Há um rio lá fora cheio de promessas e encantos.
Há um rio lá fora coberto de mistérios e desencantos.
E todos os cantos do rio há uma nova descoberta.
Um desbravamento ilúcido e descomunal.
Há um rio aqui dentro que anseia novos ventos, novas passagens e quem sabe de uma fenda numa rocha nasce um litoral.
Matar ou morrer de fome?
O ano era 1988 em Vila de São Cristóvão[1] uma cidade localizada no sertão de Alagoas, e naquela manhã a fome e a sede adentravam nas casas de rebocos como duas vizinhas bisbilhoteiras, enxeridas e perversas que sem dó e sem piedade perturbam as barrigas d’água das crianças e que eram salientes e brilhantes de desilusão e dor do vazio das tripas que se contorciam de fome. Aliás, a falta de comida, de água limpa, de luz e muito menos futuro eram os verdadeiros dilemas do Seu Romão, da sua esposa Maria do Céu e seus cinco filhos. Essa é a realidade cruel que passa de geração em geração nas famílias sertanejas, porém, o patriarca buscava um jeito de tentar “mudar de vida” porque não se conformava que seus meninos tivessem o mesmo destino que o seu ou ainda pior.
A casinha de reboco na qual moravam o Seu Romão e sua família, tinha apenas um quarto onde todos dormiam juntos nas redes e num outro espaço se dividia a sala vazia e a cozinha que tinha um fogão de lenha e uma mesa de madeira velha ao lado. Em cima da mesa havia algumas garrafas pets e cheias de água imprópria para o uso por ser retirada de um açude próximo, e também depósitos de margarinas já usados onde se guardavam açúcar, farinha e sacos de arroz vazios envelhecidos.
Se ver de costas a figura de Maria do Céu, uma mulher com idade de vinte e sete anos, uma longa trança que chegava até a cintura, estatura baixa, franzina, pele branca, mas devido à desidratação e a fome se encontrava desgastada e enrugada, ou seja, ela aparentava mais idade do que possuía. Seus olhos castanhos esverdeados e atentos aos filhos, ao fogão, e, ao mesmo tempo, olhava para o quadro do Sagrado Coração de Jesus Cristo e da Virgem Maria e no canto uma pequena foto de Padre Cícero, já antigos, era na sua fé em que apelava para que as coisas pudessem melhorar.
A dona de casa estava mexendo com uma colher de pau um pouco de arroz dentro de um latão enferrujado no fogão a lenha enquanto no outro braço segurava Dario, seu caçula de um ano, que se encontrava nu e mamando em um dos seus seios e suas mãozinhas seguravam as alças do seu vestido de chita. No canto estão sentadas às meninas: Tereza, de dez anos, Manuela, de seis anos e a Ester de dois anos, que brincavam no chão e nas suas imaginações puras e infantis transformavam as sementes, os caroços de frutas e os ossos de galinha ou boi, geralmente dos restos do que soprava do pouco que tinha de comida, em bonecas que simulavam cenários de uma vida que talvez jamais irão ter.
Apesar de tudo faltar, Maria do Céu fazia questão de deixar a casa impecável onde se podia notar com as vestimentas das filhas, que apesar de usarem roupas doadas de outras pessoas que as deixavam na porta da igreja, a mãe se esforçava em conservá-las para que a medida que uma filha fosse crescendo a outra mais nova reaproveitassem. Terezinha e Manuela usavam blusas e saias folgadas porque se encontravam extremamente magras e enquanto Ester vestia apenas uma fralda de pano.
De repente apareceu Seu Romão, um homem com idade de trinta anos, alto, magro, pardo, cabelos e barba negra e ondulada, olhos castanhos escuros, vestia uma blusa azul, calças jeans e usava chinelas. Ele entrou na casa com um saco pendurado nas costas e ao lado de Francisco o seu filho primogênito de doze anos, o menino era tão magro que se contava suas costelas e se passasse um vento forte poderia derrubá-lo, usava um calção surrado vermelho, sem camisa e calçava chinelas. A mulher percebeu o semblante de preocupação do marido que estava calado, parou em frente à mesa e seu olhar permanecia distante.
— Meninos, vão tudo lá pra fora, vão.
Às três meninas se levantam e a mãe entrega Dario nos braços de Tereza.
— Tereza cuide de Dario. Depois eu chamo vocês.
Às cinco crianças saíram e ficou o casal.
— O que houve, homi?
— O que houve? — pega o saco vazio e a mostra. — Não tem nada, Do Céu, nada! Estou cansado dessa humilhação de viver de migalhas e da boa vontade dos outros.
— Não me diga que vai aceitar trabaiar para o compadre Gilberto?
— Vou! É a única oportunidade que eu tenho, mulé.
— Não! Eu não aceito que você se torne um assassino! Um bandido! Acha bonito isso? Acha certo que teus fios sejam conhecidos por ter um pai pistoleiro? Um pai que mata por dinheiro, Romão?
— Acha justo que essas crianças morram de fome?
Maria do Céu se senta à mesa e começa a chorar.
— Não era esse o destino que eu queria para você e nem para nossa família.
— A gente não tem outra escolha, mulé. — andou em direção a porta.
— Pra onde tu vai?
— Procurar o compadre Gilberto. — saiu.
Seu Romão subiu na carroça com um jumento, seguiu cortando a estrada até chegar na casa de compadre Gilberto que era seu conhecido de longa data. Ao chegar em frente à casa, Seu Romão desceu da carroça.
— Gilberto! Compadre Gilberto!
Escutasse sons de tiros vindos da parte de trás da casa. Seu Romão fica curioso, segue os sons dos estampidos e ver Gilberto atirando em algumas garrafas de cerveja com uma espingarda.
— Compadre Gilberto!
Compadre Gilberto era alto, magro, usava um grande chapéu de palha, blusa verde estilo xadrez, calças jeans e botas. Uma longa barba e bigode negros com alguns fios grisalhos na altura da barriga, pardo, olhos castanhos e aparentava uns cinquenta anos. Ele se vira e ver o amigo.
— Olha quem apareceu por aqui, compadre Romão, o que o traz?
— Pensei muito na sua proposta.
— É mesmo? — atirou em uma garrafa.
— Eu vou aceitar trabaiar para o compadre.
— Vamos ver se o compadre leva jeito para a coisa. Tenho um serviço que o Seu Leopoldo me encomendou e se sair como o combinado ele vai me pagar bem e vou te dou um agradozinho.
No final do dia, compadre Gilberto e Seu Romão estão armados e de tocaia atrás de algumas pedras em frente à casa de Tenório, o dono do armazém, que tinha uma dívida com o Seu Leopoldo, um fazendeiro muito influente da região. De repente um homem de pele branca e bochechas roseadas, olhos azuis, gordo, blusa laranja, calças jeans, botas e um chapéu de couro branco, desceu do cavalo.
— É agora, compadre Romão, vamos antes que ele fuja. — saiu do esconderijo com passos largos e rápidos.
Seu Romão estava receoso, entretanto, decidiu o segui-lo.
— Tenório! — gritou compadre Gilberto e lhe apontou a espingarda.
Tenório olhou para atrás e viu os dois armados.
— O que querem? O que vão fazer?
— Fazer o serviço que Seu Leopoldo me pediu. — respondeu compadre Gilberto.
— Não! Socorro! Socorro! Jorginho! Jorginho! Estão querendo me matar! Jorginho! — gritou Tenório correndo pela varanda e saindo pelo lado da casa.
Logo, Jorginho, um jovem negro e franzino, usava uma blusa vermelha estilo xadrez, colete de couro preto, calças jeans e botas, saiu de dentro da casa com uma espingarda e atira em direção aos dois que seguiam Tenório.
— Corre, compadre! Corre! Ele vai atirar em nós! — gritou Seu Romão.
Compadre Gilberto levou um tiro na perna, caiu no chão e gritava.
— Fio de rapariga! Atirou em mim!
— Compadre!
— Vá atrás do Tenório! Vá, Romão! Que eu cuido desse catrevagem[2] do Jorginho. — andou se arrastando até se encostar numa árvore.
Seu Romão estava desesperado e arrependido por ter aceitado a “trabalhar” com o compadre Gilberto, mas sabia que naquela altura já era tarde demais para se arrepender porque o que lhe restava era a morte ou a cadeia. Então, ele correu atrás de Tenório que se escondeu por de trás do trator.
O silêncio tomou conta do lugar, Tenório se encontrava ofegante e decidiu colocar a cabeça para fora do esconderijo e não viu ninguém quando sentiu a boca da pistola em suas costas.
— Levanta! — ordenou Seu Romão.
— Por favor, piedade! — gritou Tenório assustado e tremendo igual vara verde.
Seu Romão levantava Tenório pelo colarinho da blusa o virando de frente e o encostando na porta do trator.
— Eu vim terminar o serviço. — encostou boca da arma no queixo de Tenório.
— A mando de quem?
— Seu Leopoldo.
Tenório começava a gargalhar.
— Leopoldo é um mequetrefe mesmo que invés de contratar um pistoleiro decente resolveu pagar um morto de fome, um miserável e um infeliz como você para me matar. Romão, Romão, você não mata nenhuma mosca, homi. — riu. — É uma pena que quando você estiver lá no xilindró a sua mulher vai ficar aqui me fazendo companhia e será um prazer te colocar um belo par de chifres, seu corno! — gargalhou.
De repente se escutou um tiro que espantou o bando de Assum Preto que estavam em cima de um juazeiro.
— Quem vai te fazer companhia é o cão, seu infeliz das costas oca. Oxente!
— Compadre! Compadre Romão!
Gilberto olha para o corpo de Tenório que estava com um tiro no abdômen.
— O Compadre já fez o serviço. Vamo simbora!
— E o Jorginho?
— Dei um jeito nele. O fio de rapariga teve o mesmo fim que o patrão.
Seu Romão olhou para arma que estava em sua mão e depois viu as gotas de sangue de Tenório misturadas na terra seca. A sua respiração estava ofegante, voltou ao olhar para Gilberto e saiu.
Ao cair da noite, Seu Romão chegou em casa e viu Maria do Céu em desespero na sala.
— Onde tu tava, homi?
— No serviço. — colocava umas sacolas em cima da mesa e a esposa aflita o observava.
— O que é isso tudo?
— Comida.
— Como conseguiu?
Ele ficou em silêncio.
— Fala como você conseguiu essa comida? Fala, Romão! — o puxava pela barra da camisa. — Não! — começou a chorar. — Você matou, Romão! Matou!
As cinco crianças: Francisco, Terezinha, Manuela, com o pequeno Dario nos braços, e Ester observavam discretamente os pais pela porta do quarto.
— Se acalma, mulé, os menino vão ficar tudo assustado com teus grito. — a abraça. — Era o único jeito ou a gente morria de fome. Vá lava o rosto e prepara a comida.
Alguns minutos depois a família estava a mesa. As crianças comiam apressadamente porque era raro ter comida naquela casa enquanto os pais estavam em silêncio e se comunicavam por olhares. O olhar de profunda decepção daquela mulher se encontrava com o olhar do marido que era de vergonha por ter se tornando assassino e, ao mesmo tempo de alívio por alimentar seus filhos.
Terminada a janta as crianças foram dormir e na varanda Seu Romão viu Maria do Céu chorando.
— Do Céu me perdoa, ou era isso, ou…
— Não precisava matar pra dá o que comer aos meninos.
— O que queria? Eu tentei de tudo, trabaiar como vaqueiro, plantar, criar um gadinho ou umas galinhas, mas nada dá certo nestas terras, nada cresce, essa terra é seca igual mulé que não pode parir.
— Quem era ele?
— Tenório, do armazém.
— Seu Tenório era uma boa pessoa, Romão, ele que ajudava na igreja. O que você fez? O que você se tornou? Um monstro! Um assassino!
— Eu prometo que não vou fazer mais. Foi a única vez.
— Não prometa o que não vai cumprir, Romão! — entrou na casa.
Amanheceu e Maria do Céu jogava os pertences de Seu Romão para fora de casa e os filhos assistiam aquela discussão na porta da sala.
— Fora daqui, Romão! Fora!
— Você não pode fazer isso, Do Céu! Essa casa é minha e os meninos também! — gritava em frente a varanda.
As crianças começam a chorar.
— Mainha, não manda o painho embora!
— Não se meta, Tereza! Esse assunto é de adulto!
— Eu vou morar com o painho!
— Você vai ficar aqui e não se atreva a me desobedecer, Francisco!
Maria do Céu com Dario nos braços parou em frente ao marido.
— O que você tá fazendo é malvadeza, mulé, me botar de casa pra fora e ficar longe dos meninos é judiação demais, oxe!
— Malvadeza e judiação é o que você fez. Eu pensei que tinha me casado com um homi bom e decente, mas me casei foi com uma besta feroz, um bandido e criminoso. Agora vai-te simbora daqui. Esqueça que eu e os meninos existe.
O patriarca pegou as roupas e os outros pertences que estavam espalhados no terraço e os colocou na carroça.
— Cuide dos menino. — olhou nos olhos da esposa.
— Eu sei muito bem cuidar deles longe de você. — entrou na casa.
Ele subiu na carroça, viu os filhos chorando, deu uma chicotada no jumento e saiu pela estrada. Seu Romão estava triste, pois sua tentativa de querer saciar a fome de sua família o fez perdê-la e entendia a decepção da esposa como também tinha esperança que não seria aquele o momento de uma despedida definitiva e acreditava que o amor que os uniam fosse mais forte do que o caminho impetuoso que decidiu tomar.
Dias se passaram e Seu Romão estava morando na casa do compadre Gilberto, os dois estavam sentados nos degraus da varanda no fim de tarde.
— O compadre ainda sente saudade da Do Céu. — limpava sua espingarda com um pedaço de pano velho e fumava um cigarro.
— Sinto. A Do Céu é a mulé da minha vida, a mãe dos meus fios.
— Outro no teu lugar acharia bom em ter sido mandado pra fora de casa. Mulé e fios pra gente como a gente é probrema.
— Não sente vontade de ter uma morena aqui para te alegrar?
— Quando quero me alegrar vou na casa da luz vermelha, você me entende, compadre? — deu uma risada.
— O compadre não quer se amarrar a ninguém.
— Por caso sou jumento ou cavalo para viver amarrado?
Os dois homens escutam um barulho vindo do galinheiro.
— Presta atenção, compadre. — caminhou até o galinheiro e em seguida o adentrou.
De repente se ouviu um estrondo de tiro, em instantes apareceu compadre Gilberto segurando uma jiboia morta e retornando a varanda.
— O perigo está sempre à espreita e a gente não deve confiar em ninguém nem na nossa própria sombra. — jogou a jiboia em frente aos pés do amigo. — Se quer viver mais tempo não confie nem em mim, Romão, um dia pode ser eu que vai te trair ou vice-versa. Na pistolagem não há amigos, só inimigos. — entrou na casa.
Seu Romão olhava para a jiboia morta aos seus pés.
De madrugada, Seu Romão dormia na rede da sala da casa de compadre Gilberto quando acordou um vários tiros vazando pelas paredes. Ele rapidamente saltou da rede, se agachou desviando dos tiros e saiu correndo por uma porta que dava para aos fundos.
Alguns minutos se passaram e Seu Romão estava escondido atrás de uma vegetação quando ouviu um cantar de pneus, então decidiu sair do esconderijo, retornou para casa e viu compadre Gilberto baleado em frente a varanda.
— Compadre! Compadre Gilberto! — ajoelhou-se ao lado do amigo.
— Romão…
— Quem foi, compadre?
— Romão…compadre…eu sei de…muita coisa…— o seu sangue jorrava pelo corpo.
— Vou te levar para o hospital, compadre, você não vai morrer, vai ficar bem…
— Não, Romão…me deixe ir…
— Não, compadre! Não!
Os olhos do compadre Gilberto anunciaram sua morte e Seu Romão os fecham com a mão.
— Que Deus tenha misericórdia da tua alma, compadre Gilberto, e que Padinho Padi Cíço te acompanhe. — fez um sinal da cruz.
Dias depois em uma manhã o Seu Romão pegava água no açude quando de repente escutou os gritos de Maria do Céu.
— Romão! Romão!
— Do Céu?
— Romão! O Francisco… — chorava e caindo no chão.
— O que foi, mulé? O que aconteceu?
— O Francisco…oh! Meu Deus! — olhava para o alto.
— Fala, Do Céu! O que houve com o Francisco? — agachou.
— Ele morreu!
— Não! Do Céu, não pode ser verdade! — em desespero a sacolejava.
— É sim, nosso filho morreu!
— Francisco morreu de quê? De quê, mulé?
— De fome! Francisco morreu de fome!
— Meu filho! Não pode ser! Meu filho morreu! — gritava e socava o chão com toda a força que possuía.
Após saírem do açude o casal entrou na sala de casa onde haviam alguns vizinhos rezando uma ladainha de um terço em voz alta. Às três meninas abraçaram o pai.
— Painho! Painho! — gritaram às três.
— Francisco morreu, painho.
— Eu sei, Terezinha. Onde está teu irmão?
— Lá. — disse Manuela apontando para o quarto.
Uma vizinha entregou Dario para Maria do Céu que pegou na mão do marido, o surpreendendo, e o conduzindo para o quarto. O corpo de Francisco estava deitado na cama, ao vê-lo o pai desesperadamente o abraçou e chorou sendo observado pela esposa.
De noite depois do enterro, Maria do Céu dava as mamadeiras com a mistura de água com açúcar que é conhecida no nordeste como garapa para Dario e Ester que estavam deitados na rede.
— Depois que comer, durmam.
Manoela e Tereza se encontravam deitadas em outra rede.
— Mainha, o painho vai voltar a morar com a gente?
— Não sei, Tereza.
— Se painho tivesse aqui o Francisco não teria morrido.
A mãe ao ouvir aquelas palavras ela pensou em repreender a filha, entretanto talvez a Manuela tivesse realmente razão e era difícil e doloroso para ela aceitar.
— Tô com fome, mainha.
— Se dormir a fome passa, Tereza, fecha os olhos…
— Francisco fechou os olhos e não abriu mais. — falou Manuela.
Maria do Céu olha para Manuela e saiu.
Na varanda, Seu Romão olhava para o céu estrelado e a lua cheia. Ao fechar os olhos ele lembrava de seu filho Francisco e as lágrimas caíam.
— Romão?
— Eu já vou embora, Do Céu, não se preocupe. Só não sei o porquê de você não ter me procurado antes?
— Foi muito rápido. O Francisco sempre foi adoentado.
— Orgulhosa! Você poderia ter me falado que eu arrumava um jeito de achar comida!
— Qual jeito? Do seu jeito? Matar um pra dá o que comer dentro de casa?
— Agora você sabe e está sentindo na própria carne o que eu queria te dizer. Me diga, Do Céu, se era melhor tá morto um desinfeliz qualquer ou nosso fio Francisco?
— Nada vai trazer o meu fio de volta! Nada! — começou a chorar.
— Do Céu. — a acarinhou a face. — Me deixa voltar pra casa? Vamos voltar como era antes? Nem que seja eu ter que ir arrumar trabaio lá na capital.
— Não quero me separar de você, Romão. — o abraçou. — Vamos dá uma maneira de se acertar. Eu amo você, Romão. — o beijou.
Uma semana se passou e o patriarca retornou para sua casa. Numa tarde a família recebeu a visita do casal Seu Teixeira e dona Rosinha que eram comerciantes paulistas que estavam morando há alguns meses em Maceió. O homem aparentava ter uns cinquenta e poucos anos, alto, branco, olhos castanhos, cabelos negros lisos com fios grisalhos, terno azul anil, a blusa social branca e sapatos pretos sociais. Ele parecia mais uma figura vinda do livro de Machado de Assis, com trajes bastantes antigos para a época como também a sua mentalidade. A esposa desse sujeito, a tal dona Rosinha era uma mulher com idade de quarenta e poucos anos, estatura baixa, cabelos castanhos curtos até a nuca, pele clara, olhos negros, usava um vestido de cor salmão de seda e joias. O leitor deve estar se perguntando: como pessoas com alto poder aquisitivo e vindos de tão longe foram a casa daquela pobre família sertaneja? Logo mais será explicado.
Na varanda estava o casal de comerciantes paulistas quando de repente Maria do Céu apareceu com Ester em seus braços.
— Aqui está a menina.
— Pobrezinha, tão desnutrida e faminta. — pegou nas mãos da criança.
— Tem certeza disso, Rosa? Essa criança deve ter alguma doença e não quero arranjar problemas.
— Teixeira! — gritou o repreendendo. — É claro que quero a garota. — puxou a criança dos braços da mãe que começou a chorar. — Calma, menina, calma, vai ficar tudo bem, não precisa chorar.
— Espera, deixa eu me despedi da minha fia. — com os olhos cheios de lágrimas.
— Se despeça. — devolveu a menina à mãe.
— Fia, você vai pra capital e ficar na casa do Seu Teixeira e da dona Rosinha por enquanto e depois mainha pega você de volta. — abraçou e beijou o rosto da filha.
— Me dê ela pra mim. — tomou a menina dos braços da mãe. — Você está fazendo o certo, Do Céu, essa menina criada nesse fim de mundo vai morrer igual o coitadinho do irmão. Ela vai ficar bem. Vamos Teixeira?
— Vamos.
— Vocês prometem que se eu pedir ela de volta vocês devolvem ela? Prometem?
— Sim, pode confiar em mim, Do Céu, um dia Ester vai te agradecer por ter a deixado conosco. — caminhava em direção a caminhonete.
— Ester! Fia! Não esqueça da mainha!
A menina também chorava e entrava na caminhonete com o casal e seguiram pela estrada. O arrependimento e o desespero tomou conta de Maria do Céu que correu atrás da caminhonete.
— Volta! Minha fia! Ester! Volta!
Maria do Céu se cansou, não alcançou a caminhonete e caiu no chão exausta.
— Minha fia, devolva a minha fia, devolva!
Quando Maria do Céu chegou em casa, Seu Romão correu até ela.
— O que você fez, mulé? — a segurou com força os seus braços. — O que deu na tua cabeça de dá a Ester? Quem são essa gente? Por que deu a minha fia? Por quê? Fala!
— Quem te disse?
— Manoela, ela foi atrás de mim lá no açude.
Ela viu Manoela na varanda de braços cruzados e com um sorriso serelepe.
— Ah! Menina fofoqueira, fifi de araque, eu vou te dá uma surra! — correu atrás da menina, mas Romão a segurou pelo punho.
— Deixe ela! A Manoela fez o certo. Quem essa gente, mulé? Quem levou a Ester?
— Seu Teixeira e dona Rosinha que são de São Paulo, chegaram a pouco tempo em Maceió e compraram um mercadinho por lá. Os dois foram na igreja procurar por uma criança.
— Pra quê?
— A mulé é seca e já avançada da idade pra ter menino.
— Por que você deu a nossa fia?
— Porque eu não queria que ela morresse de fome.
— Você não conhece essa gente! Se eles fizerem malvadeza com ela a culpa é sua, Do Céu! Eu vou atrás deles!
— Não adianta, Romão, não adianta, eu não sei para onde eles foram. O que tenho é um número do telefone deles e me prometeram que se eu quiser a menina de volta eles devolvem…— mostrou um pedaço de papel.
— Oxente! Do Céu, não seja besta, eles nunca vão devolver Ester. Você me julgou e me expulsou de casa por ter matado um por dinheiro e você também não é diferente de mim.
— Não! Eu estava desesperada, Romão!
— Não é desculpa, Do Céu! Você também é uma bandida, uma criminosa, deu tua fia para dois estranhos e sabe Deus o que vão fazer com a menina. Que tua consciência doa até morrer, desgraça! — a empurrou e entrou na casa.
Numa noite em um bar estava Seu Romão que sofria pela morte de Francisco e pela ausência de sua filha Ester. Esses eventos haviam abalado seu casamento e poucas palavras se dirigia a esposa na qual sentia por ela ódio e pena. Ainda se mantinha vivo pelos outros três filhos e temia que eles tivessem o mesmo destino dos outros dois.
Um sujeito de vestes negras do chapéu a bota de couro, pardo, estatura média, idade de quarenta e poucos anos e usava uma arma na cintura, se aproximou de Romão.
— Você é o Romão, o compadre de Gilberto? — sentou ao lado dele à mesa.
— Sou. Você quem é?
— Não importa. Tenho um serviço.
— Procure outro porque não mexo mais com essas coisas.
— Tem certeza? Essa é a chance de vingar a morte de Gilberto e ainda ganhar um bom dinheiro.
— Quem matou o compadre Gilberto?
— Seu Leopoldo.
— O quê? O compadre era o braço direito dele.
— Pra você ver que em ninguém pode se confiar.
— Por que o matou?
— O Gilberto sabia demais. É pegar ou largar? — colocou um maço de dinheiro em cima da mesa.
Alguns minutos depois Seu Romão invadiu um quarto do bordel e viu Seu Leopoldo, um velho de cabelos brancos, gordo e estatura baixa deitado e despido na cama com uma mulher.
— Ai! Socorro! — gritou a prostituta assustada.
Ele apontou a arma para o casal.
— O que significa isso? — o velho se cobriu com o lençol.
— Saia daqui rapariga! — a puxou pelo cabelo a empurrando para fora do quarto. — Que o meu assunto é com esse vêio safado!
A mulher saiu apavorada e seminua.
— Quem é você? O que quer?
— Essa é pelo compadre Gilberto.
Seu Romão atirou em Seu Leopoldo que morreu com um tiro no peito.
— Pelo menos esse vêio babão morreu feliz. — deu uma risada e saiu.
A prostituta entrou apressadamente no quarto e tirou o dinheiro da carteira de Seu Leopoldo. Após terminar o tal “serviço”, Seu Romão passou por um mercadinho, comprou comida, foi para casa e encontrou Maria do Céu na varanda.
— Onde tu tava?
— Trabaiando.
— Matando de novo, Romão?
— Não me venha bancar a santa, Do Céu, você não é meior do que eu. Aceite que esse é o único caminho que tenho para dá comida aos menino.
— Faça o que quiser, Romão, a minha vida acabou desde que Francisco morreu e Ester foi embora.
— A sua pode ter acabado, mas as vidas dos três que estão lá dentro não. Viva por eles, mulé, não esmoreça. — entrou na casa.
Depois do jantar, Manoela e Terezinha brincavam no chão com o resto dos ossos da carne. Maria do Céu lavava os pratos e observava Romão sentado na rede, com Dario nos braços e uma garrafa de cachaça no chão.
— Você é o único fio homem que me resta, Dario, vou te ensinar tudo que sei. — mostrou a arma para o menino.
— Romão! Largar essa arma! Não quero ela perto dos meus fios.
— Se acalme, mulé, tá sem bala. Deixa o menino pegar a arma.
— Meu fio não será bandido! — tomou o filho dos braços do marido.
— Será, ele será meior do que eu.
— Eu estou te desconhecendo, Romão.
— Sou um homi que quer dá o que comer para meus fios e ninguém pode me julgar. Acham que faço é errado? Me dê um trabaio, então!
Às duas meninas correram assustadas para o quarto.
— Você bebeu por isso que está falando essas besteiras. Eu vou colocar os meninos pra dormir e depois também eu vou porque não quero ficar ouvindo conversa mole de cachaceiro não. — saiu.
— Vá, pode ir, Do Céu! Mulé mal agradecida! Um dia farei meu fio Dario o homi mais temido deste sertão, oh! Se vou. — deu um gole na cachaça, girou a arma com o dedo e apontou para a porta da casa.
[1] Vila de São Cristóvão é uma cidade fictícia.
[2] Catrevagem significa coisa insignificante ou sem valor.