Geena – Eles voltaram: Prólogo

Prólogo

Naquela noite cheguei exausta. E como de costume, comecei a preparar o jantar. Caio sempre retornava da escola faminto, irritadiço e cansado. Arrastava-o para o chuveiro apesar de implorar-lhe para que me obedecesse. Ainda por cima deixava espalhados pelo chão a mochila, tênis e o uniforme. Foram tantas as repreensões e discursos sobre seu desleixo que ele nem ligava mais. A única coisa que lhe dava um pouco mais de calma era deitar-se na cama para ouvir as estórias que todas as noites eu me esforçava para contar. Subia o lençol até o nariz e ouvia com atenção. E como de costume, dava uma olhadinha na foto do pai, ao lado da cabeceira. Mas naquela noite meu menino sentiu algo diferente. Era uma espécie de ansiedade saudosa que se converteu em melancolia. Senti o mesmo. Então, ao invés de contar uma estória, resolvi ler uma carta que seu pai escrevera há sete anos, pouco tempo antes de ele sofrer o acidente.

Sentei-me à beira da cama a segurar as folhas de papel-carta, muito finas, que um dia foram escritas por Felipe com a sua caneta tinteiro preferida. A ansiedade de Caio aumentou. A expectativa era a de que eu revelasse um pouquinho mais sobre aquele que se tornara um mito em sua vidinha. Abri as folhas bem lentamente, com todo o cuidado para não as rasgar. Também trouxe comigo uma pequena caixa de madeira. Meu menino arrancou-a de mim e tentou abrir. Tive de contê-lo. Expliquei que se tratava do seu pequeno e único tesouro, e que, deveria ser cuidadoso.

Abri a caixa com cuidado e mostrei-a. Havia dezenas de outras cartas, todas bem dobradas e mantidas em seus respectivos envelopes. Era assim que eu as guardava, e mais todos aqueles suvenires e laços de presentes. Os olhinhos de Caio brilhavam ao mesmo tempo em que a curiosidade aguçava. Isso o fez debruçar sobre a caixa a ponto de quase a cair sobre ela. Achei graça da sua atitude e, então, decidi começar a ler a primeira carta, a que já estava em minhas mãos. Mas antes tive de convencer Caio a se deitar. Eu leria os pensamentos do meu marido Felipe que, aliás, escrevia muito bem. Sabia como expressar seus sentimentos de forma meiga, romântica, apesar da formação rígida militar.

Caio não suportava mais a curiosidade e já quase implorava para que eu começasse a ler. Parecia que naquele momento ele veria o pai saltar daquelas folhas escritas. A carta simplesmente dizia como era difícil para ele ficar sem mim. Que o tempo parecia se estender, transformando-se numa dolorida eternidade. E que a vontade de me ter sempre ao seu lado significava a entrega total de seu coração ao nosso amor.

Meu filho interrompeu perguntando se o pai teria escrito alguma coisa sobre ele. Fiz que sim e pedi que tivesse um pouquinho mais de paciência. Saltei algumas linhas e li mais um trecho da carta o qual se referia sobre o que ele – Felipe – sentira ao receber a notícia da minha gravidez, o quanto o fez sentir-se abençoado. Sempre desejou ter um filho, e que, mesmo que a morte o ceifasse, daria um jeito de ficar sempre ao lado do seu pequeno. Lembro de que, na época em que eu lera aquilo pela primeira vez, não me sentira muito bem. Sei lá. Se fosse para interpretar meu sentimento, não saberia dizer se fora um anúncio ou um presságio.

Só depois de divagar por tantas lembranças é que me dei conta de que Caio adormecera. Levantei-me com todo cuidado, em silêncio, e fui para o meu quarto. A saudade anestesiara meu cansaço. Guardei a caixa no armário como quem deposita algo precioso no cofre de um banco. E com um suspiro pesado, daqueles que nos avisam que mais uma noite será o prelúdio de outro dia corrido, tirei a roupa e fui para o banheiro. De frente ao espelho, contei a novas rugas, conformei-me com elas, coloquei a touca de plástico e entrei no chuveiro. Olhei para cima e ao ver a água cair, certifiquei-me de que estava na temperatura correta. Só então deixei-a tocar meu corpo para aliviar o peso da vida.

O nó da saudade e da solidão me fizeram chorar em silêncio. As lágrimas se misturavam ao fluxo morno da água, ambos a escorrerem indiferentes sobre a pele. Meus soluços contidos eram abafados pelo som do impacto da ducha sobre as costas. Como era difícil viver sem Felipe! Sete anos tinham se passado, mas ainda não me acostumara com a ideia de ter sido privada do amor da minha vida. Mesmo após sua morte, eu era capaz de senti-lo em todos os nossos momentos de intimidade, e por toda parte da casa. Quando alguém parte de nossa vida, as coisas que ficam só sabem falar dessa ausência. No quarto, à noite, no jantar, no café da manhã… São como mensagens de carinho e amor que preenchem o ambiente. Pedacinhos do nosso amor, lançados por aí em forma de bilhetes. Impossível de ser esquecido.

Contudo, apesar das lembranças não deixarem o tempo cicatrizar a ferida, eu tinha de me conformar com uma coisa: que ele não se deitaria mais ao meu lado. Mas a cama continuava reservada, aguardando o seu impossível retorno. Ainda assim, apesar de sentir-me vergastada pelo sentimento de perda e da responsabilidade que assumi sozinha, procurei dormir. Seria um luxo se conseguisse principalmente naquela noite. Havia uma sensação estranha no ar. Algo diferente. Quem sabe por causa da tempestade que se formava.

O vento soprava forte lá fora. Tentei ficar indiferente e procurei dormir. Fechei os olhos, mas sabia que enganava a mim mesma. Não conseguiria. A situação piorou quando relâmpagos e trovões começaram. Saltei da cama. O suor provocado pela ansiedade tornou insuportável a permanência ali. Resolvi descer. Iria até a cozinha para tomar um copo d’água e me refrescar. Passei pela sala, ameacei ligar a TV, mas desisti. Vi o celular sobre a mesa e parei para observar a hora. Cheguei à cozinha e ao tocar o interruptor da luz, o último sopro de energia deu vida à lâmpada para em seguida abandoná-la.

A casa caiu em densa escuridão. Tateei até o armário, peguei um copo, mas também desisti da água. Retornei ao quarto. Olhei pela janela. As primeiras gotas de chuva começam a cair. A rua imergiu num pretume denso e as nuvens do céu estavam palidamente tingidas por luzes de algum outro lugar distante. As árvores eram de cinza chumbo e se contorciam ao vento. Este era o único movimento lá fora. Os relâmpagos reluziam pelo céu traçando formas estranhas, produziam esboços rápidos e sombrios, principalmente em mentes como a minha, assombrada pela perda e solidão.

Só mais uma daquelas tempestades de verão”, pensei. Deitei-me. Contudo, a cabeça me fazia retroagir no tempo e a traçar um paralelo. Depois da morte de Felipe, sinto-me como que adormecida, mergulhada num estilo de vida flácido, sem metas, sem porquês. A única coisa que me fazia emergir e resgatar um pequeno fôlego de vida era meu filho Caio. Realmente eu não via graça mais em nada. Nem nas pessoas.

O que aconteceu com a Maria de antigamente? Por que eu não consigo me reerguer? Tudo na vida passa. Meu Deus do céu! Sei disso, mas no fundo… Maldita lassidão! Bem, enfim, estou cansada. É isso. Será que eu seria diferente se Felipe retornasse? Que idiotice! Mas e se a morte fizesse uma exceção? Afinal, a morte de Felipe não foi justa. Muito novo… Tanta gente que não presta… Justo ele!

Mas aquela noite tinha algo que me remexia por dentro. Um incômodo inconsistente. A princípio pensei ser devido às lembranças. Ter lido a carta, aberto a caixa, talvez tudo aquilo tivesse mexido comigo. Sem falar no aniversário dele que seria dali alguns dias. Foi então que, de súbito, uma forte ansiedade me invadiu. Era como se eu estivesse prestes a receber uma notícia. Se boa ou ruim, difícil dizer. Que madrugada! Os hormônios talvez. Mas nem entrei na menopausa! Sou nova. Amanhã meu dia será péssimo. É só não dormir direito… A chuva começou. Felipe gostava de chuva. Principalmente à noite. Costumávamos ficar abraçados, ouvindo o som dela, quietinhos, até cairmos no sono. Engraçado: recordo de um passeio que fizemos pela orla da praia uma vez. Felipe disse:

…. Então, eu andava pela rua quando vi uma criança, um menino, passeando com um cachorrinho. Pensei em ter um filho. Nossa família estaria completa. Ainda mais se adotássemos um cachorrinho. Era como ver o nosso futuro. Que tal? Topa?

Meses depois, grávida, tive de me despedir dele em seu caixão lacrado. Só tinha trinta anos de idade. Foi como se fosse ontem. Mas sempre o vejo cheio de esperança, forte, risonho. É; a vida não é justa não. Nem a morte o é. Hoje só consigo dar a Caio lembranças, valores e sentimentos bons pelo pai que nunca viu.

A chuva aumentou. Odeio trovões. Não aguentaria ficar na cama mesmo, então decidi fazer um chá. Mas a energia não voltou. “Será que o bairro todo está sem luz?” A rua toda estava escura. Me aproximei da janela. Até mesmo a árvore da frente, era sacudida pelo vento como se fosse capim. Com a violência não achei que ela iria aguentar. Já os raios ainda me mostravam que havia algum colorido lá fora.” Que consolo!

Foi aí que senti uma coisa diferente, tão surpreendente, aguda, que chegou a oprimir o peito. Uma onda de frio que percorreu todo o corpo. Não sabia distinguir de onde vinha, se causado por uma corrente de vento ou se se tratava de uma sensação. Caso fosse seria benigna ou maligna? Mas de uma coisa eu sabia: era uma sensação que estava além do que eu podia classificar.

Outras coisas estranhas também aconteceram. Vi sombras na rua que pareciam ter vida própria. Pela janela podia vê-las à medida que os relâmpagos emergiam da escuridão do céu. “Alucinação” – pensei. Só podia ser isso. Mas o que mais angustiava era a sensação de estranheza. Aquilo estava quase se convertendo em pânico. Figuras sombrias apareciam e desapareciam assim que eu tentava fixá-las com o olhar.

Tentei desconsiderar, deixar pra lá. Foi quando, junto ao tronco da árvore, na chance que o relâmpago me deu, tive a certeza de que vira alguém. Levei a mão ao rosto tamanho o susto. Seja lá quem fosse olhava na minha direção. Quem estaria lá, debaixo daquela tempestade? Aguardei o próximo relâmpago que não demorou a surgir. Confirmei minha suspeita. Não era alucinação. Lá estava ele, parado, um homem, vestindo uma capa escura, obviamente ensopada. Ele me olhava atentamente. Não conseguia ver seu rosto, mas sabia que me olhava.

Fiquei sobressaltada. Pensei na segurança de Caio. Toda sorte de pensamentos ruins me invadira. “Vou chamar a polícia” – A primeira coisa que pensara. Claro! Era a maneira mais plausível de me defender de uma possível ameaça se não fosse o que viria a seguir.

Desci novamente as escadas. Peguei o celular, mas antes de ligar para a polícia, aproximei-me de outra janela, onde teria uma visão mais precisa da árvore o do fulano lá fora. Teria de esperar o próximo relâmpago para ver mais detalhes. Mantive a atenção num esforço definitivo de identificar a fisionomia do sujeito. “Só pode ser um ladrão, um psicopata. E se for um mendigo? Ah, coitado! Mas bem em frente à minha casa!?”

Tinha de me manter racional até o próximo relâmpago. E este finalmente veio a revelar o mistério. Naquele pequenino intervalo de tempo pude ver o que antes era apenas um vulto. “Não, não pode ser. Pirei” – Foi o que pensei ao ver aquele homem de aparência bastante familiar. Meus dedos sobre o teclado do celular simplesmente paralisaram. Contive o grito de espanto com a própria mão. Totalmente arrepiada de horror e com voz embargada exclamei: “Felipe!”

Fiquei indecisa. Não sabia se abria a porta ou se continuava ali parada. “Só pode ser coisa da minha cabeça” – E permaneci junto à janela. Ele deu um passo à frente em direção a casa e estancou. Gelei. Tive o ímpeto de gritar, mas contive. Precisava de um relâmpago para ter certeza, só mais um. Então, aquele que poderia ser um assassino ou uma alucinação caminhou decididamente para a minha casa. Avançou. Senti a cabeça girar. Deixei o celular cair. De repente, três batidas na porta. Aproximei. Fiquei sem voz. Mais três batidas secas e firmes. Com muito esforço reuni coragem e perguntei quem era. Não houve resposta.

Espreitei até a cozinha, peguei uma faca e retornei à porta. Pensei no meu filho. Tinha de protegê-lo a todo custo. – Quem está aí? – Inquiri. Foi quando ouvi sua voz, quase um gemido fraco:

Sou eu, Maria. Voltei.

Soava como Felipe. Era a voz dele! Mas como podia se estava morto? Fosse quem fosse, desejava que parasse de brincar ou chamaria a polícia. Mas a voz insistiu:

Por favor, querida, abra.

A voz era realmente de Felipe. Contudo, só saberia realmente se abrisse a porta. Não, não faria isso. Tinha de proteger Caio:

Não, não vou abrir. Vá embora!

Neste instante, um, depois dois chutes foram suficientes para arrombar a porta. Fiquei aterrorizada. Ele entrou. Pulei sobre ele com a faca em punho e a luz do relâmpago confirmou sua identidade:

Felipe! Você… não pode ser. Você voltou!

Disponível a partir de amanhã na Widcyber!

Você poderá acompanhar dois capítulos por semana. 

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