O aço dos meus olhos e o fel das minhas palavras

Acalmaram meu silêncio, mas deixaram suas marcas…

Fagner

 

Se hoje sou deserto…

 

Olho para a minha imagem absorta refletida no espelho do banheiro do aeroporto.

Estou exausto!

Inspiro e expiro e então o reflexo embaciado de minha mãe me dizendo, na única vez em que nos encontramos, de como eu era lindo e que meu pai biológico teria tido orgulho de me conhecer, me invade a mente de supetão. Seu prognóstico, nas entrelinhas, não passava de uma maldição onde ela estava me dizendo que não tinha sido feliz então eu também estaria proibido de sê-lo.

Apanho algumas folhas de papel toalha e começo a secar com demasiada calma minha cara molhada até que percebo a cabeça de um homem se colocando para fora de um dos reservados, olhando para os lados e ficando constrangido ao se deparar com minha presença. É óbvio o que ele está tentando esconder. Até o mais inexperiente frequentador de um sanitário público sabe o que acontece dentro desses reservados, mas apesar da relativa cumplicidade masculina, manter a dignidade diante das sórdidas aventuras é imprescindível, e por essa razão, talvez, o aflito ser humano, acreditando que essa seja sua única chance a ser aproveitada, e contando apenas com uma testemunha ocular para incriminá-lo, já que o banheiro está vazio por incrível que possa parecer, sai de seu esconderijo com o olhar cabisbaixo, fugindo, antes mesmo que eu possa deixar o local na tentativa de uma reação solidária.

Enfim, já que ele se precipitou, resolvo ficar para confirmar minha suspeita. Bingo! Não demora muito para que a figura de um rapaz fechando a braguilha da calça saia do mesmo lugar. Ele parece não se importar nem um pouco com a minha presença, reagindo com desfaçatez, chegando mesmo a me cumprimentar com um sorriso maroto no canto dos lábios enquanto lava as mãos para ir embora e sem nenhuma pressa. Algumas coisas não mudam.

Dou de ombros e volto a me olhar no espelho, ajeitando os cabelos e reparando inevitavelmente alguns fios brancos que estão começando a apontar. Um lembrete de que o tempo é implacável e não se pode passar por ele sem marcas. De pronto busco a porta de saída do banheiro, me desviando de alguns homens que começam a chegar e logo procuro pela cafeteria que havia visto quando cruzei a alfândega. Mais do que nunca preciso de um capuccino, pois é o que me deixa um pouco mais relaxado diante de algumas situações da vida. Independente da estação do ano ou da temperatura local, esse pequeno luxo me é imprescindível.

– Alô! – atendo o celular sem sequer conferir o número que está sendo anunciado no visor enquanto me acomodo na única mesinha disponível do estabelecimento, colocando minha bolsa de couro cuidadosamente sobre outra cadeira vazia, ao mesmo tempo em que faço sinal para uma das atendentes.

– Onde você está? – pergunta uma voz feminina do outro lado da linha que não demoro a reconhecer. É minha amiga Micaela.

– Por enquanto no aeroporto, mas com uma ideia fixa de sair correndo e voltar para o meu apartamento, para a minha cama, para a minha vida e jogar toda essa insanidade para o alto – respondo, aceitando o menu oferecido, já indicando o meu pedido à garçonete, que se afasta sem demora.

– Você já chegou até ai, então para de palhaçada.

– Agora a pouco tive um sinal de que realmente não devo voltar para Arena – informo ao passo em que levo a mão na altura da nuca, dobrando o pescoço levemente enquanto observo com um olhar enfadonho um pequeno quadro na parede à minha frente. Se não me engano é alguma cópia de uma das obras de Van Gogh. Vai saber!…

– Mais um sinal? – Micaela questiona do outro lado linha e eu percebo a pitada de sarcasmo no tom de sua voz.

O capuccino é depositado sobre a mesa e então despejo automaticamente a quantidade de açúcar que acho suficiente e mexo e remexo a bebida tantas vezes necessária até resolver prová-la.

– Você sabe que não sou supersticioso -me defendo, tragando mais um pouco do meu café expresso e leite vaporizado – Mas um rapaz me abordou e me pediu um autógrafo, e não imagina minha surpresa quando me disse o nome dele para que colocasse na dedicatória…

Um minuto de silêncio.

– Você está ouvindo, Micaela? – pergunto, irritado.

– Claro que sim. Qual foi o nome?

– Dionísio – arqueio minhas sobrancelhas ao mesmo tempo em que respondo, tendo o cuidado de pronunciar o nome pausadamente – Me diga quantas pessoas você conhece que tem esse nome, ou com que frequência você o ouve, ou tem acesso a ele?

– É só um nome, Nicolas. Poderia ser qualquer outro. Eu entendo seu receio, suas neuroses diante de tudo isso, mas quantas e quantas vezes, nesses últimos cinco dias já conversamos desde que você recebeu aquela ligação do seu irmão dizendo que seu pai queria revê-lo, e esmiuçamos esse assunto à exaustão para que se sentisse mais seguro…

– Corrigindo. Na verdade mais fragilizado para aceitar a lavagem cerebral que a senhora e o Gustavo me fizeram…

– Meu amigo, até quando você vai continuar fugindo das coisas?

– Como assim? A senhora sabe muito bem que vocês dois me persuadiram a fazer essa viagem, mesmo tendo plena consciência do quão traumático ela será para mim, mesmo sabendo da enxurrada de problemas que tenho para resolver aqui, no Rio, na minha vida real. A Editora está no meu encalço porque eu ainda não entreguei uma página sequer do meu novo livro…

– Pelo amor de Deus, Nicolas, até quando vai continuar vivendo dessa maneira? Fugindo dos problemas que você acredita não poder resolver ou não faz força para que isso aconteça… Eu te conheço há quase vinte anos e sempre você tratou suas dificuldades acreditando que alguma força poderosa iria eliminá-las de um instante para o outro, num passe de mágica…

-Você está sendo injusta…

-Pelo contrário – Micaela segue firme -Estou sendo sua amiga. Não consigo entender isso. Você se tornou um homem bem sucedido dentro da sua profissão, estável financeiramente, inteligente e admirado por muitos, mas age como um adolescente ou então parece viver dentro de uma caverna, sempre se isolando… Você já teve exemplos suficientes de que os problemas não se resolvem sozinhos, e pior, colocá-los embaixo do tapete nunca foi a melhor das soluções…

-Você devia ter se formado em psicologia e não em história, Micaela, e além do mais, eu não sei aonde você quer chegar…

– Primeiro, por que não permitiu que o Gustavo o acompanhasse?

– Eu não vou discutir isso aqui e agora, e além do mais eu não tô acreditando que ele te procurou para reclamar…

– De verdade eu acho que ele seria um bom apoio para você, meu amigo. E vai precisar…

– Não. Já convivo além do permitido pelo protocolo de sanidade mental sob a sombra do Gustavo e não quero estender ainda mais o limite da minha vida pessoal para que se intrometa, algo, aliás, que ele faz sem grandes dificuldades.

– Eu nunca consegui entender essa relação de vocês…

– Ele é meu assistente, Micaela, e nada mais do que isso. Eu e o Gustavo nos conhecemos desde a época em que vivíamos nas ruas, você sabe dessa história e eu já cansei de te dizer isso, mas não sei por que carga d’água insiste em tentar encontrar alguma coisa onde não há nada para ser encontrado – determino sem demora, e como sempre ocultando o real motivo da obrigação que tenho para com o meu assistente. Micaela nunca soube que ele esteve atrás das grades por sete anos, e muito menos por minha causa.

– Eu não busco encontrar nada, apenas observo as reações do seu assistente… – ela conjectura.

– Ok, Micaela – reinicio bastante enfático – Estou me sentindo um personagem de Charles Dickens diante de todas essas agruras que vem acontecendo na minha vida nesses últimos seis meses. Em alguns momentos até me pergunto se tudo isso não faz parte de um pesadelo bem longo… – reflito por alguns instantes antes de prosseguir – Discutir sobre os desvarios do Gustavo não vai me ajudar em nada…

-Certo. Vamos retomar o cerne da questão. Sua saga até Arena.

– Se voltarmos a falar sobre isso eu juro que não terei mais dúvidas, Micaela. Pegarei um voo para a Europa e nunca mais volto, deixando tudo, inclusive Arena, perdidos para sempre na poeira do tempo e do espaço.

– Não vai não, e sabe por quê? Lá no fundo, você, mais do que ninguém, quer curar essa ferida, lavá-la, desinfetá-la e depois cobri-la com um bom curativo que vai doer, muito, mas ao menos irá cicatrizar.

Um instante de completo silêncio que mais parece uma eternidade se faz entre a gente. Sinto minha respiração pesada.

– Vamos supor que esteja certa – dou de ombros ao mesmo tempo em que puxo minhas sobrancelhas para dentro e para cima, projetando meu maxilar para frente, deixando cair os cantos dos lábios – Que eu esteja empenhado a dizimar o meu infortúnio. Vou descer do avião, dirigir um carro alugado por quase oito horas e chegar a Arena, depois de quase trinta longos anos, como se nada tivesse acontecido?

– Não estou dizendo que será fácil, que o reencontro com sua família será como um desfecho de novela, onde tudo se resolve no último capítulo num passe de mágicas e todos vivem felizes para sempre…

– E você sabe o quanto não simpatizo com esses artifícios preguiçosos e utópicos…

– Então meu amigo…

– Então Micaela, quase três décadas se passou. Eu não sou mais o mesmo e as pessoas que estão lá também são outras… Ao rever o velho Ezequiel toda minha suposta boa vontade irá cair por terra. Por mais que ele esteja moribundo não vou conseguir ultrapassar a barreira que se criou entre nós dois…

– Por que continua insistindo em tentar ser essa pessoa insensível? O que me deixa mais indignada é a sua resistência, Nicolas. Você não precisa fingir ser algo que não é. Não precisa disso. Por que tem medo de expor o que sente? Prova maior de que você não é esse ser humano cruel, frio, distante que insiste em querer parecer, foi o que fez pelo Aramis, sua dedicação enquanto o câncer o consumia, o seu desespero por se achar incapaz de poder salvá-lo… Meu Deus, ali, naqueles últimos meses de vida dele, você deixou sua armadura cair, mostrou realmente o que carregava dentro do seu coração… Não precisava ser muito próximo a você para notar o seu sofrimento…

Balanço a cabeça de um lado para o outro enquanto exercito rapidamente os meus ombros, num ir e vir desesperado, buscando amainar o peso que sinto sobre cada um deles ao passo em que me vejo ajudando uma das enfermeiras contratadas a trocar a fralda geriátrica de Aramis depois tirarmos o seu pijama.

Eu vou começar pela parte de cima, ela comunicava ao mesmo tempo em que lhe cobria as partes intimas com uma toalha. Vou lavando e você vem logo em seguida secando, continuava as suas instruções até me questionar os motivos de eu estar fazendo tudo aquilo, já que havia contratado os seus serviços, além do serviço de outras duas enfermeiras… Respondia apenas com um aceno de cabeça para não parecer mal educado ou desatencioso enquanto observava Aramis e o quão diferente ele estava da imagem do homem que eu tinha conhecido: alto, sempre mantendo uma postura ereta, invejável, de cabelos curtos e barba, quando usava, sempre aparada, mas com alguns fios brancos que ele rezava para que não se multiplicassem, e sabia-se lá como, sempre alinhado e elegante, mesmo vestindo uma camiseta, bermuda e chinelo…

No que ele havia se transformado em menos de cinco meses após ter sido diagnosticado com câncer? Em um homem fraco, bastante magro, ossudo até e mal tendo forças para abrir os olhos; mover-se sozinho na cama, por menor que fosse o esforço, inclusive a fim de tentar aliviar a dor que sentia e que lhe deixava exausto… Como me perguntei até quando ele iria suportar tudo aquilo…

– Eu estava apenas sendo grato a tudo que ele me fez… – respondo, enfim, de forma pragmática – Antes de ser meu companheiro, Aramis era um grande amigo. Aquela foi a última chance de me redimir, e só eu sei o quão negligente fui com ele, o quão injusto…

– Então, meu amigo. O seu pai deve estar sentindo essa mesma necessidade de se reparar. Ele está sendo consumido por uma doença cruel e está sofrendo todos os problemas que essa enfermidade traz… Assim como o Aramis sofreu…

Tenho vontade de confessar a Micaela, como de outras vezes, que na verdade eu matei Aramis, porém, novamente engulo em seco e decido fazer uso do silêncio para preservá-la… Ele, o silêncio, desde o começo dos tempos, caminha ao lado da covardia.

– Esvazie os seus bolsos de todas essas pedras que vem carregando –  Micaela sugere com brandura.

– E quanto ao Dionísio? – pergunto, com disfarçada irritação, dando duas pancadas com a lateral da mão esquerda sobre a mesa, fazendo algumas gotas do meu capuccino respingar – Esqueceu que posso esbarrar com ele quando estiver em Arena, Micaela? De todos daquela cidade, é a última pessoa que eu gostaria de encontrar…

Passageiros com destino ao aeroporto de Confins, em Belo Horizonte, com saída prevista para as 10h45minh, se dirijam ao portão de embarque…

É a primeira chamada para o meu voo. Meu coração dispara, meus músculos se retesam e um calafrio percorre minha espinha num vai e vem desenfreado. Vou ter um ataque cardíaco aqui e agora. Não tem como ser diferente. Arena está ficando cada vez mais perto.

– Chegou a hora, meu amigo. Boa viagem! Tenho certeza de que tudo vai dar certo.

– Vai dar certo pra quem? – contraponho.

Um breve silêncio se faz do outro lado linha. Micaela nada responde e então ouço o telefone ser desligado.

Sorvo o que resta do meu capuccino e faço um sinal para a atendente, solicitando a conta. Nesse ínterim me levanto, coloco a bolsa de couro novamente atravessada ao peito e guardo o celular no bolso esquerdo da calça jeans. Não demora muito e a funcionária aparece com o valor do que eu consumi e um sorriso no rosto; de pronto realizo o pagamento, praticamente ignorando sua presença, mas lhe deixando uma gorjeta generosa e sem pressa alguma caminho para a saída da cafeteria, de onde visualizo o portão de embarque ao qual devo me dirigir.

Quanto mais acho que tenho controle, mais perdido eu estou, murmuro ao passo em que vou me desviando das pessoas, tentando controlar meu medo, meu desespero, minha raiva até que por fim alcanço a fila disposta em frente ao portão 8, onde não demoro muito para entregar minha passagem e identidade para que o funcionário da empresa aérea faça a devida conferência com seus gestos rápidos e frívolos, me devolvendo quase que de imediato a CNH e uma parte do ticket destacado, que observo por alguns segundos antes de guardá-los para então começar a percorrer o trajeto até a entrada do avião como se estivesse sendo escoltado para minha execução sumária ao mesmo tempo em que sinto um tique nervoso tomar conta do meu rosto, minhas veias saltarem das têmporas, minha mão esquerda tremer e a garganta ficar seca.

Um ansiolítico, pelo amor de Deus!

Faço a curva no fim do corredor e visualizo as comissárias de bordo sorrindo na porta do avião. Vou morrer antes de alcançá-las, constato enquanto palpitações e falta de ar tomam conta do meu peito. Inspiro e expiro e invoco o auxilio de São Cirilo de Jerusalém, padroeiro dos escritores, para que não me deixe ter um ataque. Preciso me controlar ou então pedir ajuda diante da minha incapacidade. Decido que não vou chamar a atenção e sigo para o meu destino, cumprimento as funcionárias impecavelmente vestidas em seus uniformes, ganho um fone para os ouvidos e algumas balinhas e me viro para o corredor, onde, de praxe, uma procissão está acontecendo. Por que as pessoas não procuram no cartão de embarque o número de suas poltronas ao invés de ficar andando pra lá e pra cá ou então quando sabem o número ficam tratando de descobrir onde é o seu assento, como se a disposição dos algarismos fosse aleatória e não em ordem crescente?

Finalmente consigo chegar à minha poltrona onde graças ao Cristo ninguém (ainda) ocupou as cadeiras do corredor e a do meio, me dando esperanças de que eu possa viajar sozinho, encostado à janela. Praticamente me jogo sobre o estofado, inclinando-o logo em seguida e então, depois de me recostar, fecho os olhos e me pergunto que merda é essa que estou fazendo e fico assim, com os olhos cerrados, apenas ouvindo as pessoas ao meu redor, o som dos compartimentos de bagagem abertos e fechados várias vezes, uma voz feminina gentil, possivelmente de uma das comissárias de bordo…

Se o meu destino não fosse aquele fim de mundo…

Talvez Adoniran tenha alguma razão ao afirmar que o velho Ezequiel me fez um grande bem ao me expulsar de casa… Sei que isso soa controverso, insano, mas será que eu teria me tornado quem sou? De certo eu seria mais um morador de Arena, vivendo aos trancos e barrancos, sonhando com o impossível, não podendo assumir minha sexualidade e com isso contentando-me em ficar completamente bêbado nos finais de semana a fim de esquecer a miséria da minha vida. Mas se assumir essa versão, mergulhando numa indubitável Síndrome de Estocolmo, eu também vou precisar aceitar o fato de que Dionísio me fez um favor ao me delatar para o meu pai. 

Engulo em seco.

Não. Nunca. Ele foi frio, calculista, sádico. É a única pessoa que eu espero não esbarrar em Arena, e se isso tiver que acontecer, eu irei perder toda e qualquer noção de civilidade.

 

 

Desliguei o chuveiro e permaneci em pé, seminu, recebendo as últimas gotas de água enquanto encarava o homem de meia idade, vestido com um roupão preto, aberto, que estava sentado no vaso sanitário, ostentando um sorriso meio de lado, obsceno, como um bandido, passeando com seus olhos pelo meu corpo, sem pressa, até estacionar sobre minha cueca branca, a única peça de roupa que ele exigiu que eu mantivesse.

Minha cabeça latejava ao passo em que buscava as palavras ditas com extrema gentileza por Dionísio, havia menos de uma hora, de que aquela seria a última vez, selando a promessa com um beijo afogado em desejo e volúpia e também gestos de carinho e atenção, aos quais jamais havia recebido ao menos naquela profusão, para então seguirmos até a casa onde o tal homem, “o último deles”, nos aguardava.

O homem, aquele homem, foi o único ao qual nos deslocamos até onde morava para satisfazer o voyeurismo de Dionísio. Todos os outros, sem exceção, foram recebidos na cabana. O argumento era de que ele nos pagaria, e muito bem, pelo serviço, uma quantia que mesmo dividida para dois era maior do que Dionísio ganhava como ajudante de sapateiro ecertamente uma novidade para mim, que não ganhava exatamente nada trabalhando no armazém do meu pai. Senti-me ofendido, cheguei a me comparar a uma das meninas de Salomé Esperanza, mas era a última vez, Dionísio clamava…

– Rapaz, que corpo você tem… Magrinho, mas apetitoso – o tal homem balbuciou extasiado ao mesmo tempo em que umedeceu os lábios com a língua – O seu amigo lá na sala realmente estava certo quando me disse que você valia o seu peso em ouro…

– Gostou “tio”?- lancei a pergunta de forma mecânica, seguindo à risca o mesmo roteiro usado com todos os outros, que nunca haviam reclamado daquela forma de tratamento.

Não recebi qualquer resposta, apenas um sinal para que me aproximasse; o que fiz um tanto hesitante, caminhando na direção do completo estranho com seu cabelo ralo e penteado para o lado na tentativa de disfarçar a calvície proeminente. Ele não era muito gordo, mas detinha uma barriga perceptível e também uma musculatura aparente que cobria a capa gordurosa do seu corpo, dando a entender que tinha malhado bastante enquanto jovem.

Impaciente, o tal homem esticou os seus braços até alcançar minha cintura, me puxando com violência para perto de si, deixando que apenas poucos centímetros separassem o seu rosto de minha virilha (ainda) oculta pela cueca molhada. Naquele instante olhei para trás, na esperança de encontrar Dionísio parado sob o batente da porta do banheiro, assistindo a tudo, como sempre, mas não o encontrei por incrível que pudesse parecer… Talvez tivesse preferido ir para sala esperar que aquele último serviço terminasse antes ter de volta o que restasse de mim.

– Olhe pra mim, garoto! – recebi a intimação ao mesmo tempo em que senti a mão pesada do homem forçando o meu queixo para que me virasse e o enfrentasse. Ele estava de pé, me encarando, radiante de excitação com seus olhos parcialmente cobertos pelas pálpebras caídas – Você é só ativo? Espero que sim. Você beija? Chupa? Trepa sem camisinha? Beijo negro? – ele perguntou com um sorrisinho simpático. O hálito fétido que saia de sua boca justificava seus dentes amarelados, sua gengiva escura.

De repente uma mão gelada invadiu minha cueca e começou a manipular o meu pênis enquanto outra deslizava sobre minhas nádegas. Senti todo o meu corpo estremecer e meu coração começou a pular tão rápido que tive a impressão de ele que iria saltar de dentro do meu peito.

– O que temos aqui?

Por alguns instantes o completo estranho não deixou de me encarar. Pude ver nitidamente em seus olhos que ele estava ciente do meu desconforto, e se comprazia com aquilo. Aos poucos seus movimentos sobre o meu pênis foram aumentando, e um sorriso de satisfação tomou conta de todo o seu rosto ao sentir que seu objetivo estava sendo alcançado. Ato contínuo ele se agachou tão rápido como uma flecha decidida a atingir o alvo e novamente se sentou sobre o vaso, baixando de pronto minha cueca até a altura dos meus joelhos; do alto vi sua cabeça bloqueando minha visão até sentir sua boca, sua língua, passearem, sôfregas, em torno da minha região pubiana enquanto a voz de Dionísio retumbava no meu crânio e ouvidos, prometendo que seria a última vez…

Raiva. Imediatamente uma raiva emergiu do fundo do meu estômago, selvagem, indomada, e então, com toda força que possuía, pressionei os meus quadris contra o rosto do miserável rebaixado à minha frente, sem poupá-lo, sufocando-o até o limite de sua resistência para então me afastar, permitindo que ele recuperasse o ar apenas o tempo suficiente para que eu reiniciasse o meu ataque, sem qualquer indício de compaixão. Não encontrei qualquer sinal de resistência, pelo contrário, senti minha bunda sendo empurrada cada vez mais e mais, obrigando-me a manter aqueles movimentos rápidos…

De um instante para o outro vi o homem se afastar, num gesto abrupto, recolhendo suas mãos de imediato ao passo em que pressionava as costas sobre a tampa do vaso levantada atrás de si. Perplexidade foi o que encontrei em seu semblante quando ele ergueu a cabeça na minha direção para logo em seguida voltar os olhos à porta do banheiro. Decerto Dionísio não teria causado aquela reação e o tal homem afirmou que morava sozinho, concluí ao passo em que respirava fundo, preparando-me para virar na direção da porta…

– O que significa isso?

A voz grave de meu pai, carregada de cólera, invadiu todo o banheiro. Já era tarde demais para que eu refreasse meu movimento e então me deparei com seu semblante obscuro, tenebroso, ao mesmo tempo em que refletia em cada linha, cada risco, o assombro, a vergonha e a ira que o assolavam. Por alguns segundos ele continuou a me fitar e por mais que eu tentasse, não conseguia me desvencilhar do seu olhar. A pergunta sobre o que ele estaria fazendo ali atravessou o meu cérebro na velocidade da luz, porém estacionou na ponta da minha língua. A apreensão e principalmente o respeito me impediram de proferi-la.

Se eu tiver de viver cem anos, tenho certeza de que em cada dia da minha vida não esquecerei aquele momento. O embaraço, o desespero, o silêncio estranho que fez meu coração tremer…

– Se vista.

Finalmente consegui sair do transe em que me encontrava ao ouvir o tom da voz inabalável do velho Ezequiel. Um brilho frio permeava os seus olhos enquanto ele me media, de cima a baixo, atirando aos meus pés um emaranhado de roupas que certamente encontrou pela casa, e recolheu, sabia Deus por que, antes de chegar até ali, naquele banheiro. Só então, tomado de súbito, me dei conta de que estava nu, com a cueca baixada até os joelhos. Senti minhas faces queimarem ao passo em que me inclinei, imediatamente, puxando-a de volta…

– Não se demore. Vou estar na sala te aguardando para irmos para casa.

Com a respiração ofegante, entrecortada, tornei a ficar de pé, mas não ousei olhar para trás, mesmo tendo ouvido os passos de meu pai se afastando… Como o velho Ezequiel havia chegado até ali? A interrogação, mais uma vez, invadiu minha mente de forma avassaladora, me deixando confuso, atordoado, inquieto, a ponto de sobrepor até mesmo o meu desespero diante da certeza do que encontraria quando estivesse a sós com ele. Possivelmente a surra que levaria não seria precedida de qualquer tipo de sermão…

– O que o Pastor está fazendo aqui, garoto? – a indagação do tal estranho, e do qual já havia “esquecido” a existência, me puxou de volta para a realidade, desatando-me da espiral de angústia e desespero em que me afogava.  

 

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