Ai de mim! Que o amor, tão gentil na aparência, tenha que ser tão cruel e tirano na prova.

Willian Shakespeare

 

Dionísio

 

Surpreendo-me com o avançado das horas ao olhar para o relógio digital que fica numa das paredes da banca de revistas onde eu estou folheando, sem qualquer interesse, um pocket book escolhido aleatoriamente dentre tantos outros dispostos em uma pequena prateleira que fica no centro do estabelecimento. De soslaio reparo o movimento das pessoas indo e vindo, passando por mim e sem me reconhecer.

Ainda bem.

Devolvo o pocket book para a prateleira e ato contínuo retiro do bolso de trás da calça jeans o ticket de minha passagem, para conferir, pela quarta vez, provavelmente em menos de quinze minutos, os dados do meu voo para Belo Horizonte…

Quarenta minutos. Apenas quarenta minutos para que a minha vida comece a mudar. Por que atravessei a alfândega com tanta antecedência?Ao menos agora não estaria hesitando em sair correndo para pegar um taxi e voltar para o meu apartamento, suspiro enquanto recoloco a passagem no bolso de trás da calça, ao mesmo tempo em que evito oferecer qualquer chance de abordagem aos atendentes da banca de revistas ao perceber o movimento de alguns deles perguntando aos clientes a minha volta se podem ajudar em alguma coisa. Todos têm um limite em que sua resistência cede à pressão e eu alcancei o meu. Estou agitado, ansioso, uma bomba relógio prestes a explodir, e nem um pouco disposto a interagir com qualquer ser humano sobre a face da Terra. Não queria estar neste aeroporto. Não queria estar fazendo essa viagem. Há cinco dias estava mais que disposto a não ceder à chantagem emocional de Adoniran tentando me convencer a colocar meus pés novamente naquele fim de mundo, e por que então carga d’água eu me deixei ser persuadido do contrário pelo Gustavo e pela Micaela?

Meneio a cabeça. Meu estômago está vazio. Não consigo comer ou beber nada há pelo menos umas doze horas. Meu corpo já está começando a implorar para que eu engula algo liquido. Um copo de água acompanhado de um ansiolítico, talvez. Estou alterado. Meu crânio transborda de cólera. Será que tomei a decisão certa? Precisei enfrentar o mundo e provar a mim mesmo que o que havia sido deixado para trás não tinha mais jeito, que eu estava sozinho e que o meu futuro só dependia de mim e de mais ninguém, e agora estou aqui, me permitindo fazer esse caminho de volta, chafurdando num mar de melodrama e sentimentalismo barato…

– Nicolas Coutinho?!

Não acredito quando ouço meu nome. Quem teria me identificado embaixo deste boné, desta barba por fazer, destes óculos escuros, desta calça jeans surrada e desta blusa social um tanto larga para o meu tamanho?

Certamente não reconheço a voz que me interpela e resolvo contar até dez antes de me virar com um sorriso contrafeito e me deparar com a figura de um rapaz de pele clara, dono de um par de olhos verdes penetrantes e sobrancelhas dignas de toda e qualquer apreciação, e que possivelmente não deverá ter mais do que 23 anos de idade. Sem sombra de dúvidas que em segundos minha fisionomia se transforma na personificação da mais genuína simpatia enquanto uma satisfação sem qualquer precedente toma conta de mim. Mereço um Oscar!

Se minha amiga Micaela estivesse aqui já teria me cutucado e chamado minha atenção, sugerindo para que sossegasse os ânimos. O ponto de vista em relação à faixa etária de homens para possíveis relacionamentos sempre foi motivo de divergência entre nós dois. Nunca conseguimos chegar a um denominador comum nesse assunto. Ela vive me dizendo o quão exigente e seletivo eu sou, superficial até, e se realmente meu propósito é alcançar uma relação estável, algum dia, o mais razoável será buscar um parceiro, de verdade, num homem também de verdade, como foi o Aramis.

Blá, blá, blá. Micaela, por mais que eu tente explicar, e olha que somos amigos há quase vinte anos e ela ainda é a única pessoa nesse mundo a qual me dou esse trabalho, não consegue entender a atração que sinto pelos mais jovens, a disponibilidade, a energia e obviamente a jovialidade que cada um deles emana. Claro, não vou negar o quão seletivo eu sou. Não é porque o ser humano está na faixa dos 20 a 28 anos que não precise ser submetido a um teste de qualidade; nada mais justo e não vejo nenhum crime nisso. O que posso fazer? Por mais que eu tente dar uma chance de aproximação a uma pessoa que não se encaixe dentro dos meus padrões de qualidade, e posso contar nos dedos todas essas ocasiões, nada acontece. Não consigo ir além de um cumprimento formal, e no frigir dos ovos, para que vou querer um relacionamento duradouro e estável? No estresse. No drama.

– Sim? – pergunto ao macebo parado a minha frente ao mesmo tempo em que deixo escapar um sorriso confiante, desses que só os modelos de comerciais para pasta de dentes conseguem ter.

– Para tudo! Eu não posso acreditar que estou diante de Nicolas Coutinho!

E eu não posso acreditar que meu “príncipe encantado” acabou de se transformar em uma rã tresloucada, atirando os braços para o ar, dando pulinhos e saracoteando a cabeça de um lado para o outro, concluo em um completo e desgostoso silêncio após presenciar a performance afetada de voz e gestos do ser humano à minha frente enquanto o meço de cima a baixo.

– Pra mim você é o maior escritor de todos os tempos, Nicolas Coutinho. Li todos os seus livros e amei cada um, mas confesso que O Inesperado Agora mexeu muito comigo. Demais da conta. Nossa! Você é mais bonito pessoalmente. Um gato. Meus amigos vão morrer de inveja quando souberem que estive cara a cara contigo.

O meu jovem fã provavelmente acabou de disparar cada palavra a 1,7 por segundo. Olho para os lados a fim de me certificar da plateia já formada ao nosso redor e graças aos céus o vai e vem dentro da banca de revistas continua e apenas poucas pessoas nos observam de esguelha. Volto a fitá-lo com uma das minhas sobrancelhas arqueadas, me controlando para não fazer uma cara de poucos amigos.

– Agradeço sua admiração. De verdade – retribuo tentando ser o mais gentil possível – Mas preciso pegar o meu voo, afinal, estamos em um aeroporto, não é mesmo? – termino, dando as costas ao mocinho e já fazendo menção em abandonar o local.

– Por favor, Nicolas Coutinho. Pelo menos um autógrafo. Por favor. Por favor. Por favor…

Lei De Murphy: Se alguma coisa puder dar errado, dará. E mais, dará errado da pior maneira possível, constato enquanto puxo o ar com toda a força que posso para dentro dos pulmões. Minha determinação em deixar o mancebo lastimoso para trás, sem a menor crise de consciência, cresce a cada segundo, porém me recordo das palavras ponderadas de Gustavo, sempre pontuadas em situações como essa: não conhecemos as pessoas, não sabemos o grau de influência que possuem e muito menos o número de seguidores nas redes sociais.

Eu preciso acabar logo com isso; as pessoas ao redor já estão começando a reparar que há algo de podre no reino da Dinamarca. Viro-me rapidamente, dessa vez não me importando em parecer realmente sisudo.

– E pra quem eu dedico? – pergunto entre os dentes, derrotado, enquanto apanho uma caneta na bolsa de couro que carrego atravessada ao peito.

– Nísio – meu fã responde prontamente com um sorriso de satisfação rasgando o seu rosto de lado a lado ao mesmo tempo em que estende um exemplar do meu último romance publicado, não deixando de me encarar, com seu cabelo impecavelmente penteado, uma pulseira de ouro no braço, da qual não tinha percebido a existência, e as unhas bem cuidadas. Agora tudo nele me deixa ainda mais irritado.

– Nísio? – questiono, apanhando o livro de suas mãos e baixando a cabeça novamente ao passo em que me preparo para preencher a página em branco da contra capa com uma dedicatória bastante simples e que não tomará muito o meu tempo.

– Na verdade meu nome é Dionísio – diz, com a voz um tanto hesitante, notoriamente embargada de vergonha.

Surpresa e incredulidade tomam conta de mim. Estaciono a caneta por alguns segundos ao ouvir esse nome enquanto meus lábios movem-se em silêncio, vacilantes, repetindo-o incansavelmente até que decido encarar meu admirador. Não sei por quanto tempo permaneci estático, pensativo…

– Não é um nome um tanto incomum para os dias de hoje? Ainda mais para um alguém tão jovem como você? – indago impaciente, o cenho cerrado, sentindo a cabeça já começando a latejar.

– Também acho. Nome velho pra alguém super fashion como eu – ele responde com os movimentos vivos de um pássaro – Mas meu pai sempre adorou mitologia e escolheu o nome do deus do vinho pra me batizar. Mas poderia ser pior, né não? Eu poderia me chamar Poseidon, Perseu, Édipo ou até mesmo Hércules – completa, fazendo uma careta e já ensaiando uma gargalhada.

– Eu conheço a mitologia grega – tolho sem demora, assinando meu nome embaixo de uma enxuta dedicatória, entregando o livro ao seu dono, praticamente empurrando-o para ele e deixando para trás, girando nos calcanhares, a banca de revistas ao passo em que busco o banheiro mais próximo, onde entro a passos largos, debruçando-me sobre uma das pias que está à disposição, tentando encharcar o rosto com a água fria que corre em filetes de uma torneira que precisa ser acionada a cada cinco segundos sob a pressão de sua tampa.

 

 

Dionísio era o único filho de Donana, mãe solteira, que graças ao seu talento imbatível para a costura e uma personalidade arraigada de uma passividade infinita, conquistara a tolerância de cada um dos respeitáveis e conservadores cidadãos arenenses após ter sido expulsa de casa, quando sua gravidez, da qual nunca se soube o nome do responsável por tal desgraça, não pôde mais ser omitida. De certo a condescendência coletiva só se fez presente depois da intervenção de uma tia avó octogenária solteirona de Donana, que mantinha um considerável status de respeitabilidade dentro da cidade, além de ser uma insigne fiel da congregação de meu avô Antônio, onde sempre colaborava com parte dos rendimentos de uma pequena herança deixada para si por um parente distante quando já tinha passado da idade de “arranjar um marido”. 

Os pais de Donana, ou Ana de Assis, abandonaram Arena dias depois que a colocaram para fora. Não se despediram, foram embora sem olhar para trás, agarrando-se de certo ao que restava de um orgulho vazio, hipócrita, pouco se importando com o destino da filha, que passou a servir de empregada para a tia, trabalhando dia e noite, desempenhando em casa os serviços de cozinheira e lavadeira, além dos trabalhos de costura impecáveis que vendia, depositando às garras da velha, conhecida pela personalidade ambígua, ora irracional e enlouquecida, ora amorosa, delicada e encantadora, tudo o quanto ganhava, como se ela precisasse de alguma ajuda financeira.

À medida que crescia, sob a tutela de sua tia-avó e à sombra da zelosa Donana, Dionísio foi assumindo uma postura petulante, desmedida, não tendo medo de qualquer um que fosse, afrontando tudo e todos, talvez buscando dar voz ao incompreensível silêncio resignado de sua mãe. Não foram poucos os desentendimentos entre ele e a tia avó, já que se recusava a se submeter às suas manipulações, chantagens, privações e ameaças que ficavam cada vez piores com o passar dos anos.

Quando a velha decidiu morrer, isso já aos 102 anos de idade, e por incrível que pudesse parecer, lúcida, Dionísio, no alto dos seus dezesseis anos, declarou em seu funeral em alto e bom som que aquele ser humano tinha vivido sem conseguir existir. Um baluarte da moral e dos bons costumes, mas que era incapaz de perdoar, fria, orgulhosa e que só se importava com Deus aos domingos, quando carregava consigo seu famigerado dinheiro para ir visitá-Lo na igreja, acreditando que O subornaria para que não observasse as profundezas e a escuridão que habitavam sua alma e tampouco a duplicidade de seu coração.

Dionísio foi retirado do local, evidentemente.

Não fosse a clientela conquistada por Donana através da costura, ela e Dionísio, que trabalhava como ajudante de sapateiro, provavelmente teriam enfrentado dificuldades, já que o dinheiro da tia avó foi deixado para igreja, com fins de apoio a obras de caridade.

Dionísio tinha por volta de 21 anos quando começou a se aproximar de mim. Isso aconteceu alguns meses depois do falecimento de Lauro. Confesso que apesar de sua beleza, alto, pernas e braços longos, cabelos castanhos naturalmente rebeldes, olhos marcantes, sobrancelhas grossas e uma postura sempre altiva, como se fosse feito de concreto, sua presença me dava certa repulsa, possivelmente construída sobre o muro do preconceito que a cidade havia moldado em torno de si devido à sua origem incerta, bastarda, ou quem sabe inveja pelo seu modo atrevido de encarar a vida, sem ter um pai castrador à sua sombra.

Nunca tive a menor intenção de iniciar aquela amizade, mas acabei aturando sua presença, pois tinha vergonha até de pedir que se afastasse. Hoje enxergo que a morte de Lauro me deixou completamente introvertido, perdido num mar de equívocos sentimentais, culpas mal resolvidas, acabando por me levar a caminhos autodepreciativos e destrutivos. Acreditar que nossas feridas serão curadas colocando nossa felicidade nas mãos de outro sem medir as consequências é um dos maiores erros que cometemos, por mais imaturos que possamos ser.

Com o tempo Dionísio foi ganhando terreno e acabamos por manter uma constância de encontros, sempre furtivos (nada diferente de como acontecia com Lauro), onde ele me dispensava uma enorme atenção, carinho, afeto, assim como certa malícia, um desejo transitando em seu olhar, algo que não tentava disfarçar, apesar de sua sobriedade, do seu aparente bom comportamento. Naturalmente uma confiança instalou-se entre nós e um belo dia Dionísio confessou que sempre fora interessado por mim, que não sabia os motivos de eu ter mexido com ele, que havia tentado resistir, afinal gostava de garotas e jamais sentira uma atração como aquela…

Após ter se declarado, ele se afastou, passando a me evitar desde então.

De modo surpreendente senti saudades de sua presença; um afeto inusitado e uma vontade absurda de tê-lo invadiram cada fibra do meu corpo e então criei coragem, principalmente por vislumbrar a chance de me ver livre das correntes que me aprisionavam ao espectro de Lauro, e o procurei decidido a me entregar de corpo e alma à situação. Vergonha, medo, desejo sexual e tudo mais me levaram a acompanhá-lo até a uma cabana de madeira que havia um pouco além do rio que corria por detrás do Bico Doce, e da qual eu jamais havia tomado conhecimento; no intuito de me consolar Dionísio afirmara que praticamente ninguém sabia da existência daquele lugar, mas também não me explicou como conseguiu encontrá-lo.

Para se chegar até lá, apesar de não ser uma travessia impossível, era desgastante. Era preciso enfrentar um pedaço de mata quase fechada e em seguida um paredão de rocha que se estendia por alguns poucos quilômetros, coberto por musgo verde, tendo sempre o som das águas do rio nos escoltando até depararmos com uma pequena estrutura de madeira que mais parecia ter saído de algum daqueles filmes de terror B muito em voga nos anos 80. O interior da tal cabana, iluminado por uma claraboia com ventilação, de longe era um lugar espaçoso, como podia se esperar, além de muito, muito simplório, obsoleto até. Bancos feitos de tronco em volta de uma mesa rachada, sem pintura, sem acabamentos, apenas e tão somente segura por pregos, cujas pontas viradas eram impossíveis de não ser vistas, e uma cama, ou algo que parecia uma cama, com um colchão coberto por uma manta grossa e dois travesseiros envoltos em um tecido que não consegui distinguir, era tudo o que se podia encontrar.

Não sabia mais o que sentir ao passo em que buscava registrar cada canto daquele lugar, meu peito arfando enquanto imaginava o que já poderia ter acontecido naquele espaço pequeno e vazio, quantas pessoas já teriam passado por ali, todas levadas por Dionísio, moças e rapazes? Será que Lauro conhecia aquele local, e se o conhecia por que não teria me persuadido a ir até lá, afinal, teríamos tido mais liberdade…

Quando dei por mim, estava sendo despido e Dionísio não me encarava, apenas falava e falava palavras e frases carregadas de obscenidade às quais eu não conseguia responder, nem tampouco seus gestos eu conseguia retribuir. Estava travado física e verbalmente, mas ainda assim me deixei levar até a cama onde sem cerimônias, sem preliminares, fui penetrado pela primeira vez. Uma dor terrível, meu abdômen parecia que estava sendo perfurado. O desejo findou na hora e depois de alguns minutos consegui pronunciar, entre gemidos, o que estava sentindo. Dionísio me ignorou, mas diante do meu notório incômodo, que voluntariamente começou a dificultar toda a situação, passou a me tratar com um pouco mais de paciência, me convencendo a aguentar firme. Acabei optando por esconder meu rosto no travesseiro para chorar em silêncio, escondido…

Depois da traumática experiência, foi minha vez de evitar Dionísio. Estava mais que determinado a deixar aquela amizade e tudo que ela trazia, para trás. Os dias se passaram sem que eu tivesse notícias suas até que comecei a receber presentes, todos muito simples e que não levantavam qualquer suspeita; ele os mandava entregar no armazém do meu pai quando eu estava por lá, trabalhando, acompanhados de bilhetes com pedidos de desculpas, versos ou poemas. Idiota, me deixei deslumbrar e os encontros furtivos recomeçaram e com eles o sexo, na maioria das vezes ainda sitiado por dor, onde eu sempre fazia às vezes de passivo, já que Dionísio se recusava a sequer deixar acariciar sua bunda.

Os sinais de alerta estavam lá, em tons de vermelho, gritando, mas eu não me questionei.

 

Finalmente veio a tona o seu desejo obscuro. Ele me pediu, sem rodeios, para assistir outro homem transando comigo, alguém mais velho, apesar de não ser muito difícil encontrar alguém “mais velho” que um garoto de 16 anos. De início mostrei-me resistente, mas Dionísio me prometeu que seria a única vez e que por confiar demais em mim e na relação que estávamos tendo, se permitira escancarar sua alma daquele jeito, mas compreenderia se eu não aceitasse. Deixei-me levar mais uma vez e naquela maldita cabana, sob o seu olhar voraz, fui tratado (e me senti) como um brinquedo sexual por um senhor que aparentava ter, no mínimo, uns 60 anos.

Infelizmente a promessa de Dionísio não foi cumprida e intercalando nossos encontros ele ia me pedindo mais e mais que as experiências com os homens maduros se repetissem, argumentando que eu o estava ajudando-o a abandonar sua “fraqueza”, lhe permitindo a cada trepada enxergar e reconhecer o quão repugnante e absurdo era tudo aquilo. Nunca soube como Dionísio encontrava aqueles senhores e os convencia a se deslocarem até aquele fim de mundo, até aquela cabana no meio do nada. Por sorte nenhum deles era de Arena.

Amor não sufoca, não controla, e principalmente não humilha, não machuca, não faz pressão. Não ameaça te abandonar. Como todo adolescente valorizei a intensidade da paixão, achei que um relacionamento precisava ser épico, dramático, igual aos que aconteciam nos filmes ou livros românticos, e também entendi que deveria ser um sentimento forte o suficiente para redimir a razão do nosso afeto, e Dionísio, ao menos imaginei, sofria e se martirizava com aquela sua compulsão…

Ao tempo em que buscava ser forte, um verdadeiro pilar para ele, eu me fragilizava mais e mais, cada uma das partes do meu corpo pareciam pedaços que aos poucos iam se separando uns dos outros, alimentados pelo medo, a vergonha e a culpa; fragmentos metamorfoseando minha personalidade, ainda que não soubesse, num estado líquido, transformando-me em uma pessoa vazia como o vácuo, pobre de luz como a penumbra, descartando a preservação dos próprios valores sem qualquer dificuldade e sentimento de culpa. Um líquido, sim, mas sem frasco.

E onde estava minha família que não conseguiu enxergar a minha mudança, por mais gradual que possa ter sido? Não me refiro a Adoniran, tão adolescente e imaturo quanto eu, e tão pouco minha madrasta, que se por acaso tivesse percebido o meu infortúnio, de certo teria permanecido calada, fartando-se diante do meu desespero silencioso. Mas e o velho Ezequiel… E nem mesmo vó Teresa? Os sinais estavam lá: a imensa dificuldade em continuar a estabelecer um relacionamento com todos eles, me tornado quase um “hóspede” dentro de casa; a repentina queda no desempenho escolar; o enorme sentimento de culpa em relação a tudo; a falta de interesse em participar das festividades da cidade…

Um pouco mais de seis meses já durava a ciranda de humilhações administrada por Dionísio quando ele me informou que havia arranjado uma namorada. Eu sabia que aquilo iria acontecer em algum momento, até porque as garotas só faltavam arrastar um bonde ou o que quer que fosse por ele, mas eu estava apaixonado e não pude e nem quis disfarçar o ciúme que estava sentindo.

– Uma namorada? Assim? De repente? – perguntei pouco me importando o quão desesperado eu poderia estar parecendo.

– Ah, por favor, Nicolas… – Dionísio iniciou com um sorriso jocoso ao mesmo tempo em que tentava se aproximar de mim, desistindo diante da minha determinação em mantê-lo a certa distância mesmo no espaço limitado daquela cabana – Não faça tempestade num copo d’água. Pare de agir como uma donzela desiludida…

O sarcasmo e a contrariedade deram as mãos ao seu ar zombeteiro enquanto ele se voltava, caminhando sem pressa, na direção da cama, onde se deixou cair abrindo braços e pernas.

– E como você quer que eu reaja depois de saber que você e a filha do diretor do colégio estão namorando?

– Então o problema é ela ou o diretor? – ele lançou sua pergunta transbordada de cinismo.

– Não se faça de idiota. Como eu fico nessa história toda?

– Como você fica? – um ricto nervoso atravessou os lábios de Dionísio – Não vai dizer que está com ciúmes? Que o meu namoradinho tinha que ser você? – de um salto ele se levantou e se acercou de mim, não me dando sequer a mínima chance para recuar – Ora, Nicolas, faça-me o favor. Já te falei que somos dois homens… Que eu sou homem… – mal terminou de vomitar seu desprezo ele passou a me examinar de cima a baixo com certo ar de superioridade como se eu fosse um mero pedaço de carne estragada – Para de agir como um maricas

– Então me responda senhor macho alfa – contra ataquei não me deixando intimidar – O que fizemos nesse um ano? O que eu fiz nesse último ano da minha vida e ainda mais nesses últimos seis meses onde me sujeitei sem receber nada em troca, vendo você se divertir às minhas custas, sendo tratando como um simples objeto sexual?- fechei os olhos e meneei a cabeça tentando organizar os diversos sentimentos que me invadiam, como se eu estivesse em um caleidoscópio carregado de emoções até que respirei bem fundo antes de voltar a encarar Dionísio. Eu estava com muita, muita raiva – O que você quer mais de mim?

Nenhuma resposta. Nada. Apenas um sorriso de desdém foi o que recebi.

– Sabe qual é a minha vontade nesse momento? – lancei minha pergunta carregada de frustração diante da sua fisionomia impassível – Sair correndo e gritar pra toda Arena, pra Deus e o mundo, o que existe entre a gente…

– Escuta aqui seu merdinha… – Dionísio, enfim, reagiu, partindo na minha direção como um animal feroz, estreitando o espaço que ainda faltava para nos unir, empurrando-me com brutalidade até me encostar à parede, imobilizando em seguida minhas mãos e colocando-as para o alto, acima da minha cabeça, forçando a fitá-lo por mais que eu resistisse – Desde o começo você sabia do que eu gostava e aceitou. Agora não me venha jogar na cara, me ameaçar… Já te disse isso e vou repetir: se alguém souber de qualquer coisa que há entre a gente, eu sou capaz de fazer uma besteira, ouviu bem?

Por um instante, que mais pareceu uma eternidade, nos confrontamos como dois estranhos, com a respiração ofegante, até que Dionísio decidiu me libertar.

– Acho que não dá mais, não é? – ele deu um passo para trás sem tirar os olhos de cima de mim – O melhor a partir de hoje é deixarmos de nos ver. Esquecer tudo isso. Seguir com nossas vidas…

Sua sentença foi proferida sem ponderação, fria, distante ao passo em que seu peito crescia gradualmente na medida em que inspirava, com força, dilatando as narinas até deixá-las completamente vermelhas.

Aonde eu havia chegado? Refletia enquanto investigava cada linha do semblante de Dionísio até que ele se virou pausadamente, ensaiando uma despedida silenciosa, como se estivesse esperando qualquer gesto meu para impedi-lo…

– Por favor… – não consegui resistir e então segurei o seu braço direito com uma força que até eu mesmo não sabia possuir. Dionísio aguardou alguns segundos antes de se voltar por completo na minha direção – Tudo bem você seguir com o seu namoro… – eu disse, baixando os olhos de imediato – Mas não posso continuar… – reivindiquei reticente, com um fiapo de voz.

– Será a última vez. Eu prometo – ele anunciou com extrema generosidade, levantando o meu queixo bem devagar até nossos olhares se encontrarem.

 

 

 

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