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Removidos – Capítulo 7 – A Remoção

Senti forte dor no braço direito seguida de uma dormência que propagou por todo o corpo. A luz tornou-se forte novamente. Como se um véu tivesse erguido diante de meus olhos. Vi-me noutro lugar, parecido com um quarto, paredes lisas, brancas e arredondadas.

Ao tocá-las, tornavam-se transparentes. Deslizei a mão de maneira a desenhar um círculo e no mesmo instante abriu-se uma área transparente semelhante a uma janela. Pude ver um ambiente diferente que havia do outro lado: outras paredes como divisórias feitas de um estranho material. Não consegui perceber mais detalhes, pois, alguns segundos depois, o local tornou-se opaco novamente.

Maravilhado com tudo aquilo, não deixei de notar uma cama bem próxima de mim, a qual flutuava. Resolvi deitar e ao fazê-lo, senti que o aparato se moldou perfeitamente às irregularidades do meu corpo. Isso proporcionou um profundo relaxamento. Olhei para minhas pernas e notei que estava usando uma roupa diferente, feita de um tecido vivo, que se mexia para se moldar perfeitamente ao corpo. A roupa promovia uma sensação ótima de bem-estar. Olhei, então, para as mãos e vi que estavam escuras.

Uma entidade, diferente daquela que me contatara, apareceu atravessando a parede sem a menor resistência.

– Como está, Fernando? Sente-se bem?

– Sinto-me estranho. Onde estou?

– Devo uma explicação: este lugar foi projetado para lhe dar a maior tranquilidade possível. Você está em adaptação. Obterá consciência integral aos poucos. O objetivo é deixá-lo em paz para que possa se desenvolver sem qualquer resistência.

– Por isso fui confinado aqui?

– Confinado não é a palavra mais adequada. Você está em adaptação até que se sinta forte. Não existe confinamento neste mundo. Em breve explorará o mundo lá fora. Aproveite a chance de aprender.

“Isso é loucura”. – Pensei

E quando o ser estava prestes a sair, deteve-se e disse:

– Fernando, o módulo de repouso está programado para lhe fornecer um descanso profundo. Aproveite. Tenha bons sonhos.

– Sonhos; acho que é só o que me resta.

Assim que o ser partiu, deitei. Estava bem cansado. Os olhos estranhamente pesaram e assim entreguei-me. Sonhei com Ely. Não sei por quanto tempo dormi. Despertei totalmente restabelecido, com uma calma indescritível. Sentia vontade de pular, correr, cantar. Que ânimo!

Uma das paredes do quarto vibrou e tornou-se diáfana. Era novamente o ser agora acompanhado de outro como ele.

– Podem entrar, ou atravessar, seja lá como se fala aqui.

– Peço desculpas, mas gostaria de apresentar-lhe sua nova acompanhante. Ela o orientará na sua adaptação. – Era um ser muito delicado, com traços bem femininos, cabelos escuros e longos, olhos negros penetrantes. Seus lábios bem contornados tocavam-se com leveza dando-lhe uma perfeita harmonia ao semblante sereno. Seu corpo esguio e curvilíneo expressava movimentos elegantes e comedidos.

– Como devo chamá-la? – Perguntei interessado, pois, estranhamente senti-me atraído.

– Aqui não temos nomes. Somos sentidos. E é a sensação sobre o próximo que deveremos evocar todas as vezes que desejarmos nos comunicar. Por isso, não precisamos de nomes. – Respondeu a entidade feminina de maneira tão gentil. Enfim, começava a me acostumar com todas aquelas estranhezas.

– Muito bem. O que faremos agora? Estou ansioso para explorar o novo mundo.

A parede se abriu e nós três saímos. Não consegui ver nada além de uma forte luz branca.

– Não vejo nada agora. – Ressaltei.

– Relaxe sua mente. – Disse a entidade feminina. – Não consegue ver, pois, há um bloqueio natural em sua percepção. Isso evita que conceba algo além daquilo do que está acostumado. Feche os olhos.

Obedeci, e a entidade prosseguiu com a explicação:

– Primeiramente tente sentir o aroma do lugar. – Inspirei profunda e lentamente. Senti um leve aroma cítrico, refrescante.

– Ótimo. Continue com os olhos fechados. Tente agora sentir a temperatura.

– Refrescante. Uma suave brisa toca minha pele. Sinto que desliza por sobre as mãos e rosto.

– Parabéns! Está lembrando-se dos sentidos reais. Agora, abra os olhos bem devagar.

Aos poucos descerrei os olhos. A princípio a luz inundou as retinas causando-me certo incômodo. Em seguida, a ofuscação diminuiu e, de imagens disformes, surgiram vultos que se definiam até surgir uma exuberante paisagem. Era um mundo extasiante, totalmente diferente de tudo o que já havia visto. Ao notar meu encantamento, a entidade feminina disse:

– Bem-vindo. Você conseguiu se adaptar muito bem. Você agora percebe, concebe e sente seu novo lar.

– Incrível! – Foi só o que consegui dizer.

Lembro que a primeira coisa que pude vislumbrar foi o céu. Uma luz pálida oriunda de um sol gigantesco aquecia delicadamente meu corpo. Animais voadores, não eram pássaros, cujos corpos refletiam chispas prateadas à medida que mudavam de direção. Depois foi a vez dos jardins com flores iridescentes, nada igual e difícil de descrever. Oscilavam de um lado a outro mesmo na ausência de brisa.

A entidade feminina apontou para uma construção, uma espécie de marco em forma de esfinge, deitada sobre um pedestal dourado, erguida (segundo ela) em homenagem aos removidos. Ao redor da esfinge, outros indivíduos passeavam tranquilamente por sobre o gramado que mais parecia um tapete de veludo verde. Não notei qualquer tipo de veículo transitar. O silêncio e bem-estar predominavam.

Senti-me inebriado. Ao lado sul de onde estávamos, avistei uma praia. A entidade logo notou meu interesse e também se voltou para aquele oceano de um profundo azul escuro. Dei por falta da primeira entidade a qual procurei para falar-lhe sobre meu encantamento, porém, havia desaparecido sem aviso.

Decidimos caminhar até a praia, cuja distância até lá não passava de uns cem metros. Toquei meus pés na areia branca e fina. A água enrolava-se nela bem calmamente. A entidade feminina avançou em direção ao mar até a altura da cintura. Fechou os olhos e estendeu o braço esquerdo mantendo a palma da mão para baixo. Subitamente, a superfície borbulhou intensamente e uma enorme criatura cinza e alongada saltou para fora d’água à moda dos golfinhos que conhecemos. Aquele ser gigante, de aparência pré-histórica, chegou bem perto da entidade e pousou a cabeça em sua mão. A princípio recuei de medo, mas este foi suplantado pela curiosidade:

– Que animal é este?

– Animal não. Um amigo que não tem medo de se interagir com outras espécies. Quer ver uma coisa?

– Claro. – Respondi.

– Vê a água?

– Sim.

– Agora observe. – A entidade mais uma vez fechou os olhos e rapidamente a água remoinhou. Fiquei assustado. Num estrondo, outra criatura gigantesca, maior do que a primeira, emergiu. Parecia uma baleia de pele escura e no lugar de nadadeiras, tentáculos enormes.

A criatura esticou um de seus braços e tocou delicadamente a outra mão da entidade. Todos se interagiam sem que produzissem qualquer tipo de som. A entidade abriu os olhos e disse: Vão em paz. – E os gigantes retiraram-se para as profundezas.

– Como? Aqueles bichos, desculpe, seres, poderiam te esmagar facilmente.

– Convivemos em paz e respeito mútuo. Aqui não existe cadeia alimentar.

– Então, como se alimentam?

– Bactérias vivem em simbiose com nossos organismos. São elas que nos suprem de todos os nutrientes e vitaminas que necessitamos. Em troca, fornecemos o ambiente e temperatura necessários.

– Precisarei séculos de adaptação. – Refleti.

Prosseguimos com o passeio pela areia. Após um bom tempo absorto, resolvi continuar a explorar mais aquele curioso mundo. Como a sociedade seria organizada? Existem famílias aqui? – Perguntei.

– Aqui não há hierarquia nem leis que oprimam a expressão. Duas leis apenas foram criadas: Respeito à Entidade Maior e amor ao próximo. Quanto ao núcleo familiar, os patriarcas são responsáveis não só pelos seus filhos, como também, pelos filhos de seus vizinhos. Todos se empenham em educá-los da melhor forma possível. Caso os pais tenham que se ausentar por um longo período, os filhos permanecerão sob a guarda da família que se propuser a ajudar.

– Isso é impressionante! E dá certo?

– Sim, sempre foi assim. Os pais adotados são respeitados e amados como pais verdadeiros.

A entidade deu uma súbita pausa na conversa e deteve-se mais uma vez diante do oceano. Fiquei a uns dois passos atrás dela sem entender o motivo de sua interrupção. Parecia meditar. Sua tez negra refletia o dourado da luz do sol, cuja resplandecência conferia-lhe um aspecto quase místico. Que visão! A paz era possível. Tomando o cuidado de não a incomodar, aproximei-me dela para apreciar seu lindo perfil. Foi quando senti um frio percorrer minha espinha. De repente, ela pareceu-me familiar. Sim, ela sem dúvida era bem familiar. A lembrança de Ely emergiu com total força. Juntamente com a lembrança, fui dominado pelo pânico de não mais poder ver a Terra. Que sensação era aquela que me oprimia o peito? Tive de sair dali. Fui caminhar. Perdi a cadência dos passos, cai. Bati o rosto na areia.

“Não posso ficar aqui. Não sou daqui.” – Pensei repetidamente.

Levantei e continuei caminhando e quando me dei conta, estava próximo da esfinge. Crianças brincavam aos seus pés. Senti uma forte dor no braço direito, mas logo passou. Cansado, sentei num daqueles bancos flutuantes de jardim. O aroma das flores acalmava. Senti duas mãos deslizarem delicadamente sobre meus ombros.

– Entendo o que sente: saudades de casa. Aqui é o seu novo lar. Não se preocupe. – Disse a entidade feminina.

– Não sei por que, mas você lembra uma pessoa muito importante pra mim.

– Ely?

– Como sabe?

Pela primeira vez a entidade abriu um lindo sorriso.

– Sou eu.

Recuei. Tentei buscar em seu rosto algum traço familiar, algum sinal, até que finalmente, para meu espanto, consegui enxergar a Ely nas profundezas de seus olhos.

– Venha, Fernando. Vamos até aquele pequeno lago.

Não conseguia desviar a atenção dela. De mãos dadas, caminhamos. Eu mal conseguia controlar a emoção. Paramos diante daquele esplendido espelho d’água que servia de moldura para os meus sentimentos.

– Incline para ver seu reflexo. – Disse a entidade (Ely?) a tocar sua mão em meu rosto.

Receoso, inclinei vagarosamente. Pela primeira vez, desde que cheguei àquele lugar, vi meu reflexo.

– Meu rosto está diferente… não me reconheço. – Eu tinha traços finos, delicados. Os olhos, sim, os olhos me impressionaram. Eram maiores, escuros e com um brilho que emergia da alma.

– Como pode isso? Como pude mudar assim? – Indaguei completamente aturdido.

– Átomos-correspondentes. É um novo corpo.

– Mas você… Você morreu em meus braços. Testemunhei seu rosto mortalmente pálido.

– Não, Fernando. Removeram-me para este corpo no momento em que fui fuzilada. A morte não existe para aqueles que vivem com a consciência da Entidade Maior.

– A morte não existe?

– Correto. Morte é decorrente de um erro cometido há muito tempo pelos inimigos da Entidade Maior.

– Não sei o que dizer nem como reagir. Fico feliz ou devo duvidar desta fantástica revelação?

– Terá tempo para decidir. Precisa descansar agora. Vou levá-lo ao seu alojamento. Encontraremos os outros logo mais.

Mais uma vez olhei-a fixamente e me aproximei de seu rosto; desejei beijá-la:

– Poderíamos reviver nossos momentos. Quem sabe pudesse ficar comigo esta noite.

– Por certo seria como antes, diria até melhor, mas este não é o momento. Sua adaptação é a prioridade. – Ela, então, levantou-se e carinhosamente deslizou sua mão pelo meu rosto e saiu.

À noite, recebi a visita de uma nova entidade encarregada de monitorar a minha adaptação.

– Como se sente?

– Bem, mas tenho recaídas. À medida que o tempo passa, as lembranças da minha vida passada se desbotam.

– É comum no início. Ainda levará mais um tempo até poder lidar melhor com antigos sentimentos e as novas experiências.

– Eu… Eu gostaria de dar uma última olhada em meu planeta. Isso seria possível?

– Sente falta, não?

– Muita. Sei que o ser humano é repleto de defeitos, mas sinto falta das imperfeições. Acho isso fascinante.

– Entendo. No entanto, alerto que poderia ser perigoso. Correria o risco de uma ida sem volta.

– Seria breve. – Insisti.

– Não faria isso se fosse você. Dadas as circunstâncias, jamais conseguiria se reajustar com a informação que possui agora.

A entidade se foi sem dizer mais nada. No entanto, seu comentário só serviu para fortalecer o desejo de voltar.

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