Capítulo III
Todas aquelas moscas na cozinha atrasaram o serviço de Berenice. Os escravos esperavam na lida, e ainda não tinham tomado o seu café da manhã. O patrão fazia questão de alimentá-los bem logo cedo, para que aguentassem o serviço pesado da roça. Por isso era preciso ser ligeira com o desjejum, caso contrário, ficariam sem o almoço. O mais difícil para as escravas da Casa Grande era organizar o café. Havia muitos pratos, copos e talheres. Se contassem errado, alguém ficava sem comer.
Berenice levou o leite para a plantação. Esperou que os escravos se alimentassem para recolher as sobras. Onofre ajudou-a daquele jeito seco, sem muito gosto.
_ Quero ocê hoje _ sussurrou no ouvido da negra. _ Deixa a porta aberta pra mim.
A escrava assentiu com a cabeça. Onofre não era um amante ruim, mas também não era de encher os olhos. Apenas cumpria com sua obrigação de homem.
Duas pretinhas seguiram Berenice até a Senzala. Havia o cego. Precisavam alimentá-lo, senão, morreria de fome.
Assim que passaram os limites da Casa Grande, sentiram um cheiro diferente, parecido com unguento de cavalo. As portas estavam fechadas e moscas sobrevoavam seus cabelos pixains.
_ Diacho! _ praguejou a escrava. _ Por que Onofre fechou essa maldita porta? Ele sabe que ela é encrencada. Vassoura! Vassoura! Trouxe seu café da manhã! Abre essa porta, homem de Deus!
Berenice sabia o nome do negro porque o alimentara na noite anterior.
_ A senhora não tem medo dele não? _ Perguntou uma das meninas. _ Aqueles olhos brancos me dão arrepios!
_ Deixa de bobagem! O homem tem os olhos vazadas, nada mais que isso.
_ Como que ele vai abrir a porta então? Não enxerga um palmo na frente do nariz _ zombou a outra negrinha.
Berenice murmurou algo parecida com ‘tenha respeito menina’. Depois chamou-as para perto da porta. Elas a empurraram com os pés. Estava presa em alguma coisa.
_ A senhora tá ouvindo esse barulho?
Algo mexia lá dentro.
_ Diacho! Vassoura!
As três foram para porta da frente. Elas chutaram o trinco até conseguir arrombá-lo.
_ Seu Onofre não vai gostar disso.
_ Aquiete-se, Suzana! Ele tem como fechar essa encrenqueira sem o trinco.
Quando abriram a “encrenqueira”, uma nuvem de varejeiras voou sobre elas.
_ Jesus, Maria e José! – Berenice fez o sinal da cruz.
_ Que cheiro é esse, Dona Berenice?
Um odor de podre vinha das camas, lugar onde os negros se deitavam para dormir.
_ Vassoura! Vassoura!
As mulheres avistaram um vulto de cócoras perto da pilastra. Seus lábios tremiam e seus braços também. Berenice não conseguia identificá-lo de onde estava, precisou chegar mais perto para vê-lo melhor.
_Shhhiiiiiiii, shiiiiiiiiiiii.
O som era como o sibilo de uma cobra.
_ Vassoura?
A cabeça do escravo pendeu para o lado. Moscas voavam de dentro dele, formando um redemoinho esverdeado no teto. Quando a boca do preto fechou, voaram para cima das escravas como uma nuvem de gafanhotos. Berenice sentia o gosto das larvas na língua e as roupas cheias de bernes. As negrinhas tentavam afugentá-las com tapas e socos. Quando mais se debatiam, mais insetos pregavam nos seus corpos. Seus pulmões estavam sendo preenchidos pelos marimbondos que se enfiavam por suas narinas. As negras arranhavam seus pescoços e braços tentando desesperadamente prolongar a vida. Quanto mais se debatiam, mais varejeiras brotavam dos seus ouvidos. Escutava-se pequenos muxoxos saindo de suas bocas em formato de O. Quando possuídas pela besta, despencaram vazias no chão. Vassoura caiu para frente (os olhos leitosos virados para Casa Grande). O escravo se esvaziara do mal para que ele pudesse ressurgir em outro lugar.
***
Onofre cutucava o corpo de Berenice com os pés. A fedentina se misturava com o cheiro de suor da senzala. Havia mais três corpos no chão, todos vazios por dentro. O Capataz só reconheceu as pretinhas da cozinha pelas roupas. Vassoura mantinha seus olhos fixos na Casa Grande. Onofre cobriu sua cabeça com um saco de estopa.
_ O que aconteceu aqui? _ Perguntou Pedro para seus homens.
_ Diacho! Eu não tenho a menor ideia, patrãozinho. Deixei o cego vivo naquele canto ali _ Onofre apontou para o lugar onde vassoura estava quando foi para a plantação _ Só sei que foi coisa ruim, muito ruim.
_ Não quero que Sarah fique sabendo do acontecido _ disse para ele, sisudo. _ Se ela ficar sabendo, mando cortar a língua de vocês.
_ Não vamo fala nada, Sinhozinho, nossa boca é um túmulo _ um dos homens retorceu os lábios com as mãos fingindo trancá-los com uma chave.
_ O que fazemu com os corpos? _ Perguntou Onofre.
_ Não precisa enterrar. Queime-os longe da Casa Grande.
_ Sim sinhô – Onofre enterrou o chapéu na cabeça. _ Até o cego?
_ Até o cego.
O sol queimava a moleira de Pedro quando fora da senzala. Precisava se apressar se quisesse falar com a mulher antes que o boato se espalhasse pela fazenda. Onofre daria um jeito nos negros, mas os brancos também tinham línguas afiadas. Sua mulher não precisava de mais esse fardo; o que acontecera na Senzala ficaria enterrado na Senzala, junto com aqueles escravos e seus cultos esquisitos. Mas, o que acontecera na senzala? Todas aquelas moscas devorando as entranhas dos corpos? Nunca vira nada parecido, nem nas carcaças de animais da caatinga. Aquilo não se repetiria. Mandaria Onofre proibir a religiosidade deles. Se quisessem rezar, que fosse sobre a batuta de um padre.
Sarah tricotava na varanda. Pedro subiu os degraus calado, com o chapéu enterrado na cabeça. O beijo que deu nela fora vazio, sem a paixão da noite passada.
_ O que aconteceu? _ Sarah conhecia o marido como a palma da mão.
Pedro se serviu de um copo de chá gelado. Precisava dar um jeito nos nervos.
_ Vamos precisar de mulheres na cozinha.
_ Por quê? Estou satisfeita com Berenice.
Como contar para ela que sua negrinha favorita havia morrido?
_ Aconteceu um acidente. Perdemos alguns escravos.
Sarah parou de tricotar. Não era a primeira vez que negros morriam em acidentes na fazenda. Que não fosse Berenice, ela era boa de lida.
_ O que foi dessa vez?
_ Um pedaço do teto desabou. Perdemos as duas negrinhas da cozinha e Berenice _ Pedro tomou todo chá do copo.
_ Eu disse para arrumar aquela bagunça.
_ O escravo cego também morreu _ Pedro se serviu de mais chá. Suas mãos tremiam.
Sarah sentiu um aperto na barriga. Seu ventre saltou sob o vestido, como se algo dentro dela quisesse sair. Uma lufada de vento derrubou os copos da mesa e a jarra de chá. Algo viscoso escorreu por suas pernas até os joelhos.
_ O que foi, mulher? Seus lábios estão brancos como vela.
Sarah correu para dentro da casa grande. O sangue sujou a varanda e o caminho até o banheiro. Pedro seguiu-a preocupado, com medo que fizesse alguma besteira. Quando perto do lavabo da sala, desmaiou no chão gelado. Sentia-se impotente. Acabara de perder outro filho.