A poeira

 

 

— O que ouviu: a Rita é minha mulé e vou levar ela comigo.

Oxente! Que presepada é essa? — deu um soco na mesa. — Quem você pensa que é, caba? Tá doido? Como se atreve?

— Me atrevo pelo meu direito.

— Direito de quê? Do que tá falando, infeliz?

De repente Rita ficou atrás da porta ouvindo a conversa.

— Eu tirei a inocência dela.

— Não! Não pode ser! Traidor miserável! Filho de rapariga! — abriu a gaveta rapidamente. — Eu vou te matar, sujeitinho ordinário! Deixa eu pegar a minha arma.

— Seu Félix não se mexa. — apontou a arma na testa do fazendeiro. — Se pegar a arma eu vou atirar no senhor sem dó e sem piedade.

Maria Rita desesperada entrou no escritório.

— Não! Não, Dario! Não mate, painho, eu imploro!

— Saia daqui, Rita, isso é coisa de homi.

— Coisa de gente covarde isso sim. — ficou entre eles. — Largue a arma, Dario!

Seu Félix olhava desesperado para Dario que aos poucos desce a arma.

— Eu acho que ficando é frouxo em obedecer mulé e não matar um sujeito cheio das ousadias comigo.

— Ele é meu pai, Dario! Acha que depois que você o matasse eu ficaria com você? Eu não iria querer você por perto é nunca, ouviu bem? Nunca!

— Me responda à senhora se é verdade que esse miserento e fio de uma molesta disse que ele tirou a tua inocência? Eu quero explicações, dona Maria Rita! — deu um soco na mesa.

— Sim, painho, me entreguei a Dario.

— Rapariga! — partiu pra cima da filha.

Dario puxou Maria Rita pelo braço e a colocou por trás dele.

Oxente! Não encoste um dedo nela, seu vêio sem vergonha. Não me faça voltar atrás e dá um tiro no meio da tua testa. — o encarou enquanto Maria Rita estava aflita.

— Desgraça! — esbravejou e abriu os braços. — Eu confie em ti e acabei deixando o lobo cuidando da minha ovelha. Você a enganou, maldito!

— Enganei foi coisa nenhuma. Ela sabia muito bem o que tá fazendo, essa daqui de ceguinha não tem é nada.

— Para com isso, Dario! — gritou o repreendendo e lhe dando um empurrão.

— Como foi capaz, Rita? Como se sujeitou a abrir as pernas para esse condenado, esse assassino, esse besta feroz? — sentou na cadeira. — Eu te criei igual um passarinho frágil… — chorava e as mãos tremiam.

— O passarinho um dia quis voar, painho. — ficou ao lado de Dario.

— Você desgraçou a sua vida, Maria Rita, como foi capaz de se deitar com esse cabrobó[1]? Um cara que não tem como dá um murro numa broa? Não tem nada para te oferecer, é um infeliz que tem as mãos sujas de sangue.

— Eu não vou deixar faltar nada pra Rita. Eu trabaio.

—Trabalha em quê, cabrobó? Desde quando que pistolagem é trabalho de gente descente? Além do mais você não sabe nem falar direito, é um analfabeto, um burro e duvido que saiba pelo menos escrever o próprio nome.

— Comida na mesa é que não vai faltar.

— Eu estou decepcionado e com certeza Magnólia, minha finada esposa, a onde estiver deve está revoltada e se virando no tumulo.

— Dario, você não sabe ler?

— Não, Rita.

— Nem sabe escrever o seu nome?

— Não. Lá em casa ninguém foi pra escola.

— Veja onde a senhora amarrou o seu jegue, dona Maria Rita. — deu uma risada irônica.

Era nítido a vergonha de Dario e a decepção de Maria Rita em suas afeições.

— Chega de conversa mole e arrodeio. Eu vou levar ela comigo o senhor querendo ou não.

— Por mim você faça o que quiser com ela e pode a levar contigo. Eu cuidei dessa daí com tanto amor e tanto zelo para na primeira oportunidade ela se deitar com o primeiro caba de peia que apareceu. A culpa foi minha.

— Eu amo o Dario, painho. — abraça Dario.

— Ama? — gargalhou. — tu não sabe nada dessa vida, dona Rita, vai aprender quando morar com esse sujeito e viver a vida dele de bandido se escondendo pelo sertão como catenga[2] fugindo dos tiroteios. Gente como ele o que mais tem é inimigo pra querer se vingar.

— Dario vai mudar de vida.

— O quê? Que conversa é essa, mulé?

— Prometa na frente de painho que vai deixar essa vida de pistoleiro.

Oxente! Não vou prometer é coisa nenhuma. Já te disse que pra ficar comigo vai ter que aceitar a minha vida de matador.

— Não, pois não vou aceitar. Ou larga essa vida de pistoleiro, ou não vou me bora com você.

Caba, tenho uma proposta.

— Qual?

— Mate o padre Jairo.

— Endoidou de vez, painho? Matar para quê? Eu estou desconhecendo o senhor.

— A senhora não se meta porque a conversa não te interessa.

— Me interessa sim senhor e não vou mais te obedecer. Estou cansada de viver sobre suas ordens.

— Mas olha como ela atrevida? Acha que pode me desrespeitar só porque se deitou com esse filho de rapariga. Caba se você matar o padre, eu vou te pagar um preço maior do que tu tá recebendo pra ficar de vigia dessa esprivitada.

— Por que quer matar o padre Jairo, painho? O senhor é um homem de bem e decente. Estou horrorizada.

Vixi! Ceguinha, tu não conhece teu pai, hein. Quer saber? eu vou desembuchar logo de vez o que sei.

— Não se atreva sujeito!

— Me atrevo sim, patrão. Rita, teu pai me contratou pra matar uns cabas que tava querendo invadir essas terras. A gente matou os cabas e depois teu pai me contratou pra vigiar você se por acaso os pareias deles fossem atrás de se vingar.

— O quê? Painho, você mandou matar pessoas?

— Mandei sim, e daí? Eram um bando de arruaceiros, preguiçosos e aproveitadores que se acham no direito de invadi as minhas terras sem necessidade. Eu defendi o que é meu. — bateu a mão sob o peito.

— Não estou acreditando no que estou ouvindo, meu Deus!

— Pois pode acreditar e tem mais coisa…— disse risonho.

— Cala a boca, infeliz!

— Fala logo tudo que você sabe, Dario, eu quero saber quem de fato é o meu pai.

— Já chega, Rita! Fora daqui ou eu boto mesmo que eu morra! — levanta da mesa.

— O senhor não me respondeu à pergunta que fiz: por que quer matar o padre Jairo?

— É porquê…porque não vou com a cara daquele padreco, ele aprontou uma comigo e quero me desfazer dele, coisa sem importância.

— Como assim, painho? Acha que sou besta? O senhor não iria mandar Dario matar o padre Jairo atoa.

— Eu estou falando a verdade.

— Não tanto assim.

— O quê? O que você sabe, Dario?

— Esse caba não sabe de nada ou sabe?

— Sei, eu sei o porquê do patrão querer mandar matar o padre.

— O que é? Fala por tudo que é mais sagrado.

— Seu Félix perdeu a fazenda numa aposta na vaquejada.

— Não é possível, painho! Como pôde colocar a nossa fazenda, o único bem que temos, em jogatina?

— Você andou ouvindo conversa, não foi, caba?

— Ouvi sim e ainda bem porque só assim a Rita teria como saber dos teus podres, seu vêio muquirana.

— O que tem o padre Jairo com isso?

— O padre ganhou a aposta e essa fazenda agora é dele.

— Meu Deus, e agora? Onde vamos morar? — sentou na cadeira.

— Nós vamos ficar aqui porque é aqui que é a nossa casa. Não vamos pra lugar nenhum e é por isso que quero que Dario mate o padre e traga pra mim a escritura da fazenda que está com ele.

— Isso é crime, é um pecado mortal. O senhor e o Dario vão para o inferno. Esqueça essa loucura, painho. Vamos pegar nossas trouxas e ir embora.

— Não! Não vou entregar essa fazenda de mãos beijadas para aquele padreco antes vou até as últimas consequências.

— Se você matar o padre Jairo, eu nunca mais quero te quero por perto, Dario. — levantou.

— Danou-se, oxente! Não quero ficar longe de você, Rita, então, eu não mato.

Caba, se você matar eu te dou uma parte dessas terras pra começar sua vida com a Rita, o que acha? É pegar ou largar.

— Então, eu mato. — tirou a arma de dentro do cós das calças.

— Tem certeza, Dario? Pois, se matar pode esquecer o nosso…bem você sabe…nos dois no açude.

— Ah! Não! Sem açude não quero, não posso, não dá pra ficar. Eu não mato. — colocou a arma novamente dentro do cós das calças.

— Se matar o Jairo, eu vou te dá essa fazenda todinha pra você.

— Todinha pra mim? Eita boba cipó! Eu vou matar esse caba é agora. — tirou a arma de dentro do cós das calças e saiu em direção a porta.

— Espere, caba! Agora não. Vamos esperar amanhecer e quando eu mandar você faz o serviço.

— Nunca mais quero ouvir a sua voz e nem sentir você perto de mim, Dario! Nunca mais!

Mulé nenhuma manda em mim, viu? Nenhuma! Eu vou esperar o patrão dá as ordens. — saiu.

Rita começou a chorar.

— Pare com esse choro, Maria Rita! — deu um soco na mesa.

— Estou horrorizada. O senhor meu pai é um assassino.

— Assassino não, quem mata é aquele cabrobó que tu se deitou e perdeu a decência.

— É a mesma coisa. Você paga e ele mata.

— Rita, você é uma decepção pra mim. Eu te cuidei, te criei com todo cuidado e você me pagou com sua ingratidão. Eu esperava que você casasse com um doutor ou um fazendeiro…

— Não, o senhor não queria que eu me casasse porque se quisesse me deixaria ter uma vida como uma pessoa qualquer. Nunca pude sair dessa fazenda sozinha sem a tua vigilância, ela se tornou pra mim uma prisão.

— Prisão? — riu. — Aceite tua condição: tu é cega! Eu te coloquei nesta fazenda cercada de cuidados e mimos pra que você não se machucasse e não encontrasse um sujeito como Dario e te desgraçasse, mas eu fui muito burro e entreguei você de mãos beijadas para aquele infeliz.

— Não é porque sou cega que tenho que viver presa. Eu quero viver, meu pai, eu quero conhecer esse mundo e Dario me tirou dessa fazenda e me mostrou o que eu mais queria sentir já que não posso ver.

— Esse rapaz vai te fazer você sofrer, aliás, já está fazendo. Desista, Rita, ele nunca vai deixar a pistolagem e tipos como ele não tem conserto. O destino dele é morrer numa emboscada ou na prisão e não quero que isso também aconteça com você.

— Eu o amo, painho, o amo.

— Se pelo menos fosse um vaqueiro eu até aceitaria, mas você invés de ter escolhido um homem que carrega na mão uma caneta, uma enxada ou uma corda, escolheste um homem que na mão carrega uma arma que mata qualquer um que o pague.

— Dario vai sair dessa vida sim, eu tenho fé.

— Faça o que quiser, pois, não me importo mais. Se já decidiu sobre o teu corpo também pode decidir o teu destino.

— No final estamos um decepcionado com o outro, pelo menos o que fiz foi por amor, porém o que o senhor fez e quer fazer não posso dizer o mesmo. — saiu.

— Vai pra debaixo da égua! — deu um soco na mesa e deu um gole na garrafa de pinga.

Amanheceu e na sala do casarão, JP Andrade é recebido por Seu Félix.

— Me diga que traz boas notícias, vereador.

— Trago. — mostrou a escritura da fazenda. — Consegui convencer o padre.

— A escritura da minha fazenda! Me dê ela aqui! — tentou pegar, mas o vereador a afastou.

— Só um instante, Seu Félix, antes precisamos deixar algumas coisas claras.

— Claras? Como assim?

— Eu fiz um acordo com o padre Jarbas e metade desta fazenda agora é minha.

— O quê? Essa fazenda é minha!

— Não, agora ela é metade minha e sua, aliás por estima por todos esses anos que o senhor me ajudou na minha carreira na política vou deixar que fique com uma parte dela.

— Qual o acordo você fez com aquele padreco?

— Que a parte que me pertence será construída a escola que o padre Jarbas tanto deseja construir.

— Não! Essa fazenda é minha! Só minha!

— Use a inteligência, Seu Félix, é melhor ter a metade da fazenda do que perder ela toda.

— Eu quero ela toda!

— O que tem eu com isso, hein? Estou sendo bondoso com o senhor em me meter em algo que não me compete.

— Não! Eu não aceito! Me dê a escritura aqui! — tentou novamente pega-la e o vereador a afastou.

— Não, não, não, Seu Félix pare de birra, um homem nessa idade e desse tamanho se portando como um menino amarelo e catarrento.

— Você pelo menos conseguiu o dinheiro?

— Não consegui porque as “tetas estão secas” é preciso ter paciência e esperar elas possam encher novamente.

— Conversador.

— Seu Félix, não me faça me arrepender dessa boa ação que estou te fazendo. Poderia estar em casa com Madá me fazendo uma massagem.

— Com qual interesse você tá pra ficar todo amiguinho desse padreco?

— Vamos dizer que eu preciso da Santa Madre Igreja e dos votos dos seus fiéis que ficarão tocados quando souberem do meu altruísmo por ter cedido minhas terras para a construção da escola.

— Tu é muito sabido, caba. — riu.

— Estou fazendo política, meu caro.

— Me responda só uma coisa: o que esse padreco vai ganhar em troca? Porque aquele ali só gosta de se exibir cheio dos ouros, roupa de marca, com carro do ano pra cima e pra baixo, cabelo cortadinho e rosto mais liso que bunda de nenê.

— As eleições estão próximas e vamos dizer que quando for eleito prefeito de Vila de São Cristóvão vou dar um agradozinho ao padre Jarbas, digo, a igreja com uma ajudinha de custo mensal.

— De baixo dos lençóis, né? — riu.

— Sim, de baixo dos lençóis é onde acontece os mais pervertidos prazeres. — sorriu com malícia.

— Só não se esqueça do seu amigo aqui.

—Jamais, jamais. Terá seu agradozinho também se continuar cooperando e demonstrando sua lealdade.

— Espero que se agrade da vizinhança.

— Sabia que poderia contar contigo, Seu Félix. Vamos ao cartório? Estou lisonjeado e estonteado por sua generosa doação de sua parte da fazenda.

— Te considero um filho que não tive. Vamos logo ao cartório.

Seu Félix e JP Andrade saíram do casarão e encontraram Dario encostado numa árvore.

— Dario, não preciso mais do teu serviço.

O vereador e o fazendeiro caminharam até às duas caminhonetes. Dentro do escritório do casarão, Maria Rita estava em frente à janela e Dario entrou, parou atrás da amada em silêncio.

— Eu sei que é você, Dario.

— O patrão disse que não quer mais do serviço que me pediu ontem.

— Se painho não tivesse pedido você iria matar o padre Jarbas. — afastou.

— Rita, minha ceguinha, vai ficar emburrada comigo? — a seguiu.

— Vou. — parou em frente à mesa. — Eu estou tão arrependida. — sentou na cadeira. — Eu fiz uma besteira danada na minha vida.

— Qual? — ajoelhou e ficou com o rosto entre os joelhos dela.

— Ter amado você e aberto o meu coração. Eu não devia ter saído dessa fazenda com você.

— Agora danou-se. O que foi que eu fiz agora?

— Não se faça de desentendido. Eu não quero e não posso viver essa vida que tu leva de pistolagem.

— Te disse que não é do meu querer deixar essa vida. — levantou.

— Por quê?

— Porque eu não quero, oxente!

— Você ama a pistolagem do que a mim. Sou eu que te perdi pra ela. — começou a chorar.

— Ah! Não chore, Rita. — deu um beijo nos lábios dela. — te quero, viu? Você me quer e é isso que importa. — a beijava novamente.

— Eu quero você aqui comigo, Dario. Você…— tocou no rosto dele e acariciava os olhos. — São os meus olhos, a única janela que me abriu nessa escuridão que é minha vida.

— Eu também quero você, mas tu complica demais as coisas. Te prometo que nada vai faltar, mainha vive bem com painho mesmo ele tendo a mesma vida que eu de matador.

— Duvido que sua mãe goste disso, que viva tranquila e feliz por ver o marido e o filho fugindo e matando por aí em troca de dinheiro.

— Dinheiro que coloca comida na mesa. Maria Rita você não sabe o que é passar fome, sempre teve tudo fácil, tudo dado na sua boquinha.

— Eu não quero isto pra mim, meu Deus! — levantou e colocou as mãos no rosto de aflição.

— É medo que tu tem, não é? — a segurou pela cintura. — Fique com medo não porque eu não vou deixar nenhum fio de rapariga toca num fio de cabelo seu porque vai ter que me matar primeiro. — acarinhou o rosto dela e os cabelos. — deixe de bestagem, arrume tuas coisas e vá simbora comigo.

— Eu não vou.

— Como é que é?

— O que você ouviu, Dario. Não há quem me faça sair daqui só se for arrastada.

—Diacho! Tá doida, mulé?

— Estou bem das minhas faculdades mentais.

— O que você quer dizer?

— Chega! Ou você larga essa vida de bandidagem, ou não vou embora com você. Escolha, Dário: ou eu, ou a pistolagem?

— Ah! Não, Rita, assim não dá. Eu já te disse que não vou deixar essa vida e pronto acabou e você vai comigo sim senhora.

— Não vou!

— Rita, não me faça perder as estribeiras e levar você carregada e a força.

— Se quiser me levar a força me leve, mas depois não reclame por me ver fria igual uma pedra de gelo.

— E tu quer que a gente vevé [3]de quê?

— Você poderia ficar trabalhando na fazenda com o painho.

— Esqueceu que teu pai perdeu a fazenda? Vocês vão tudo sair com a mão na frente e a outra atrás. Não tem mais jeito, Rita.

— Tem sim. Quantos vivem por aí criando ou plantando alguma coisa?

— Quem te disse isso?

— Mainha antes de morrer ela me contava as coisas, ela era os meus olhos e dizia sobre a vida lá fora. Eu sei que tem muita fome, muita sede e o que tenho dentro dessa fazenda é uma realidade que muitos não tem.

— Se você pudesse oiar[4] talvez entenderia o motivo de eu levar a vida que levo.

— Nem todos escolhem o mesmo caminho que você.

— Eu não tive escolha. Fui crescendo e painho me ensinou tudo que sei. Sou o que sou por causa de Seu Romão.

— Você pode escolher um caminho diferente, Dario.

— Não há. Eu já escolhi e esse não existe arrependimento e nem volta.

— Desde que mainha faleceu eu sonhava que um dia iria encontrar um homem que pudesse ser os meus olhos e que poderia ler esses livros pra mim. — se aproxima da estante. — ah! Esses livros. — tocou levemente nos livros. — eram de mainha. Ela me deixou de herança e nunca pude saber o que há escrito nestas páginas. — os olhos encheram de lágrimas — não é só essa sua vida de pistoleiro que me decepciona, Dário, você não sabe nem ler e muito menos escrever, como eu vou finalmente descobrir o que existe dentro desses livros?

Dario parou atrás dela.

— Eu não seio ler e sou bandido e eu te amo, minha ceguinha, te amo. — a beijou atrás da nuca.

— Você não me respondeu à pergunta: quem você escolhe? Eu ou a pistolagem?

— Ah! Assim não dá, Rita, oxente! — afastou.

— Responda sem arrodeio. — ficou de frente para ele.

— Vai simbora comigo ou não?

— Não!

— Então, essa é a resposta. Se você não quer vim comigo a escolha é tua da gente se separar.

— Você diz assim nessa frieza.

— Você que tá cheia de brabeza, mas é doidinha por mim. — riu.

— Como é convencido. Pode ir embora sozinho porque eu não arredo os meus pés daqui. Vamos ver quem é que volta como um cão arrependido com o rabo entre as pernas.

— Ah! E é é?

— Sim, senhor.

— Pois será como a senhora quiser. Eu vou me bora e nunca mais coloco os meus pés nestas terras, vou pegar o meu cavalo e sumir pelo mundo.

— Faça o que bem-quiser.

— Quer saber? Eu é que não vou abandonar o meu serviço por causa de mulé e é por isso que digo que fiel mesmo é Maria Quitéria.

— Quem é ela, Dário? Não me diga que você tem outra? Não, não é possível!

— Calma. — riu. — Maria Quitéria é o nome da minha arma, a única que nunca me deu dor de cabeça e nem tirou o meu juízo. Homi esperto é que não se amiga com mulé nenhuma.

— Mentiroso! Fora daqui, Dario! Fora! Eu não quero você mais perto de mim e não quero que fique me vigiando porque eu vou saber, sou cega e não uma pomba-lesa.

— É isso que tu quer?

— Sim! — começou a chorar.

— Ritinha. — se aproximou.

— Sai!

Dario saiu do escritório.

— Ele pensa que sou alguma idiota de acreditar que Maria Quitéria é a arma? Isso deve ser outra, é como Eugênia diz que homem sempre tem uma “carta na manga” há de se ter uma rapariga para o confortar, diacho!

No corredor, Dario caminhava e não poderia esconder sua tristeza apesar de querer demonstrar uma figura firme e oponente, porém dentro de si, estava arrasado e decepcionado consigo mesmo. Pela primeira vez ele sentiu vergonha e a vulnerabilidade por levar a vida da bandidagem e por ser analfabeto e isso se tornaram empecilhos para que pudesse concretizar o seu plano de amor com Maria Rita. Ele estava tão preso aquela realidade que não conseguia ver um novo caminho como alguém com um velho hábito trabalhoso de se tirar. A vida o surpreendeu que no meio de um deserto encontrou um oásis que é Maria Rita, entretanto, amar não é o suficiente para se estabelecer um relacionamento sendo necessário ter dois pesos e duas medidas, cada um precisa saber ceder de um lado e outro ceder do outro, caso contrário a “água do oásis” seca e não é o suficiente para matar a sede e sobreviver sendo a morte algo inevitável. A água é o amor, o oásis é o ser amado e sobreviver é a vida e seus desafios. A morte nessa comparação é o fim de construção dos sonhos de uma vida de um casal, entretanto o amor, o sentimento, não morrem. Alguém pode discordar desse entendimento e acreditar que o amor pode sim morrer e é preciso ter o respeito dessa visão contrária, então onde vivem os amores platônicos? Os amores perdidos no tempo e no espaço? Os amores da saudade? Eles habitam no corpo de quem os gestaram, deram a vida e continuam a viver até mesmo após a morte deste corpo e de sua geração ser extinta. É a sina de qualquer ser humano ter e ser uma lembrança de alguém.

Uma hora depois, Seu Félix retornou a fazenda e conversava com Seu Romão na porteira.

— Antes de entrar quero falar um assunto sério contigo, caba.

— Pode dizer, patrão.

— Teu filho se engraçou com a minha filha e veio cantar de galo pra cima de mim, dizendo que queria a levar com ele.

— Não, não pode ser que o Dario fez uma burrice dessas…

— Fez! Ele fez e traiu a minha confiança!

— Seu Félix, eu peço perdão pelo que o Dario fez, eu não sei o que deu na cabeça desse menino. Eu vou dar uma surra nele…

— Eu vou pagar vocês e depois quero que sumam da minha fazenda!

— Sim, patrão, como quiser.

— Estou logo avisando que se teu filho se atrever aparecer nas minhas terras e levar minha filha com ele, eu juro que vou mandar matá-lo. Não duvide disso, Romão.

— Não carece se preocupar, Seu Félix, o meu menino não vai mais ficar de enxerimento com tua menina não.

— Acho bom. Toma o pagamento de vocês. — tirou três maços de dinheiro de dentro dos bolsos das calças. — Escafedam! — entregou o dinheiro.

Em um canto afastado nas terras da fazenda, Dario e Iago conversavam quando de repente Seu Romão se aproximou com semblante nervoso.

— Dário! Você endoidou, peste? — o deu um tapão na orelha do filho.

— Ai! Painho! O que foi? Tá soltando fogo pelas ventas porquê?

— Você sabe muito bem. Seu Félix me disse que tu tá de chamego com a fia dele.

Iago começou a dar risada.

— Eita boba, o vêio deu com a língua nos dentes. Pega fogo cabaré! — deu uma gargalhada.

— Cala a boca, Iago, não se meta na conversa!

Oxe, tio, não tá aqui quem falou. — ficou cabisbaixo.

— Sim, eu e a Rita a gente se gosta. Qual é o probrema?

— Tu não se enxerga não é, caba? Tu é um Zé-ninguém e acha que o patrão iria aceitar isso? Tu como genro dele? Acha que é coisa boa pra alguma mulé direita? É não, Dario, nenhum pai vai querer que a fia se junte com um bandido como você.

— O senhor também é bandido e mainha não te deixou.

— É diferente. Tua mãe casou comigo antes de eu vevé[5] metido em pistolagem.

— Eu amo a minha ceguinha.

— Como é? A menina é cega?

— Sim, é cega.

— Danou-se!

— Pelo que eu vi a safadeza dos dois no açude nem parece que ela é. — deu uma risada.

— Tu não se meta, Iago! — empurrou o primo.

— Dario, você tá azoado das ideias, é? Como acha que uma mulé cega serve pra cuidar de uma casa? e o pior sendo criada a pão de ló e cheia das frescura de rico e com certeza ela nunca lavou uma calcinha e tirou o prato da mesa.

— Rita é desenrolada, painho, muito esperta. Eu só quero dar pra ela uma vida meior do que essa.

— O que tá falando, caba? Tem dias que tu não tem o que comer em casa quando não aparece serviço.

— Ela vive trancada nessa fazenda igual passarinho. Eu que a levei para conhecer a rua.

— Você cometeu o pior erro, Dario, eu já te falei para não se meter com os trabaios. Nunca que tive probremas com você e agora tu foi mexer com a fia do Seu Félix e o pior que ele não quer mais nós aqui.

— Ah, não! — disse Iago.

— Por sua culpa que perdemos a oportunidade de ganhar um dinheirinho de vez em quando porque Seu Félix não quer mais nosso trabaio. E ainda ameaçou mandar te matar se você botar os pés nestas terras e fugir com a Rita.

— Não tenho medo daquele vêio.

— Se não tem dele, tenha de mim. Não se atreva a ir contra as minhas ordens, Dario.

— Painho, respeito o senhor por ser meu pai, tudo que sei foi o senhor que me ensinou, mas cedo ou tarde a Rita vai aceitar ir comigo pra onde eu for e ninguém pode impedir nós de vevé junto.

— Mas você me disse que ela te mandou embora. — falou Iago.

— Sim, ela teima que eu devo deixar essa vida da pistolagem. Eu é que não vou. Ela tem que aceitar como mainha aceita a vevé com painho tendo um marido bandido.

— Ela nunca vai aceitar, fio. Nunca! Eu devia era te dá uma pisa de cipó de bimba de boi [6]até sair sangue do teu couro, seu peste, mas tu já é homi feito. Se tu se atrever afrontar Seu Félix, que arque com teus prejuízo. Aqui tá a parte de vocês. — tirou os maços de dentro do chapéu e entregou o dinheiro para os dois.Vamo pegar nossas trouxas e ir simbora e rápido.

— Painho, eu soube que Seu Félix está pra perder a fazenda.

— Ele conseguiu a fazenda de volta. O vereador ajudou ele. Como você soube?

— Ouvi os comentários na fazenda.

Seu Romão se afastou dos dois.

— Ah! Diacho, tio! Estava esperando o senhor dá uma pisa da boba no Dario.

— Iago, seu fio de uma égua, se eu te pegar me brechando de novo eu juro que te mato.

Oxe, tu que devia fazer tuas safadezas escondido no meio mato e não onde todo mundo pode bizoiá.

— Cala a boca e arruma tuas coisas, Iago.

— Por causa de tu que perdemos um trabaio bom. Seu Félix paga direitinho.

— Pare de reclamar e se avexe!

Dario, Seu Romão e Iago saíram das terras da fazenda Sertaneja, montados em seus cavalos e passavam por uma longa estrada quando de repente uma forte ventania levantou uma cortina de poeira que os cobriram.

— Eu vou entrar aqui. — apontou para uma outra estrada.

— Não vai voltar pra casa?

— Não, painho, eu preciso pensar lá de baixo da aroeira no que vou fazer da minha vida.

Fio, o caminho da bandidagem é uma mão única. Esquece a Rita e cuide de nunca perder o juízo por causa de mulé.

— E a mainha?

— Eu me acostumei com ela. Um dia amei Do Céu, mas o tempo passou e somos apenas dois infelizes que tentam vevé de baixo de um teto. É isso que tu quer pra você? Se tu gosta tanto da Rita a deixe em paz, a não procure para não fazer ela sofrer.

— Ela gosta de mim…eu sei…

— Ela vai te esquecer e um dia vai chegar aos teus ouvidos que está com outro, que casou com algum fazendeiro um homi de bem e você será apenas uma lembrança e que ela esqueceu.

— Preciso botar as ideias no lugar.

— Leve o tempo que for preciso, fio.

— Bença, painho?

— Deus te abençoe, fio. — fez o sinal da cruz.

— Tchau! Dario.

— Tchau! Iago.

Dario entrou na outra estrada enquanto Seu Romão e Iago continuaram a cavalgar até desaparecerem de sua vista. Alguns minutos se passaram, Dario chegou no açude, tirou uma garrafa de pinga dentro da bolsa de couro pendurada no cavalo e sentou de baixo da aroeira. A sua respiração estava descompassada, deu um gole na pinga e olhou para o alto.

— Não é possível que a Rita um dia vá me esquecer. Não, não isso não vai acontecer…— pegou um punhado de areia e cheirou. — Rita, tu deixou o teu cheiro nessa terra. — lembrou dos momentos que esteve com ela naquele lugar.

Uma hora e meia depois ele tinha tomado a garrafa de pinga toda e se encontrava alcoolizado.

— Ela me deixou azoretado da cabeça. — levantou. — Não paro de pensar nela. — caminhou cambaleando direção as margens do açude. — Feiticeira, o que jogou em mim? Estou louco, eu preciso de Rita, quero ela pra mim. — ajoelhou — eu vou voltar pra aquela fazenda e vou levar ela comigo nem que eu tenha que matar aquele vêio safado. Não, se eu fizesse isso a Rita não vai me perdoa é nunca…por que, Nosso Senhor? — olhou para o alto e abriu os braços. — Por que me tornei um caba frouxo? Essa mulé é a minha desgraça!

Ele sentiu algo tocando suas costas.

— Te achei, caba, dessa vez tu não escapas.

[1] Cabrobó significa na gíria nordestina um indivíduo paupérrimo.

[2] Catenga na gíria alagoana significa lagartixa.

[3] Viver

[4] Olhar

[5] Viver

[6] Cipó de bimba de boi é um tipo de chicote feito com pênis de boi.

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