Você está lendo:

Segredos Mortais – Capítulo 4

Aldeia de Xeeva, atualmente.

Após cinco anos nesta aldeia, e depois de tudo pelo que passei, não imaginei que sentiria falta daqueles tempos. Hoje, por mais que quisesse uma reaproximação, por mais que quisesse ver minha família, já seria tarde demais, aquela criança inocente e perdida não existe mais, deu lugar a uma criatura cuja visão não os deixaria feliz.

Não parece que tanto tempo já se passou. Quase todas as noites, sou assombrada com a lembrança dos olhos angustiados de minha mãe, fixos em mim antes de cair desacordada.

Xeeva é uma distinta aldeia povoada por seres cujo gene foi alterado naturalmente, como alguns vampiros e bruxos e outros que sofreram mutações genéticas. Estes seres, por gerações, lutaram e ainda lutam para preservar suas vidas e manter suas tradições e segredos bem guardados. Mesmo com a diferença existente entre nós, tínhamos os mesmos direitos e éramos tratados com igualdade. Quando surgia alguma desavença, era na arena que resolvíamos. Daniel era o líder da aldeia e atualmente uma espécie de protetor. Quanto às desavenças…  Ele é bem rígido. 

Xeeva é um lugar perfeito para nós. Todas as noites eu confirmo isso. Eu não pretendia viver em um lugar onde não houvesse ninguém da minha espécie. Queria apenas me afastar daqueles que tinham o meu sangue – minha família, que agora o queria. 

– Um doce por seu pensamento! – Resmungou Gabriele, sentando-se ao meu lado.

– Sabe que não gosto de doces. – Sorri dando-lhe um leve empurrão. Gabriele era a melhor amiga que tinha ali, além de Daniel que havia se tornado uma espécie de protetor e pai. Ela havia chegado meses depois de mim, seu dom era diferente, ela era uma bruxa. Uma bela bruxa. Seus olhos verdes e arregalados pareciam combinar com o verde das árvores. Seus cabelos encaracolados, cor de mel, tinham um caimento perfeito em seus ombros. Sem contar que suas curvas eram bem acentuadas para sua altura, que se eu estiver certa, deveria ser 1,70m. Se fosse uma modelo, deixaria as agências malucas e milionárias.

Após ter sido bruscamente arrancada de minha casa, a força, por dois brutamontes – prefiro a expressão sequestrada, já que foi contra a minha vontade –, eu até posso dizer que gosto daqui. Não vou negar que levei algum tempo para me adaptar às novas regras, e algumas até me fazem lembrar-se de minha mãe. Mas mesmo tendo criado rapidamente certa aliança com Gabriele, não gostava de falar da minha antiga vida. Por mais que fosse difícil, queria esquecer.

– Pronta para o treino? Daniel mandou te chamar, todos já estão se preparando. Não demore. – Disse Heitor se apoiando na janela e saindo em seguida.

– Já vou. – respondi. Mas assim como chegou saiu, sem ouvir minha resposta. Alguma coisa nele me chamava a atenção, e não era sua beleza. Havia alguma coisa familiar nele…

Gabriele era de uma família nobre e filha do feiticeiro mais venerado das redondezas. Seu pai e Daniel já mantinham uma amizade de longa data. Diferente de nós, ela não estava ali contra sua vontade, e sim para aperfeiçoar suas habilidades e resistência. A magia era essencial, mas a força física era fundamental. 

– Por que não faz uma magia? – Zombei de Gabriele observando-a tomando um banho na pia enquanto lavava alguns pratos, sem talento nenhum.

Ela olhou pra mim fazendo uma careta.

Aqui cada um é responsável por alguma coisa, às tarefas não costumam ser divididas por sexo, “homem ou mulher”, já que praticamente temos a mesma força. O divertido é exatamente isso, o desafio. Quando acordei após o incidente em minha antiga casa, anos atrás, a primeira pessoa que vi foi Daniel.  Não posso dizer que foi um dos melhores encontros. Porque não foi. Nem um pouco. Se tivesse a força que tenho hoje, teria arrancado sua cabeça e as dos demais que tentou me segurar, impedindo que me esgueirasse mata adentro. Até hoje os antigos, como chamamos, me zoam, lembrando-se do dia em que cheguei aqui. E o apelido que me colocaram se perpetua até hoje. “Rebelde”.  E olha que nem acho que dei tanto trabalho assim. Hoje a coisa seria bem diferente.

Daniel é um homem cheio de segredos e mistérios, ninguém sabe quase nada sobre ele, apenas que ele assumiu a aldeia após uma grande rebelião onde praticamente todos foram mortos. Com isso, ele se tornou responsável pela pequena aldeia que se expande cada vez mais, a cada dia, com a chegada de um novo membro. Hoje somos aproximadamente 50 habitantes. Não é muito, eu sei, mas o número seria maior se Leonel não viesse todo mês fazer suas retiradas. Nós somos treinados como soldados e preparados para uma guerra, onde só os mais fortes sobrevivem. E é assim mesmo. A cada lua cheia é realizado um torneio conhecido como “Desafio Mortal”, onde há três jurados: Leonel, Daniel e Malcon. Todos nós somos obrigados a participar do duelo.Daniel diz que essa luta idiota serve para provar quem é mais ágil e forte. Os vencedores continuam na aldeia para aperfeiçoar ainda mais as habilidades, enquanto os perdedores são levados por Leonel e Malcon para servirem o “imperador” e muitos deles são usados na fortaleza como cobaias de experiências genéticas. Os boatos que ouvimos entre os antigos são macabros. Os recém-chegados, “iniciantes” como são conhecidos, têm um ano para se prepararem, depois disso é vencer ou morrer, já que ouvimos dizer que muitos que vão para a fortaleza não costumam sair vivos de lá.

– E aí pessoal quem quer levar uma surra hoje?

Gabriele olhou para Daniel, que devolveu o olhar pra mim quase me repreendendo. Mas ele não podia negar que gostava das minhas provocações. Eu via como uma forma de desafiar os destemidos… E funcionava.

– Vamos! Quero todos em posição. – Segurando seu velho bastão nas mãos, o levantou acima da cabeça girando rapidamente.  Um vento forte surgiu inesperadamente deixando todos atentos. 

– Prestem bem atenção. – Ordenou. – Não quero saber de brincadeiras, vocês têm apenas três dias para treinar e dar o melhor que puderem. Sabem muito bem como funciona. Leonel não terá piedade ao levar os “Perdedores”. Para mim todos vocês são ótimos guerreiros, mas infelizmente em uma luta só existe um ganhador.  Então, lutem para valer. A lua cheia se aproxima, e com ela a morte.

As palavras de Daniel eram duras, mais precisavam ser. Ele lamentava essas regras, já havia tentado interferir e isso resultou em uma grande baixa no número de guerreiros. 

Ele tinha todos ali como seus filhos e sei o quanto sofria quando um de nós era levado.

– Lara, sem provocações. – Levantei as mãos no sentido de dizer “OK”. Ele devolveu o olhar com a expressão firme, como querendo dizer “É sério”. Sorri, saindo da arena. Enquanto os outros gritavam meu nome, de forma provocativa.

– Depois sou eu que começo né?! – Gritei olhando para Daniel. Ele respondeu fazendo um sinal para que ficasse ao seu lado. E eu obedeci. Após algumas horas de treino, socos, sangue e arranhões, Daniel nos liberou.

– Escapou por pouco hein, Lara?! – Disse Heitor em tom de deboche, enquanto pegava suas coisas que havia deixado ao pé da Mangueira.

– Eu escapei? Há, Há, Há. Você que foi salvo por Daniel que parou a luta com peninha de você. Mas amanhã vou quebrar seu outro braço, já que não posso quebrar o pescoço. – Sorri cinicamente tentando impor desafio, mas saiu mais como piada. Ele gargalhou e saiu jogando a camisa no ombro. E que ombro. Era entendível a atração que Gabriele tinha por Heitor, ele tinha um corpo no qual defeito algum tinha lugar. Não que eu reparasse, é claro, até porque, além de ser quase namorado de minha melhor amiga, não fazia meu tipo, mas não podia negar que ele tinha uma beleza bem exótica.

Faltava pouco menos de uma hora para o anoitecer, e a sexta-feira era especial, por isso todos esperavam pela noite com certa ansiedade. Costumávamos fazer uma grande fogueira, e em volta dela passávamos a noite inteira conversando, contando histórias e nos conhecendo melhor.

Os treinos eram de certa forma, divertidos, era lá que aproveitávamos para resolver as diferenças. Sempre havia um que queria se destacar se achando o maioral. Mas nas sextas-feiras, todos eram iguais. Eu convidei Gabriele para dividir a cabana comigo, sugestão que Daniel havia dado no dia em que ela chegou, e hoje, eu o agradeço. Geralmente passamos horas conversando, e muitas vezes éramos repreendias pela bagunça que podia ser ouvida a distância. Gabriele adora treinar sua magia comigo, e às vezes até arriscava “tentar” me ensinar algumas coisas. Mas não tenho o seu talento. Enquanto caminhávamos entre as árvores não pude deixar de falar sobre sua ótima apresentação.

– Gabriele, você se saiu muito bem no treino de hoje, fiquei surpresa. Adorei quando quebrou o braço do Heitor, acho que ele está até agora tentando entender como você fez aquilo. – Tentei disfarçar o riso inutilmente. Ela sorriu de volta devolvendo o leve empurrão que havia lhe dado horas antes.

– Espero que ele não fique chateado, são ossos do ofício. – Ela sorriu com satisfação.

Todos ali já haviam percebido a queda que ela tinha por Heitor, que era como filho de Daniel, e por consequência, um dos mais fortes e experientes, já que foi um dos primeiros a chegar ali. Seu jeito irônico e selvagem tirava qualquer um do sério com facilidade. Mas por trás do seu jeitão de homem das cavernas, seu belo corpo físico, cabelos revirados até o pescoço e belo par de olhos verdes, concluía uma combinação perfeita de um guerreiro medieval. Poucos ali entre nós conseguiram levá-lo a nocaute. Precisávamos comemorar.

A aldeia de Xeeva era de uma beleza deslumbrante, o que nos fazia esquecer às vezes, o que realmente éramos. Em sua volta, formando um círculo fechado, havia uma vasta floresta, algumas árvores eram verdadeiros arranha-céus, o que aos nossos olhos formavam uma espécie de casulo em volta da aldeia. Além de nós, vários animais de diferentes espécies viviam ali. Sem contar os rios, cavernas e cachoeiras com mais de cinco metros de altura. Era realmente espetacular. Sentia-me em casa. No silêncio da noite, a sinfonia do som das cachoeiras e dos animais noturnos nos fazia viajar por um mundo mágico, que por noites encobriam as lamúrias que ecoavam na aldeia.

A Widcyber está devidamente autorizada pelo autor(a) para publicar este conteúdo. Não copie ou distribua conteúdos originais sem obter os direitos, plágio é crime.

Pesquisa de satisfação: Nos ajude a entender como estamos nos saindo por aqui.

Leia mais Histórias

>
Rolar para o topo