milagre, passou a surgir, ainda que com uma duração instantânea — tempo suficiente para ir reconhecendo as paredes, os muros de sua prisão —, sempre depois da partida de Eve, de suas visitas; aquela figura, aquela silhueta masculina que nunca ultrapassava o batente da porta, sempre se apresentando oculta sob a penumbra de um retângulo de claridade. Contudo, agora, a luz difusa parecia estar durando mais do que das outras vezes. Sim. Sim…

Vamos.

O quê?

Vamos.

Alguém… Alguém…

Precisamos sair daqui.

Alguém… Uma voz desconhecida…

Vamos, Márcio Antônio. Precisamos sair daqui o mais rápido possível.

Márcio Antônio começa a piscar, uma, duas, três vezes, reiterada e demasiadamente, parando, consciente, decidido a não mais piscar, o que acaba durando não mais do que quatro segundos, pois o efeito rebote faz com que seus olhos voltem a piscar com uma frequência ainda maior para compensar a perda. Ele tem certeza de que sua mente não vai demorar a ser invadida por uma enxurrada de imagens e sons caóticos, uma espiral de confusão que o acometera inicialmente de maneira discreta, controlável, mas que vinha progredindo cada vez mais enquanto ele lutava para manter-se estável, angustiadamente estável na esperança de que pudesse ser resgatado, retirado de onde quer que o tenham aprisionado.

Mas não. O alvoroço em seu cérebro não acontece. Ao contrário, um silêncio ensurdecedor paira por alguns instantes sobre e em torno de si até, finalmente, se deparar com a imagem de um jovem vestindo uma túnica  branca e com um cíngulo em volta da cintura.

— Quem… Quem é você? — ele questiona; a voz um tanto alquebrada.

— Um amigo — responde o rapaz ajoelhado à sua frente — Nós precisamos sair daqui o quanto antes. Precisamos aproveitar que ela está lá, isolada, limitada no viés do ponto cego.

— Ela? Viés do ponto cego? — Márcio Antônio balança a cabeça, aturdido — Quem é você?

— Sacerdote Lucas…

— Um padre? Mandaram-me um padre…

— Vem — o jovem determina à medida que se esforça para ajudar Márcio Antônio a ficar de pé — Você precisa sair daqui, caso contrário ela vai conseguir te eliminar, como fez com todos os outros.

— Ela?

Márcio Antônio resiste em se colocar de pé. Em verdade, seu corpo, sua essência vem perdendo a energia, o equilíbrio, o discernimento. Sede, fome, dores profundas, o eco de seus gritos nas paredes, nos muros daquela prisão. As raras ocasiões em que se via delirando, sonhando, fugindo por múltiplos corredores de um labirinto sem fim, bradando, buscando por alguém… Por alguém… Quem era esse alguém por quem ele buscava?

— As correntes… — ele olhou para os pulsos e tornozelos — As correntes não vão me deixar sair daqui. Há quanto tempo estou preso aqui?

— Elas já não estão te aprisionando há um bom tempo — o sacerdote Lucas diz condescendente — Apenas a ilusão, a manipulação mental é o que vem te mantendo onde está.

— Por que você está aqui? — Márcio Antônio pergunta ao sacerdote sem deixar de encará-lo um instante sequer ao tempo que apoia todo o peso do corpo sobre ele — Não te conheço. Não nos conhecemos. Quem tem mandou? Foi o Ronaldo? Como ele me encontrou? Por que você está me ajudando?

— Neste jogo, Márcio Antônio, todos os caminhos, todas as decisões que tomamos, são guiados por um desejo profundo. Um deles é o de se manter vivo. Mas chega um momento que devemos nos questionar se escolhemos o lado certo — sacerdote Lucas faz uma pausa, rápida, antes de prosseguir — E graças à Júlia Mathias consegui entender o que eu vinha fazendo.

Julho/setembro,2017, domingo

— É você? — Gabriela questiona mais uma vez — Diga-me, por favor. A Laura dessa carta, citada por Eve, por Arnoldo, é você?

Laura nada responde, tão somente continua contemplando a jovem com uma calma enlouquecedora, não demonstrando — ou decidida a não demonstrar — nenhuma emoção.

— Se realmente essa Laura for você… — Gabriela balança a carta na direção da interlocutora num gesto rápido, porém, nitidamente exaltado — Por que Arnoldo acredita que só você poderá salvá-lo? Qual o seu significado na vida dele? O que ele quis dizer com “fragmento de vida” que seria permitido a você? — ela pergunta categórica e energicamente — Como essa carta foi parar em suas mãos se ela estava comigo quando deixei a clínica depois… depois…

— Depois do quê? — Laura não deixa que Gabriela prossiga — Depois que deixou a sala do diretor Orlando, batendo a porta, beirando o descontrole? Ou depois que correu para a sua própria sala, chorando e blasfemando contra tudo e todos como uma criança mimada? — cautelosa, ela dá um passo adiante, como uma predadora hipnotizando sua presa; a voz, seguindo controlada — Ou depois da conversa que teve com seu paciente e com o alter ego dele, confrontando a sua posição, o seu parecer profissional, sinalizando a necessidade de rever o diagnóstico engessado que você se recusa?

Gabriela se espanta com os detalhes que a invasora detém; a segurança com que ela os expõe: a ousadia em conjecturar suas reações.

— Como você teve acesso a todas essas informações? E ainda mais grave: como teve acesso a uma conversa minha com um paciente?

— Há muitas coisas desse jogo que você ainda precisa entender antes que seja tarde demais.

— Do que você está falando? — Gabriela retruca de pronto, ainda mais alterada, fazendo menção em se deslocar, avançar, mas desistindo no instante seguinte, como se uma força gravitacional a impedisse — Isso aqui não está acontecendo. Não. Não. É surreal demais. Você invade meu apartamento…

— Tecnicamente eu não invadi.

— Você invade meu apartamento… — Gabriela ignora sem pestanejar a tentativa de defesa da aparente estranha — Surge com uma carta que o meu paciente escreveu para mim e a qual, eu tenho certeza, de que havia trazido comigo para casa, depois despeja informações que a princípio não deveria ter acesso, e eu ouvindo todo esse disparate… — ela para por um instante, como se buscando coordenar o caldeirão de ideias e sensações que estão prestes a transbordar — Você trabalha na clínica, é isso? Mas nunca te vi por lá — arremata entre contrariada e ainda mais confusa, voltando a encarar o envelope e a carta em suas mãos para depois fitar o outro envelope, que está sobre a mesa, e em seguida retornar a cravar o olhar sobre Laura — O que está acontecendo?

— Você tem todas essas respostas, Gabriela, apenas não consegue, ainda, acessá-las. E eu não posso ajudá-la. Não agora, não dessa maneira, pois posso provocar um colapso, um desequilíbrio irreversível em você, em Eve…

— Em Eve? Do que está falando?

— A convergência entre vocês dois está além da interação médica e paciente…

— Quem te mandou aqui? — Gabriela lança sua pergunta transbordando ansiedade ao mesmo tempo que é invadida novamente pelo incômodo e estapafúrdio impulso de que precisa evitar o enfrentamento do que está diante de si — Foi o doutor Orlando? É isso? Ou aquele advogado petulante?

— Eles não são seus inimigos. Mas precisam fazer escolhas.

— Por favor, vá embora! — a jovem psiquiatra ordena já com um dos braços apontado para a porta aberta do pequeno escritório.

— Por que você vem racionalizando suas convicções? — Laura não se move, enquanto questiona com um timbre ilusoriamente suave, apesar do seu olhar estável e ofendido — Isso tem te deixado menos emocional.

Gabriela recolhe o braço; a respiração, ofegante.

— Você, Gabriela, já há algum tempo vem tendo noção da sua existência… Da sua real existência… Embora de modo inconsciente. E isso está lhe causando uma crescente crise de identidade que resiste em reconhecer.

Gabriela meneia a cabeça. O paradoxo de sentimentos e sensações que a presença de Laura lhe proporciona a está sufocando cada vez mais. Não sabe até quando poderá suportar.

— Depois de um tempo tratando de Eve você começou a notar inconsistências no histórico do seu paciente, no cenário daquela clínica, na sua rotina, e por mais que batalhe para ignorar todos essas percepções, a reação a tudo isso é inevitável: o seu equilíbrio vem se deteriorando…

A jovem psiquiatra abre a boca para se defender, para expor suas razões e mostrar a tal mulher que ela está errada, totalmente equivocada, mas não consegue encontrar a energia necessária.

— Eve não deveria ter te levado pra lá…

— O diretor Orlando me disse a mesma coisa, que ele, Eve, me escolheu… —

“Doutora… Eu tentei… Eu a trouxe para cá…”, a aparente confissão que Eve lhe fez há três dias, ou tentou lhe fazer momentos antes de ele perder o contato com a realidade mergulhando numa crise aguda de esquizofrenia, passando a se comportar hipoteticamente como outra pessoa, toma de súbito todos os recantos da mente de Gabriela. Mas ela titubeia logo a seguir, quando a sensação de que aquela lembrança, aquela pseudoconfissão, aquele registro de seu cérebro não lhe parece nada mais que uma recordação distorcida.

— Mas isso é impossível — ela reage; as palavras escoam quase maquinalmente — Um paciente nas condições do desembargador não tem capacidade de escolher o médico que irá trata-lo… — afirma um tanto reflexiva.

— A principal e mais grave punição para quem cometeu uma culpa está em sentir-se culpado… — Laura diz — Para Eve, a ilusão talvez seja a abstração de uma mente cansada da própria realidade, das correntes que vem arrastando por todos esses anos…

— O desembargador sofreu um grande trauma…

— Por que você não aceita a hipótese do diagnóstico de transtorno dissociativo de identidade? As vozes invadindo a mente de Eve, as alucinações auditivas, os delírios, a dissociação de identidade que se desenrolou diante de você, Gabriela…

— O próprio Arnoldo desmente tudo isso…

— E depois volta a afirmar. E a negar. E a afirmar mais uma vez em um ciclo sem fim, desesperado para que você o salve…

— Não sei por que estou me permitindo discutir o tratamento do meu paciente com você… — Gabriela balança a cabeça, consternada — Isso não deveria estar acontecendo…

— Você mesma sempre se questionou o motivo do seu paciente insistir em pensar e sentir o mundo como um pseudoadolescente — Laura evoca; a voz agressiva, mais agressiva do que gostaria — E quando a resposta lhe foi entregue, quando a verdade começou a ser descortinada à sua frente…

— O meu paciente é portador de esquizofrenia com característica paranoide.

Um silêncio brutal, estranho, se coloca entre as duas, fazendo com que Gabriela se sinta inesperadamente como uma intrusa dentro do seu próprio lar.

— É no que ele, Eve, quer que você acredite — Laura se pronuncia sem pressa, como se tivesse proferindo uma sentença.

— Do que é que você está falando agora? — Gabriela indaga com a voz afetada, erguendo as sobrancelhas — O desembargador é apenas um paciente.

— Você precisa se afastar de Eve, Gabriela. A intenção dele em mantê-la por perto está se tornando cada vez mais nociva…

— Mas ele não me faz mal — a jovem psiquiatra pondera quase sem acreditar no que acaba de dizer — Ele não me deseja mal — afirma, porém, mais para si própria — Eve é um paciente, que como tantos outros também precisa de um tratamento…

— O raciocínio do ser humano é marcado pela dualidade — diz Laura olhando a jovem psiquiatra nos olhos — Bem e mal. Luz e sombras. O mal e o bem são pontos de vista, nada mais. E você vai ter a certeza disso ao perceber, ou reconhecer, por fim, a verdade, ao notar a real intenção de Eve… Toda mente é um oceano, senhorita. Há superfícies e profundezas em todos nós.

Laura ergue o olhar, correndo com eles de um lado para o outro rapidamente, como se estivesse em busca de olhares invisíveis que a estivessem observando até voltar, no instante seguinte, a encarar a dona do pequeno apartamento em que se encontra.

— Pensávamos que você, Gabriela, que a sua presença seria passageira, mas você nos surpreendeu, adquirindo uma autonomia inesperada — Laura fica momentaneamente pensativa antes de continuar — E Eve acabou perdendo o controle.

Gabriela dá mais um passo para trás. Todos os seus sentidos estão em alerta, mas não consegue mais identificar na tal mulher uma ameaça em potencial. E por mais que tente, por mais que lute bravamente com todos os seus instintos a fim de detectar em Laura, ali, parada à sua frente, não muito distante, indícios contraditórios ao da crescente sensação de familiaridade para com essa estranha, sente-se gradativamente frustrada.

— Você ainda não me disse quem é — ela protesta — Não me disse se essa Laura citada na carta é de fato você. E se for você, qual a sua ligação com o meu paciente. Por favor, me diga.

— Retorne pra clinica, por favor, Gabriela. Mas vá desarmada de toda e qualquer convicção. Ouça Eve. De verdade. Leia nas entrelinhas o que ele realmente quer lhe dizer. Como eu falei há pouco, a convergência entre vocês dois está além da interação médica e paciente.

— Por que o desembargador nunca me falou de você?

— Gabriela — Laura dá um passo adiante — A pergunta é porque o seu paciente nunca lhe contou nada além da sequência de acontecimentos que ocorreram na chácara, naquela tarde de carnaval, quando encontrou os pais do seu ater ego assassinados.

— O meu paciente é portador de esquizofrenia com característica paranoide.

Laura recebe novamente a réplica áspera de Gabriela enquanto observa a perplexidade se desenhando em cada linha do rosto da jovem psiquiatra.

— O outro desempenha sempre na vida de um indivíduo o papel de um modelo, de um objeto, de um associado ou de um adversário…

Laura diz retoricamente sem deixar de perscrutar Gabriela, que segue resistindo em alienar-se no mar de confusão de emoções onde se reconhece cada vez mais à deriva.

— Você mesma, repito, Gabriela, vem se questionando das razões que supostamente estão impedindo “o desembargador de se fazer presente”, induzindo-o a pensar e sentir e perceber nesses últimos seis meses o mundo como um pseudoadolescente…

— Seis meses? — Gabriela interrompe bruscamente a suposta estranha.

— Sim, Gabriela. Seis meses. Você está há seis meses sem conseguir nenhuma evolução do seu paciente. Já se perguntou o porquê? Por que ele não quer. Por que Eve não quer perdê-la.

— Estamos em julho… Sim. As minhas anotações… Eu tenho certeza… Eu estive com o Eve há três dias, há três dias…

— Ah!, Gabriela. Você ainda resiste em enxergar o que está à sua frente… Você sai da Clinica e depois aparece no estacionamento do prédio onde mora… Mas e o caminho? O trajeto de um lugar para o outro? Você se lembra? Não acha um tanto estranho sempre estar sozinha no trajeto do saguão até aqui, no seu apartamento? E seus vizinhos? Onde eles estão? Você interage com algum deles? E esses sonhos? Esses despertares frequentes como se estivesse adormecida por um longo período e que só aumentaram nesses últimos dois meses?

Laura se detém diante do toque do seu celular.

— Do que você está falando? — Gabriela indaga ao passo que reconhece a música setentista na chamada do aparelho; um trecho da mesma canção que seus pais, ou os pais de alguém, adoravam — aquela recordação controversa —, mas que ela sempre odiara e que jamais fizera questão em aprender.

— Como disse, não posso me demorar — afirma Laura e pela primeira vez demonstrando alguma agitação após identificar a chamada no visor do telefone — O progresso de Eve é inevitável — ela complementa depois de se recompor num instante — Ao menos o necessário para ele poder sair desse casulo em quem se meteu e começar a compreender um pouco de si próprio. E sem você, claro, será mais rápido. Temos pressa, Gabriela. Situações extremas exigem medidas extremas. Seis meses… Já esperamos demais. Eve, ao invés de uma clínica psiquiátrica, poderá ir para em uma prisão, onde com certeza não iria sobreviver.

— Ele já está…

— Júlia Mathias está fazendo o que pode e vai conseguir… Infelizmente Eve teve uma recaída brusca e precisou ser…

— Júlia? Júlia tentou o suicídio e infelizmente não resistiu… — Gabriela responde convicta.

— Você tem certeza? Quem foi que lhe disse isso? Você buscou averiguar?

Laura não recebe nenhum retorno por parte da dona do apartamento.

— É o que queriam que você pensasse Gabriela. Uma cartada final para fazer com que você finalmente decidisse partir…

A jovem psiquiatra, embalada pela maré confusa de pensamentos, começa a rir histericamente até se recompor, suspirando logo em seguida.

— Até onde o diretor Orlando e o Claus chegaram para me convencer a mudar o meu diagnóstico… — ela pondera, confrontando a invasora com extrema determinação — Sai daqui. Agora.

— Falta pouco para Eve ir a julgamento pelo triplo homicídio que cometeu…

— Triplo homicídio? — Gabriela indaga.

— Estamos tentando sobreviver num mundo de loucos. Estamos cansadas, desgastadas, vazias, não é mesmo Gabriela? — Laura questiona, retórica — Devemos ter caos dentro de nós para dar à luz uma estrela dançante — diz, voltando a olhar rapidamente para o celular — Como disse, não posso me demorar. Esse viés do ponto cego está prestes a ruir. Ele, ainda, não está preparado para me reencontrar…

— Do que você está falando agora? Por Deus, o que é tudo isso? — Gabriela meneia a cabeça, apertando os lábios, perdida em suas indagações — Não, não. Eu não quero saber de mais nada. Toda essa loucura, sim, essa insanidade…

— Me diga quando foi a última vez que viu seu companheiro?

— O quê?

— Por que Dorlan nunca está por aqui? Eu demorei um tempo para descobrir que ele elegeu, transformou esse lugar, esse apartamento de vocês em um campo neutro. Imaculado. Bloqueando a si próprio de se aproximar, pois a energia deste lugar lhe trazem recordações felizes, sim, mas também dolorosas…

— Dorlan? O que ele tem a ver com tudo isso?

— Retorne para a clínica, por favor, Gabriela. Temos pouco tempo. Eve tem pouco tempo. Volte para a clínica e ouça o que o seu paciente tem a dizer, mas desarmada de tudo e todas as coisas.

Gabriela volta a buscar o celular no seu entorno.

— Há uma foto de Dorlan na sala. Na parede… — Laura informa, tentando evitar mais perguntas.

Gabriela encara a interlocutora de maneira destemida e daí avança rumo à sala do seu pequeno apartamento, determinada, como uma criança depois de ter recebido a informação de que um presente a aguarda, passando por Laura como um foguete, abastecida pela ansiedade de finalmente poder encontrar, conhecer ou até mesmo reconhecer o seu companheiro, ainda que através de uma imagem, um instante congelado no tempo e no espaço, não obstante tudo isso lhe parecer um completo e irrefutável estado de insanidade.

Um tanto ofegante, para, por fim, a alguns passos diante da fotografia pendurada, única, na parede próxima à janela, uma parede carregada de uma mistura peculiar em que o amarelo e o violeta se alternam; cores opostas e idênticas, iguais e desiguais, dando a impressão de estarem prestes a invadir o espaço uma da outra.

Antes de começar a se aproximar, Gabriela se questiona do porquê de nunca ter notado aquela imagem e nem mesmo as cores nessa parede, somente nessa parede. Ela engole em seco enquanto caminha com passos morosos, como se estivesse hesitante em confrontar o retrato até, finalmente, ficar frente a frente com o quadro emoldurado, olhando-o fixamente, a princípio sem reconhecer o seu conteúdo, sendo invadida por um mar de emoções e sensações contraditórias com sua mente indo atrás de alguma referência, um nome, um sinal, um bordão. De repente, imagens pálidas, confusas, qualquer coisa disforme, começam a se formar, alinhando-se, aos poucos, reunindo-se, permitindo a Gabriela vislumbrar um homem esbarrando, displicente, em alguns móveis, vestindo um terno azul-marinho com uma gravata social em tom claro e camisa social também clara, entrando na cozinha daquele pequeno apartamento. Entrever um homem avançando sobre ela, derrubando-a no chão e apertar seu pescoço… Avistar um homem a observando, lastimoso por seus sentimentos, sua paixão por ela escorrer pelos dedos sem que conseguisse reagir…

Dorlan, Dorlan…

Gabriela é tomada pela absurda sensação, uma sensação que já não lhe parece tão estranha assim, de que o companheiro não é real. De que nunca foi real. De que só ouvira relatos, histórias a seu respeito e que ela acabou por criar uma vida, falsas recordações em cima disso…

A nitidez da fotografia pendurada e seus contornos vão se tornando mais e mais distintos enquanto a jovem psiquiatra é atingida por um pressentimento híbrido, uma sensação mesclada a um déja vu remetendo-a a um passado que faz seu coração acelerar diante de uma recordação perdida.

— Márcio Antônio!

Gabriela exclama, reconhecendo a imagem diante de si numa sincronia alarmante que vagueia entre a epifania e a aflição.

Concepção e arte, Crsitna Ravela

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