É necessário se espantar, se indignar e se contagiar, só assim é possível mudar a realidade

Nise da Silveira

 

Indignação

 

– Escuta Nicolas… – Adoniran tenta manter certo nível de controle sobre a própria voz – Sei o quanto deve estar cansado e confuso. O quanto isso tudo tem mexido com você… Não tiro sua razão, acredite.

Permaneço em silêncio absoluto enquanto os gritos do velho Ezequiel me informam que eu não serei mais seu filho, já que ele se recusa a ser pai de um pecador e sodomita, e para não deixar qualquer sombra de dúvida, eu não serei mais nada seu, e ele também nunca mais vai querer me ver e me odiará até o dia que Deus decidir levar sua alma.

– Nicolas, na verdade a cirurgia que os médicos fizeram no nosso pai não foi só para tentar remover o tumor da próstata, eles pretendiam remover outros tumores, pois já desconfiavam da metástase… Mais uma vez decidimos te poupar até ter a certeza…

Ouço um suspiro de impaciência do outro lado da linha.

– Os médicos não deram muito tempo para o nosso pai, e assim que ele soube a primeira coisa que pediu foi para te ver novamente, portanto…

– Portanto o quê Adoniran? O que eu tenho a ver com isso? Já estou fazendo minha parte, portanto quem diz sou eu. Esqueça a mais remota possibilidade de me fazer voltar para esse fim de mundo. Nada e nem ninguém me fará decidir o contrário. E além do mais, quem garante que isso seja verdade? Você vem me enchendo de relatórios médicos nesses últimos seis meses de como o velho Ezequiel está, como o velho Ezequiel não está, se tomou o remédio x, se está vomitando, e agora vem com esse papinho de que queria me poupar… Foda-se!

– Nicolas, eu entendo que esteja nervoso, e não o condeno…

– Não me condena? – questiono e cada vez mais tomado pela impaciência – Não estou nem aí para o seu julgamento ou de quem quer que seja e muito menos para esse seu discurso recheado de demagogia, que não vai alterar minha decisão que já foi tomada há quase trinta anos – anuncio num tom excessivamente desafiador. Estou entrando em um campo de batalha e não pretendo, em hipótese alguma, deixar que me derrotem.

– Pense em vò Teresa, NIcolas, Imagina a felicidade dela…

– Tenho certeza de que vó Teresa compreende muito bem essa situação.

– Você não pode fazer isso com o nosso pai. Com o homem que nos criou. Que nos deu o exemplo…

– Que exemplo, Adoniran? Que exemplo o velho Ezequiel me deu? O que eu tive desse homem foi só intolerância, insatisfação…

– Deus não vai ouvir o que você está dizendo, meu irmão…

– Não envolva Deus nisso, a não ser o Deus que vocês criaram. Um ser cruel, vingativo, que castiga aqueles que não seguem os seus princípios, suas imposições. Você, o velho Ezequiel e de certo uma boa parte das suas ovelhas são pessoas frias, orgulhosas, hipócritas e que pensam que a igreja é uma jaula para manter Deus trancafiado e que só precisam se importar com Ele nos dias das suas reuniões, quando colocam suas melhores roupas, mas saiba que o Deus verdadeiro não pode ser enganado. Está em toda parte… – meu corpo todo estremece e então me apoio na pilastra atrás de mim – Eu cresci com a imagem desse Deus ingrato e que pune, graças à autoridade insana do nosso pai, contaminada por pré-conceitos, dogmas e intolerância. Para o velho Ezequiel eu nunca fui um bom filho, por mais que eu tentasse…

– Ele buscou te educar da mesma forma que foi educado, acreditando nos princípios religiosos que lhe foram passados por nosso avô, Antônio… 

Não consigo conter uma gargalhada carregada de sarcasmo. Olho para o meu carro e vejo o barman em pé, um tanto afastado, parecendo me encarar. Acho que vai embora. Foda-se.

– Princípios? O fundamentalismo em qualquer religião leva a pessoa ao autoritarismo, Adoniran, e você, é claro, vai defender o velho Ezequiel, não é mesmo? Sempre foi assim. O garoto de recados, o leva e trás, o pau mandado, que nunca ousou fazer qualquer coisa que não estivesse de acordo com os desmandos dele… Aliás, não fazia e não faz mais do que a obrigação, não é mesmo, afinal de contas você sempre foi o preferido, até porque é o único filho de sangue do nosso pai, o herdeiro da sua virilidade e da sua crença…

– Você está passando dos limites, Nicolas. É melhor desligarmos e conversamos depois…

– Não! – grito, decidido e pouco me importando com o lugar onde estou – Já deixei muita coisa pra depois. Agora chega. Preciso colocar tudo pra fora… Tudo que venho carregando dentro de mim durante todos esses anos, e você vai me ouvir…

– Nicolas, por favor, precisa se acalmar… Os ânimos estão alterados e você pode se arrepender do que possa vir a dizer…

– Não venha com essa sua tática manipuladora de querer mudar o rumo da conversa quando vê que está perdendo terreno. Já conheço esse seu joguinho, Adoniran, aliás, você aprendeu muito bem com a sua mãe… – minha ironia torna-se incontrolável.

– Nicolas, você não está agindo como uma pessoa adulta. Eu vou desligar – Adoniran ameaça com a voz um tanto trêmula.

– Não ouse – determino firme e me permito um segundo de silêncio antes de continuar – Está com medo de ouvir certas verdades? É isso? Não deveria, pois você sempre foi correto, integro e um exemplo a ser seguido… – nem um som é emitido do outro lado da linha – Ainda mais depois da morte do nosso irmão Lauro, não é mesmo? – despejo a pergunta sem qualquer piedade – De alguma forma você deve ter orgulho do que fez, afinal, graças à sua virtude, à sua fidelidade, você conseguiu ocupar o primeiro lugar no coração da sua mãe… Você não suportava ver o Lauro como preferido dela…

– Deixa de ser cretino – Adoniran reage, finalmente – O que o nosso falecido irmão tem a ver com essa nossa conversa?… Tantos anos se passaram e você parece que não mudou nada, Nicolas. Continua imaturo, de nariz em pé, desafiador, acreditando que é melhor que todos.

– Eu sempre tive coragem, é diferente…

– Insubordinado. Isso é o que você sempre foi. Agora fica aí posando de superior, de dono da verdade, só porque se deu bem na vida e ajuda a família aqui nesse fim de mundo, como você mesmo chama, mas não se esqueça de que aqui é a sua origem, o seu ponto de partida…

– E que pretendo um dia esquecer de vez, nem que seja a última coisa que eu faça…

– Orgulhoso e ingrato. Você devia era agradecer ao nosso pai por ter te colocado daqui pra fora…

– Como é que é? – pergunto carregado de incredulidade.

– É isso mesmo. Se você não tivesse ido embora daqui, de Arena, não teria se tornado o que se tornou, enriquecido, famoso, tudo o que você sempre quis… – o despeito estampado na voz de Adoniran é mais que notório. Enfim o inimigo está se mostrando depois de tanto tempo.

– Como você tem coragem de dizer uma coisa dessas? – questiono entre os dentes – Vocês aí, nesse mundinho, acomodados, não sabem o que eu passei… Comi o pão que o diabo amassou pra conseguir o que tenho hoje…

– Se não fosse o nosso pai…

– Se não fosse a intolerância e o preconceito do velho Ezequiel, que me escorraçou daí como se eu fosse um cachorro sem dono, sem me oferecer qualquer chance de defesa, sem se preocupar do que seria feito de mim… Ele simplesmente me jogou fora e agora você vem dizer que eu devo agradecê-lo? – me esforço pra conter o choro embargado na minha garganta.

– Eu vou rezar pela sua alma. Deus vai te orientar, meu irmão.

– Vai para o quinto dos infernos, Adoniran.

 

*   *   *

Esquecer. Desligar-me das minhas atormentações. Fugir dos meus problemas, e pra isso eu preciso me divertir, mergulhar em um mar de sorrisos, gente bonita, alegre, disponíveis e por que não também em um pouco de futilidade?

Atravesso a entrada da boate Night Angel depois de cumprimentar o funcionário que me recebe com um sorriso maravilhoso no rosto. Sei que está apenas e tão somente realizando o seu trabalho sendo simpático com a clientela, mas eu não me incomodaria nem um pouco em tentar conhecê-lo fora daqui, mesmo que “profissionalmente”, convidá-lo para um café, conversar e quem sabe algo substancial poderia acontecer… Certamente sairia mais barato que um garoto de programa, não que os serviços de um michê sejam caros se considerarmos que são pagos única e exclusivamente para fingir desejo e depois prazer.

 Embalado pela música desvairada da boate, as luzes de neon, as performances de Gogo Boys e a multidão efervescente de corpos brilhando, eu não penso duas vezes e já tiro a camisa, pendurando-a na cintura e me jogando na pista, onde me misturo e danço loucamente. Nada poderá me atingir aqui dentro. As lamúrias e a manipulação de Adoniran, a pressão para a entrega do meu original à editora, o Gustavo e sua eterna sombra pairando sobre mim, até mesmo a fuga do bonitinho do barman… O infortúnio do velho Ezequiel… Esse inferno astral que vem me perseguindo nos últimos seis meses vai ficar lá fora. Estou em um templo, protegido, incomunicável com o mundo real. Estou no Olimpo da vaidade e da beleza, em uma comunidade que esboça a três por quatro seus sorrisos alienados e abraços calorosos, encharcada de suor. Tenho passe livre para ser admirado, desejado, validado pela luxúria alheia. Não sou tão feio assim; tenho um corpo atlético conquistado a duras penas na academia e cabelos bem penteados e sei ser simpático quando preciso.

O importante é viver o momento, se entregar, e nesse exato instante preciso me sentir belo, interessante e indispensável. Quero ser amado e não vai ser muito difícil conseguir ser a razão do “afeto” de alguém, nem que seja por algumas horas, minutos… 

Sempre há jovens à procura de um substituto para seus pais ou até mesmo para seus avôs.

Crying in the rain, do extinto grupo A-Ha, começa a tocar.

 

Eu nunca deixarei você ver

Como meu coração partido está me machucando

Eu tenho o meu orgulho e sei como me esconder

Só restam magos e vou chorá-las na chuva

 

Que porra é essa? O DJ resolveu ter dor de cotovelo agora? Saio da pista imediatamente e corro na direção do bar, onde peço um bom drink com um bom energético ao mesmo tempo em que me debruço sobre o balcão, meio que entorpecido, mais ainda assim meneando a cabeça, rápido, enquanto sinto um ricto nervoso entre os lábios, minhas pernas vacilarem e uma crise de histeria subir dos pulmões para o cérebro na velocidade de um relâmpago, tentando, desesperadamente, dizimar a sensação de culpa e compaixão que se aproximam.  

Praticamente arranco a bebida da mão do barman e a entorno de uma só vez em minha garganta e retorno para pista num só fôlego. A música mudou, por Cristo, agora um hip hop rolando. Entrego-me de corpo e alma à viagem ilusória do prazer, onde meu corpo e libido são desfrutados como tal.

 

Sou um dos últimos a deixar a boate e caminho as duas ruas adiante até onde o meu Audi está estacionado carregando no peito uma profunda sensação de vazio e isolamento, como se minha existência não tivesse qualquer sentido; sinto-me derrotado, minhas forças enfraquecidas. Minha arquitetura emocional, ferida.

Retiro o pequeno molho de chaves do bolso da minha calça e insiro uma delas na fechadura do carro e depois de abrir a porta desmorono no assento da frente, como se tivesse acabado de levar uma grande surra, mas logo trato de me recuperar, pois estou numa rua completamente deserta e então ligo o motor, piso no pedal de embreagem e engato a primeira, seguindo meu trajeto pela madrugada afora, lutando bravamente para não esmorecer, não deixar as lágrimas que estão embargadas em minha garganta aflorarem, porém é em vão, elas correm pelo meu rosto e pelo meu pescoço junto com a raiva e a pena que sinto de mim mesmo.

Respiro fundo e balanço a cabeça sem pressa.

Eu não vou voltar para Arena. Eu jurei que nunca mais colocaria os pés sobre aquela maldita terra.

As imagens de meu pai e do famigerado do Dionísio se misturam e se embaralham em minha mente. Eles sorriem para mim. Um sorriso sarcástico rasgando seus rostos, deixando à vista uma fileira de dentes ameaçadores… A voz de Dionísio retumba em meus ouvidos, afirmando que seria a última vez enquanto assistia aquele completo estranho invadir minha cueca com sua mão gelada para em seguida começar a manipular o meu pênis ao mesmo tempo em que usava a outra mão para deslizar sobre minhas nádegas… A voz grave do meu pai, carregada de cólera, tomando conta daquele banheiro, questionando o que significava aquilo, me fitando com um semblante obscuro, tenebroso, onde cada linha, cada risco refletia o assombro, a vergonha e a ira que o assolavam.

Quando tudo isso vai acabar? Esse passado é poderoso demais, mas eu não sou o carrasco dessa história, então por que preciso me sentir tão culpado? Por que é tão difícil parar tudo isso? Por que eu ainda tenho que carregar essa cruz depois de todos esses anos? Eu já deveria ter aprendido que essas perguntas vão ficar sem respostas e acima de tudo que eu não devo ficar sofrendo nem um pouco por isso…

Graças a Deus consigo chegar à frente do meu prédio são e salvo. Meus olhos já estão secos, não sei se de tanto chorar ou por estar conformado com a miséria da minha alma. Inspiro profundamente e engato a primeira e entro na garagem parando sem demora na minha vaga. São quatro e meia da manhã e me sinto como se tivesse acabado de sofrer uma intervenção cirúrgica, estando, ainda, parcialmente sob o efeito da anestesia geral.

Não importa o que eu faça, sempre vou acabar sozinho atrás de um volante.

 

Comecei a ter consciência da minha sexualidade no final dos meus nove anos, apesar de sempre ter tido a certeza de que eu não era igual aos outros meninos. Coberto de apreensão, graças ao fundamentalismo religioso do velho Ezequiel, eu guardei todas as dúvidas sobre essa impressão, ao mesmo tempo em que buscava dentro do meu silêncio absoluto uma justificativa para o que acontecia comigo, e até onde me recordo, foi com cinco ou seis anos de idade que flertei pela primeira vez com a premissa dessa descoberta, vivenciando ingenuamente a súbita fantasia de uma figura masculina, um ser etéreo me segurando pelas mãos, me resgatando e me protegendo de um perigo que também não tinha forma ou rosto. Jamais questionei o motivo de não ser eu o cavaleiro e muito menos por não estar tentando salvar uma princesa.

Essa fascinação não durou muito tempo; desapareceu do mesmo modo como começou, involuntariamente, me deixando apenas com a sensação de ter gostado, e muito, do que eu tinha experimentado.

Sexo sempre fora um assunto que jamais se comentava dentro de nossa casa, exceto nas vezes em que meu pai fazia alusão a ele para exemplificar a irresponsabilidade de minha mãe por te se permitido engravidar de um inconsequente.

 A única referência que eu tinha sobre o assunto eram histórias (heterossexuais) em quadrinhos pornográficos, o famoso “catecismo” de Carlos Zéfiro, que Lauro ocultava em seu quarto (como ele conseguia contrabandear aqueles exemplares?), e que eu, depois de ter descoberto por acidente, folheava avidamente, escondido, sem que ninguém soubesse, nem mesmo ele.

De certa forma foi a minha iniciação sexual, em termos visuais, claro, satisfazendo uma limitada curiosidade natural entre o período da minha terceira infância e o início da adolescência, sem, ainda o impulso do desejo, a vontade de se manter um contato físico… Mas com quatorze anos, enfim, vivenciei essa experiência, de fato.

A primeira vez é sempre um momento muito delicado para qualquer pessoa, independentemente da sua orientação sexual. A dúvida do que pode ou não fazer ou o que vai dar ou não prazer, ou simplesmente a questão da dor, podem ser fatores que influenciam bastante o nível de ansiedade de qualquer adolescente que procura sexo com outra pessoa, e essa preocupação se torna muito maior se o parceiro em questão for o seu irmão postiço…

Desde que fui flagrado por Lauro me masturbando, eu deveria ter meus onze anos de idade e ainda ensaiava os primeiros passos dessa prática, que começamos a realizá-la juntos, por sugestão dele, às escondidas, sempre que podíamos e geralmente nas proximidades do lago que corria atrás do Bico Doce, aliás o único lugar da cidade favorável para essas escapadelas por se tratar de um bairro considerado à margem da sociedade e onde viviam os menos favorecidos e também aonde funcionava, como já havia dito, o estabelecimento de Sallomé Esperanza.

Confesso que fiquei assustado e muito, muito temeroso, mas Lauro me explicou que muitos garotos brincavam daquela forma, entre si, na adolescência, e antes mesmo que eu fizesse qualquer outro questionamento ou sequer tentasse um contra argumento, disse que não significava que aquilo nos transformaria em homossexuais quando ficássemos adultos.

Ainda estávamos vivenciando os reflexos da fatalidade que tinha ocorrido com seu Zé Pereira, o dono da padaria, um incidente que serviu para que eu somatizasse o fantasma da culpa, do pecaminoso, do proibido sobre a minha sexualidade latente. Faltava apenas uma semana para que eu completasse meus onze anos quando a tragédia aconteceu.

Seu José Pereira e a esposa, fiéis da igreja onde meu pai exercia sua função de pastor, ao retornar para casa, após um culto de domingo, flagraram o único filho, Juquinha, na cama com outro rapaz, um primo distante que estava passando férias por ali, morador da cidade grande, do Rio de Janeiro para ser mais exato, e que de certo arrebatou a fama unilateral de responsável por aquela leviandade, desrespeitando um lar tão prodigioso como os da família Pereira.

Seu José não teve outra reação a não ser apanhar o revólver que guardava dentro de casa e dispará-lo sobre os dois adolescentes, não lhes permitindo qualquer chance de defesa ou fuga, ceifando suas vidas imediata e precocemente, pouco se importando com as consequências que certamente recairiam sobre ele. Arena amanheceu e anoiteceu com aquela notícia por alguns meses. Um horror, já que ninguém esperava aquela conduta vinda de um rapaz como Juquinha, tão educado, respeitador, um arquétipo de virtudes e assim continuaria sendo considerado, ainda que possa ter cedido à manipulação do primo, tal como Eva cedera à cobra falante no Paraíso.

Os dias que se seguiram àquele duplo homicídio foram pautados por discursos eloquentes e inflamados oferecidos pelo meu pai aos seus herméticos fiéis; todas as mensagens arraigadas de justificativas e ponderações sobre o ato ensandecido do irmão José Pereira fortaleciam sempre e sempre e cada vez mais o princípio de que nenhum pai merecia ser submetido a tal prova, resultado de um ato abominável perpetrado pelo próprio filho, o único (e amado), criado com todo o rigor e respeito sob os mandamentos de Deus e que, infelizmente, se deixou dominar pelo inimigo…

– As pessoas que sentem atração pelo mesmo sexo são seres humanos fracos, que trazem consigo um aspecto negativo ao se permitirem ser tomados por um mal e se conformarem com ele… Não vos iludais! Nem os impudicos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os depravados, nem os efeminados, nem os sodomitas, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os injuriosos herdarão o Reino de Deus. Corinthians, capítulo seis, versículos nove e dez.

Finalizava com louvor o pastor Ezequiel bradando diante de sua congregação, gesticulando ferozmente enquanto reforçava sua aversão ao ato que ele nunca denominava, decretando para todos, sem exceção, que deveriam acatar a viável explicação de que nascemos de uma forma e devemos respeitá-la, e tentar viver de maneira diferente, seria dar vazão às emoções distorcidas, o mesmo que expulsar de seus próprios corações o Deus da libertação.

Eu e Lauro éramos os únicos que permaneciam sentados enquanto minha madrasta e Adoniran acompanhavam toda aquela euforia, toda aquela aclamação.

Aquele discurso e cada uma de suas palavras foram repetidos dentro de nossa casa durante o período que toda aquela história conseguiu durar. Meu pai não os reproduzia de maneira tão contundente e arrebatadora, mas o fazia da forma que acreditava ser suficiente para que tomássemos consciência do mal pelo qual o filho do dono da padaria havia se deixado sucumbir, e de toda a extensão de sua consequência, c, claro, da punição eterna nas chamas do inferno que aquela alma teria até o dia do Juízo Final. A hora do jantar era o momento propício para esses arroubos…

– Não se podia esperar outra coisa desse menino – comentou minha madrasta, depositando à mesa o copo com água, já vazio, que tinha levado à boca – O irmão José Pereira errou ao dar liberdade ao filho permitindo que ele se ausentasse dos cultos só porque o primo da cidade grande estava em sua casa… – ela terminou de proferir as últimas palavras e então direcionou um olhar carregado de censura para vó Teresa – Onde já se viu permitir que um filho de Deus deixado por Ele, sob nossa responsabilidade, se afaste da igreja, e por mero capricho?

Vó Teresa nada respondeu. Sabia que Maria Luzia estava lhe cutucando, aproveitando a oportunidade para criticá-la, condenar sua postura liberal no que dizia respeito à religião. Minha vó mantinha-se dentro do catolicismo do qual era seguidora desde os tenros tempos, e já havia aprendido a conviver, desde a época do meu avô Antônio, sob aquele tipo de repreensão.

– É o que sempre repito. Desconfio das pessoas que dizem saber qual é a vontade de Deus, pois quase sempre coincidem com os próprios desejos dessas mesmas pessoas – vó Teresa arrematou, mas sem fitar minha madrasta ou quem quer que fosse.

Depois da nossa primeira relação sexual, apesar de nunca termos experimentado a penetração, eu e Lauro mantivemos nossos encontros clandestinos durante o período de dois anos, mesmo tendo sobre nossas cabeças uma relativa ameaça. Meu irmão postiço e amante sempre deixava claro que o que tínhamos era uma mera diversão, portanto precisávamos viver o que precisava ser vivido, sem dramas, juras ou promessas de amor, sem desespero, ansiedade; éramos dois homens e ponto. Antes ele tivesse permitido que eu me apaixonasse, criasse expectativas, mas seu distanciamento afetivo e conflitante me preparou para algo tenebroso e que teria nome próprio: Dionísio! 

Faltando duas semanas para a sua morte, Lauro se tornou da noite para o dia uma pessoa completamente estranha, evitando todo e qualquer contato comigo. Até mesmo dentro de casa ele fazia o possível para que falássemos ou nos olhássemos o mínimo possível. Infelizmente não consegui obter qualquer explicação para aquela súbita alteração de comportamento, e até hoje vivo com um sentimento de culpa por acreditar ter sido responsável por algo e por não ter conseguido fazer nada a respeito para ajudar, inclusive não ter percebido que ele estava se afogando. O remorso é um misto de náusea, um senso palpável de arrependimento muito significativo.

Depois da partida de Lauro, todos da minha família, com exceção de vó Teresa, se tornaram ainda mais distantes de mim. Minha madrasta, então, dava a impressão de que me tolerava e nada mais que isso. Sentia pelos seus olhares que se pudesse faria com que eu desaparecesse da face do planeta com um estalar de dedos.

Acredito que a raiva, por certo prisma, é saudável. Pode assustar nossa família, amigos, mas é a força motriz dentro de cada um de nós que vai ajudar a seguir nossa inevitável jornada de ir até o fundo do poço, ficar bravo para então começar a lutar. A raiva significa que nossos sentimentos estão despertando do entorpecimento e da negação que tomava conta do nosso luto. O único problema com a raiva é que ela não flutua, precisa ser direcionada para alguma coisa ou para uma pessoa, e Maria Luzia não podia culpar Deus pela morte do seu filho, então alguém precisava ser responsabilizado pelo sentimento profundo e esmagador que aquela amputação lhe causara. Hoje consigo compreender um pouco de sua postura, de sua escolha em se fechar para a felicidade.

Como será que Maria Luzia está depois de todos esses anos? Seu azedume, sua altivez e sua tristeza será que enraizaram por completo em seu coração? Seu semblante estampando  vitória, ainda que contida, enquanto meu pai me arrastava para fora de casa sobre a terra batida, esfolando minhas costas, cotovelos e meus braços naquela tarde de fim de mundo, vagueia sempre que pode pela minha mente… Minha madrasta é como a lenda gaúcha da Teiniaguá, uma princesa moura de grande beleza transformada em cobra.

 

*   *   *

 

Sinto a água quente de o chuveiro cair sobre o meu corpo ao passo em que mantenho os olhos fechados. Viro-me, então, de frente para a ducha e agora deixo a água correr sobre minhas costas enquanto apoio minhas mãos na parede. Quando a canção Dancing Queen começa a tocar no meu celular que está depositado sobre a pia, não demoro a sair do Box, secar as mãos na toalha pendurada à parede, à minha esquerda, para atendê-lo. É minha amiga Micaela. Eu estava realmente precisando falar com ela.

– Olá! – tento parecer o mais próximo do normal possível.

– Oi, meu amigo. Como você está? – a voz de Micaela parece um tanto moderada – Notícias do seu pai?

– Sim – respondo reticente – O Adoniran me ligou ontem à noite pra contar que o velho Ezequiel quer me rever, acredita? O câncer se transformou em metástase.

Micaela faz um segundo de silêncio antes de voltar a falar enquanto parece recobrar o ritmo da sua respiração.

– E como você está?

– Não sei como responder a essa pergunta. Depois que recebi a notícia fiquei perdido, me enfiei numa boate, bebi o máximo que pude e dancei até me esvair em suor…

– E quando vai partir para Arena?

– Não entendi – devolvo sem titubear – Você e o meu irmão por acaso se conhecem, pois ele teve a mesma ideia brilhante.

– Quando vai entrar no avião e resolver o que precisa ser resolvido?

– É claro que nunca! O que eu vou fazer lá, Micaela? Responde.

– Permanecer aqui e ficar alimentando suposições não vai te ajudar em nada, pelo contrário, pode te trazer arrependimentos. 

– Eu não posso voltar pra um lugar onde não me quiseram. De onde fui expulso igual a um cachorro, sem qualquer tipo de consideração, sem a chance de sequer me defender…

– Pelo que entendi  seu pai está com metástase, Nicolas…

– Estamos falando do mesmo homem que não me quis como seu filho durante os dezessete anos em que vivi ao seu lado, caso a senhora tenha esquecido essa parte.

– Ele não pode mais te atingir, Nicolas, você não é mais aquele rapaz que saiu da sua cidade com medo do mundo – Micaela completa, taxativa – As pessoas se arrependem de algumas coisas que fazem na vida, e é provável que o seu pai queira se redimir! O que há de mais nisso? É chegar lá, só ouvir o que ele tem pra lhe dizer e pronto. Depois pegue o caminho de volta e continue a sua vida…

– O que o velho Ezequiel quer é tirar o fardo das costas dele e passar pra mim, isso sim. Não quer cruzar as portas do paraíso carregando sua culpa… – estremeço diante de minhas palavras. Um silêncio involuntário toma conta de todo o meu corpo – Eu não vou conseguir olhar pra ele. Eu não vou conseguir perdoá-lo…

– Pelo menos, meu amigo, aproveite essa oportunidade e tente se perdoar.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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