Capítulo Dois – O caos está formado
Penitenciária Charles Freire – Sala Médica
A sala pequena, mal iluminada e com poucos recursos liberados pelo governo, serve de apoio médico para os detentos da penitenciária. Mas, mesmo assim, o Dr. Quaresma executa verdadeiros milagres no seu dia a dia. O bom consultório não faz um bom médico, porém, um bom médico é capaz de fazer de qualquer ambiente um bom consultório, mesmo com recursos limitados. Estas foram as palavras que ele ouviu de um membro da Secretaria de Saúde na última premiação que recebeu por seus serviços prestados.
Evander Quaresma é um homem alto, robusto de cabelos grisalhos e bigode. Ele tem 49 anos de idade e há 15 anos trabalha na penitenciária Charles Freire, sempre tendo que “matar um leão por dia” para poder fazer um bom trabalho. Ele está sentado diante da sua mesa e na sua frente está o diretor Miranda.
Diretor Miranda
– E então, posso mandar trazê-lo aqui pra você?
Dr. Quaresma
– É claro que pode. Se ele já foi capaz de fazer o que fez na primeira noite aqui, só Deus sabe o que está por vir.
Diretor Miranda
– Ou o diabo…
Dr. Quaresma
– Como diretor?
Diretor Miranda
– Acho que Deus não olha por aquele ali não doutor. Em tantos anos de serviços prestados aos detentos deste estado, nunca vi nada parecido com o que presenciei ontem à noite naquela cela.
Dr. Quaresma
– Imagino…pra você estar me dizendo isso…eu posso imaginar. Mas me diga…
O doutor pega um documento que está sobre a mesa.
Dr. Quaresma
– … diagnóstico de distúrbio mental é? Que tipo, exatamente? Quem conseguiu tais informações?
Diretor Miranda
– Ele é esquizofrênico, do modo paranóide…sofre de delírios e tem visões, as quais não pode controlar sem medicação.
Dr. Quaresma
– Humm.
Diretor Miranda
– Quem levantou estes dados foi o delegado Gaitán. Sua detetive, Carmen Sanchez, foi quem deu ordem de prisão. Foi pego em flagrante e, pelo que me contou o delegado, fazendo o mesmo que ele acabara de fazer esta noite.
Dr. Quaresma
– É um caso grave. Mas eu vou averiguar. Talvez descobrir a origem.
Diretor Miranda
– A origem de sua esquizofrenia pode estar ligada ao fato dos pais terem sido usuários de drogas.
Dr. Quaresma
– Faz todo o sentido.
O telefone celular do diretor toca. Ele atende.
Diretor Miranda
– Pronto!
Ele escuta por alguns segundos a voz do outro lado da linha e, em seguida, desliga o celular.
Diretor Miranda
– Posso dizer pra trazerem, doutor?
O doutor Quaresma confirma que sim com a cabeça.
Penitenciária Charles Freire – Solitária
Um agente penitenciário mal encarado está de pé na frente da porta de ferro de braços cruzados e com o cacetete em uma das mãos. À frente dele agachado e juntando os estilhaços de prato quebrado e limpando a comida pelo chão está João Acácio.
Agente Penitenciário
– Aqui é assim. Vagabundo sujou, vagabundo limpa.
João Acácio vira a cabeça para olhar para o agente.
Agente Penitenciário
– E de cabeça baixa, sem nenhum pio.
João Acácio, com uma vassoura e uma pá vai juntando cada estilhaço e colocando em uma lata de lixo.
Agente Penitenciário
– E pode ter certeza que esta tua revolta vai lhe custar mais uns dias por aqui. Acho bom ir se acostumando.
João Acácio está obediente, mas seu lado sombrio e revoltado ainda existe. Ele olha com aquele seu olhar assustador para o agente penitenciário e sorri.
Delegacia Regional de Alcatraz – Sala do Delegado
A sala do delegado Gaitán é um compartimento pequeno com uma mesa de madeira com uma cadeira de cada lado e atrás uma estante cheia de livros e pastas. Gaitán está atrás de sua mesa, olhar compenetrado em um documento grosso aberto e encadernado em cima da mesa. Ouve-se três batidas na porta.
Gaitán
– Pode entrar.
A porta se abre e surge a detetive Carmen Sanchez em uma saia justa abaixo dos joelhos, salto médio, camisa branca e casaco por cima.
Gaitán
– Detetive.
Carmen
– Delegado.
Gaitán fecha o documento espiral em cima da mesa e consegue se ler a capa do mesmo: Trabalho Final do Curso de Criminologia – Detetive Carmen Sanchez.
Carmen puxa a cadeira e se senta.
Carmen
– Conheço este trabalho.
Gaitán sorri.
Gaitán
– Estava aqui relembrando. Que trabalho bem feito. Mas será que você ainda tem as mesmas ideias de cinco anos atrás, após diversas experiências aqui no departamento?
Carmen sorri, pega o trabalho, abre em uma página qualquer e começa à ler.
Carmen
– Veja essa parte aqui delegado…
Carmen se ajeita na cadeira com o documento em mãos.
Carmen
– …”o homem nasce mau, com instintos de sobrevivência, e que devido à tais instintos é capaz de fazer qualquer coisa. A sociedade é que tem o papel de educa-lo, humaniza-lo, de tornar este homem um ser sociável.”
Gaitán
– Hummm, citando Hobbes!
Carmen
– Já não sei se acredito tanto nisso não.
Gaitán
– Não é nenhum crime mudarmos nossa opinião frente à alguns assuntos. Nosso trabalho nos permite isso.
Carmen
– Acho que, hoje em dia, sou mais adepta à teoria de Rosseau: os homens nascem bons e, em contato com a sociedade, tornam-se maus.
Gaitán
– Essa teoria vai de encontro ao pensamento cristão, minha cara, onde as crianças seriam tidas como puras e tornam-se pecadoras à medida que começam a perceber os males do mundo, os quais as envolvem.
Carmen
– Não só os meios em que estão inseridas podem mudar o ser humano. Veja o caso deste nosso detento: pais sem compromisso nenhum, que não se preocuparam com as consequências de seus atos, desenvolveram um problema que hoje em dia temos que enfrentar. Sem tratamento João Acácio não pode ficar. A gente sabe que isso o afeta e o torna o bandido perigoso que é. Algo ruim dentro dele desperta um lado sombrio e que põe outras vidas em risco. E isto é o meio em que está inserido, é o modo em que foi criado, vem lá de trás.
Gaitán
– Você está certa.
Carmen fecha o documento espiral sobre a mesa.
Carmen
– Como eu era ingênua em achar que todo homem nasce mau. Maldito mundo em que estamos vivendo delegado!
Gaitán sorri.
Gaitán
– Tenho orgulho deste teu temperamento. Deste teu ímpeto em lutar e resolver as coisas. Em não se acomodar…mesmo em frente aos problemas pessoais.
Carmen desvia o olhar. Fica cabisbaixa. Se inquieta na cadeira.
Carmen
– Desculpe delegado. Realmente não quero falar sobre isso. Quero focar no meu trabalho…
Gaitán apoia-se com ambas as mãos na mesa se levantando.
Gaitán
– Ok. Não está mais aqui quem falou.
Carmen
– Trabalho delegado. Somente trabalho. O que ficou resolvido sobre o problema de João Acácio?
Gaitán olha as horas em um relógio pendurado na parede acima da porta.
Gaitán
– À estas horas nosso detento deve estar indo consultar com o Dr. Quaresma lá na penitenciária. Ele vai saber como agir.
Penitenciária Charles Freire – Sala Médica
Um agente penitenciário adentra na sala com João Acácio de mãos algemadas à frente do corpo.
Diretor Miranda
– Obrigado agente. Está dispensado.
O agente retira-se da sala deixando o detento parado de pé na frente do diretor Miranda e do Dr. Quaresma, que o encara de cima à baixo.
Dr. Quaresma
– Este é o cara então, diretor?
Diretor Miranda
– João Acácio de la Rocha ao seu dispor doutor.
Dr. Quaresma
– Sente-se João. Vamos conversar. O diretor já estava de saída…
Dr. Quaresma aponta para a cadeira. Depois olha para o diretor.
Dr. Quaresma
– … não é mesmo Miranda?
Diretor Miranda
– Ahh, sim sim. Tenho coisas à fazer na minha sala. Satisfações à dar aos familiares dos assassinados…enfim. Qualquer coisa o senhor me chama.
O diretor Miranda encara João Acácio antes de se retirar.
Diretor Miranda
– E você, trate de colaborar com o doutor.
João Acácio está com a cabeça baixa olhando para o carpete surrado da sala. Ele levanta apenas o olhar e observa o diretor Miranda se retirar.
O doutor Quaresma senta-se na sua cadeira e fica à observar João de pé, imóvel na sua frente, esperando que ele também sente. João nota o olhar do doutor e resolve ocupar aquela cadeira ao seu dispor.
Dr. Quaresma
– Muito bem João… então, você teve um surto e resolveu dar um fim nos seus novos colegas?
João se sentou, mas permanece em silêncio olhando para a mesa do doutor.
Dr. Quaresma
– E não é a primeira vez, não é mesmo?
João Acácio
– Aqueles homens não eram meus colegas.
Dr. Quaresma
– Ok. E precisava matar eles?
João Acácio
– Eles me importunaram. Me subestimaram…
João Acácio encara um pote de balas que está sobre a mesa.
Dr. Quaresma
– Quer uma bala João? Sempre tenho estas balas aqui…claro que nem à todos eu posso dar. Cada detento, cada paciente é um caso. Mas…
O Dr. Quaresma estende o braço, abre o pote, pega uma bala e entrega à João, que sem falar nada, apenas levanta ambas as mãos algemadas, mostrando que não tem como retirar o papel da bala.
Dr. Quaresma
– …acredito que você não tenha problemas com açúcar…
João tenta pegar e retirar o papel da bala, sem sucesso.
Dr. Quaresma
– …deixa que abro pra você!
O doutor Quaresma retira o papel da bala e larga a mesma próxima de João Acácio, que com dificuldades, a pega e a coloca na boca.
Dr. Quaresma
– Então João…eu vou precisar te encaminhar para alguns exames. Você já fez alguma tomografia, que você se lembra?
João Acácio balança a cabeça negativamente.
Dr. Quaresma
– Você conhece o diagnóstico que te deram?
João fica pensativo por alguns instantes.
João Acácio
– Dizem que sou louco “dotor”.
Dr. Quaresma
– Não se trata de loucura João…e sim uma doença. Esquizofrenia. E que tratada pode ser amenizada. Nunca ninguém lhe receitou medicamentos João?
Mais uma vez João Acácio balança a cabeça negativamente.
Dr. Quaresma
– Então eu vou lhe receitar. Amanhã é dia de buscar medicamentos para nosso estoque e já vou incluir o seu. Mas, ainda assim, vou querer a tomografia.
O doutor Quaresma inclina-se sobre a mesa anotando o receituário e autorizando a saída do detento para fazer o exame.
Dr. Quaresma
– Um policial vai estar lhe acompanhando até o hospital. Você fará a tomografia sob supervisão e voltará para a penitenciária.
Quaresma termina as anotações e encara João
João Acácio
– Era só isso “dotor”?
Dr. Quaresma
– João Acácio de la Rocha, o que tu te lembras do seu passado? Dos seus pais?
O semblante de João torna-se mais sério. Seus olhos incham e ficam vermelhos à ponto de uma lágrima brotar e escorrer de um olho pelo seu rosto. Ele se inquieta na cadeira. Quaresma sente que sua pergunta causou um certo incômodo no homem à sua frente. Não sabe até que ponto isso seria positivo.
João Acácio
– O passado precisa ficar lá atrás “dotor”. Não devemos mexer com isso. E, meus pais…
Quaresma nota a inquietação de João, quando o mesmo se levanta e, com ambas as mãos algemadas, arrasta para o chão tudo que há sobre a mesa do doutor enquanto solta um grito de raiva, que assusta o doutor Quaresma, que se levanta saltando da cadeira.
Dr. Quaresma
– Calma João!
João Acácio encara Quaresma com um sorriso amedrontador no rosto.
João Acácio
– …eu não sei dos meus pais. E, pra ser bem sincero com o “dotor”, eu espero que estejam ardendo no inferno!
O diretor Miranda, acompanhado de um agente penitenciário, entram na sala ao ouvirem o barulho e o grito.
Diretor Miranda
– Agente, leva este desgraçado daqui.
O agente penitenciário aproxima-se de João, o segura e puxa tirando-o da sala, sob olhares do doutor e do diretor.
Diretor Miranda
– Droga! Está tudo bem doutor?
Quaresma se recompõe. Passa a mão na cabeça.
Dr. Quaresma
– Pedi uma tomografia, receitei o medicamento já. Preciso ter certeza absoluta, mas…
Quaresma se senta e faz sinal para Miranda fazer o mesmo.
Dr. Quaresma
– …90% de chances do diagnóstico que você recebeu estar certo.
Diretor Miranda
– E agora doutor?
Dr. Quaresma
– Agora eu vou receitar a medicação contínua. Vou solicitar por escrito a vinda da mesma na próxima remessa e, ela terá que ser dada à ele nas horas certas, ou vamos ter graves transtornos.
Diretor Miranda
– Pode deixar! Vou garantir que ele receba a medicação…mas, me diga: acha que uns dias na solitária lhe farão bem?
O doutor Quaresma sorri.
Dr. Quaresma
– Esta é sua decisão como policial, como diretor. Do ponto de vista clínico já sabe minha opinião. Medicação na hora certa…e sim, uns dias sozinhos acho que o tempo do remédio começar fazer efeito, seria interessante.
A porta é aberta e o agente penitenciário que levou João Acácio se pára diante de Miranda e do doutor Quaresma.
Agente Penitenciário
– Detento novamente na solitária.
O agente encara o diretor.
Agente Penitenciário
– Diretor, estão te chamando na revista do pavilhão três.
Miranda suspira fundo e se levanta da cadeira.
Diretor Miranda
– Bom…vou lá. Está vendo doutor? Aqui é difícil ter uns minutos de folga.
Penitenciária – Pavilhão Três
A grade de ferro é aberta por um agente penitenciário responsável do turno e o diretor Miranda acompanhado do agente que lhe chamou na sala médica entram no corredor do pavilhão.
Agente responsável do turno
– Cela 43 diretor.
O diretor Miranda encara o agente.
Diretor Miranda
– Detentos…
Agente responsável do turno
– Erivaldo, Caxias, Bastilha e João Serenata.
Diretor Miranda
– O Serenata? Achei que já tivesse sido transferido, eu mesmo assinei os papéis da transferência…
Agente responsável do turno
– Camburão foi pra oficina ontem ainda. Só estará disponível amanhã diretor.
Miranda sacode a cabeça desapontado.
Diretor Miranda
– Mais essa! Bom…vamos lá ver o que estes desgraçados aprontaram.
O agente responsável pelo turno fecha e passa a chave na grade de ferro e acompanha seu colega e o diretor pelo corredor. À medida que vão passando os detentos nas celas encaram os três. Nestas horas pode se ver o olhar de revolta, pode se ver claramente que se eles pudessem, eles matariam cada um dos policiais que aparecesse pela frente. Dentro do corredor de um pavilhão de penitenciária nunca se pode relaxar, pois por mais que as grades separassem bandidos dos mocinhos, uma arma de fogo escondida ou uma arma branca poderia voar por entre as grades. E o dia de revista, ahh, era um dia cheio. Era o dia em que drogas e armas muitas vezes eram encontradas e o dia em que muitos detentos iam para a solitária. E aquele dia não foi diferente…
Residência da família Sanchez
Carmen Sanchez abre a porta de sua casa. Cara de cansada, casaco e bolsa sobre o braço. Ela joga sobre a poltrona seus pertences, senta-se no sofá, tira seu sapato de salto médio e se joga no encosto fechando os olhos. Após um dia cansativo tudo o que ela quer é um pouco de paz, de sossego.
De tão cansada que está, ela nem notou que a luz já está acesa. Só se dá conta quando escuta barulhos de louças vindo da sala de jantar. Se inclina para frente e vira a cabeça atenta aos barulhos.
Carmen
– Quem está aí?? Jairo?
Ela se levanta ao mesmo tempo em que o seu marido Jairo surge no corredor com um pano de prato sobre os ombros.
Jairo
– Já chegou amor. Eu “tava” concentrado na comida e nem ouvi você chegando.
Carmen
– Comida?
Carmen se aproxima do marido e lhe dá um beijo sem muito sentimento e segue na direção da cozinha.
Jairo
– Sim. Nossa janta de hoje.
Jairo pega o pano de prato na mão e acelera o passo ultrapassando a esposa para chegar antes dela na cozinha.
Jairo
– Uma jantinha especial. Pelo jeito teve mais um dia difícil. Precisa relaxar, comer uma boa comida. Esquecer os problemas.
Carmen
– Ok…sabe que não é má ideia? Mas me diz, o que tem pra comer? O cheiro está ótimo.
Jairo joga o pano de prato sobre a mesa da cozinha. Coloca ambas as mãos nos ombros da esposa virando-a de volta para o corredor.
Jairo
– Agora não. É surpresa. Você vai tomar um banho bem relaxante enquanto a comida fica pronta. E depois você descobre o que tem pra janta.
Carmen não contradiz o marido. Pelo contrário, acha a ideia muito boa. Dá um leve sorriso e aceita a sugestão dele.
Residência da família Sanchez – banheiro
O chuveiro ligado no quente deixara o banheiro numa fumaça que não se via um palmo à frente. O barulho da água caindo por de trás do box de vidro cessa e o mesmo é aberto de um lado, onde uma mão pega uma toalha que está pendurada. O box então se abre por inteiro e Carmen surge enrolada naquela toalha felpuda em meio ao banheiro embaçado. Ela se pára em frente ao espelho e passa a mão para desembaça-lo. Fita o seu reflexo e fica imóvel com o pensamento distante.
Penitenciária Charles Freire – Solitária
João Acácio está escorado de pé na parede daquela cela escura. Ele puxa e segura entre os seus dedos o medalhão que carrega pendurado no pescoço. Ele começa à balbuciar algumas palavras soltas e indecifráveis e, então, fica mais agitado. Agarra com força o medalhão ao mesmo tempo em que olha assustado para um canto da cela. Quando se vê através da sua visão pode se notar que nada há ali naquele canto.
João Acácio solta o medalhão e, neste momento, lágrimas brotam de seus olhos. Ele se vira contra a parede apoiando a testa na mesma e bate com ambos os punhos cerrados contra àqueles tijolos corroídos com o tempo até suas mãos começarem à sangrar.
Residência da família Sanchez – banheiro
O banheiro não está mais embaçado. Carmen não está mais enrolada na toalha. Ela já pôs uma calça jeans preta, blusa branca e está terminando de se maquiar em frente ao espelho. Afinal, ela aceitou a sugestão do marido e quer fazer deste momento, um momento único, longe de preocupações, dúvidas e incertezas. Ao terminar de passar o batom de tom rosa claro, ela dá um sorriso de aprovação para sua imagem e sai. O quanto você consegue desligar-se dos problemas e tirar algumas horas para seu amor próprio, sua família, para seu bem-estar? Carmen Sanchez estava disposta à fazer isso e não importaria se Jairo tocasse novamente naquele assunto indesejável para ela, pois já tinha em mente que nada e nem ninguém estragaria algumas horas de paz em sua vida.
Residência da família Sanchez -sala de jantar
Jairo está terminando de colocar os pratos na mesa posta com uma toalha branca de renda e flores, quando sua esposa Carmen Sanchez chega toda produzida. Ele pára, incrédulo admirando-a, sem reação. Ela sorri e se aproxima dele.
Carmen
– O que houve amor?
Ela pega o prato das mãos dele e coloca sobre a mesa.
Carmen
– Agora é a hora que você diz que estou linda!
Ele a olha dentro dos olhos, admirando àquela beleza como se fosse a primeira vez que a via.
Jairo
– Eu sei. Eu sei meu amor.
Ele passa sua mão carinhosamente no seu rosto.
Jairo
– Você está linda meu amor!
Carmen fecha os olhos por um instante, sentindo a pureza daquele toque e a verdade daquelas palavras. Abre os olhos e encara o marido.
Carmen
– Obrigada!
Ela inclina a cabeça um pouco para cima e lhe dá um beijo suave.
Carmen
– E nossa janta? Já está pronta? Estou curiosa pra ver o que você aprontou pra nós!
Carmen senta-se. Jairo se vira para o fogão para pegar a comida.
Longe dali…
Em uma rua escura e cheirando à bebidas e cigarros, o delegado Gaitán dirige seu carro antigo lentamente enquanto observa as prostitutas se oferecendo na calçada. A fumaça dos cigarros deixa uma nuvem pairando no ar e as garrafas vazias enfeitam as beiradas das ruas.
Gaitán diminui ainda mais a velocidade até que o seu Maverick pára quase na esquina. Ele põe a cabeça para fora da janela e faz sinal para uma jovem loira de cabelos lisos, batom vermelho, mini blusa, saia de couro e botas de cano longo se aproximar. Ela sorri, joga fora o cigarro e caminha com seu rebolado, apoiando-se na porta do lado do motorista.
Gaitán
– Está livre?
Jovem loira
– Ao seu dispôr!
Gaitán
– Qual sua graça meu bem?
Jovem loira
– Beatriz. Mas pode me chamar de Bia.
Gaitán sorri. Olha a hora no seu Rolex. Já passam das 23h00min. Ele faz sinal com a cabeça para a jovem dar a volta e entrar no carro.
Bia
– Assim, direto? Nem quer saber quanto vai gastar?
Gaitán olha para a jovem de cima a baixo.
Gaitán
– Não. Não quero saber agora.
Ele faz sinal novamente e ela atende seu pedido, caminhando lentamente pela frente do carro até a porta do caroneiro, sob olhares do delegado.
Quarto de Hotel – estrada de saída de Alcatraz
Gaitán e Bia entram aos beijos pela porta branca de pintura descascada do quarto de hotel. É o quarto de um hotel barato de beira de estrada, na saída da cidade. Uma cama de casal com lençóis velhos, uma cômoda de madeira caindo aos pedaços e um frigobar velho em um canto.
Gaitán parece não se importar com isso. Ele segura Bia pelos ombros e a encara.
Gaitán
– Tira a roupa que vou ficar só olhando.
Bia sorri maliciosamente e o empurra para cima daquela cama, que faz um rangido no momento em que ele cai sentado.
Gaitán tira a camisa, puxa o travesseiro, se deita e fica à observar a jovem à sua frente que começa fazer movimentos lentos de dança sensual.
Residência da família Sanchez – quarto
A porta do quarto iluminado com a luz do luar vinda pela janela entreaberta é empurrada pelos pés de Jairo, que surge aos beijos com Carmen. “Painted on my heart”, na versão tocada por Aerosmith, embala o clima tocando de algum aparelho eletrônico em alguma parte da casa.
Jairo suspira fundo enquanto desliza seus dedos entre os cabelos de Carmen. Ela o encara e passa as mãos debaixo de sua camisa ao mesmo tempo em que sorri maliciosamente e mordisca o lábio inferior. No pensamento de Jairo, ele não acredita que ela fez aquilo novamente. Ela faz de propósito e sabe que aquilo provoca nele sensações diversas. Ele a puxa para perto de si tirando sua blusinha branca e revelando sua peça íntima cor de rosa forte. Mais um beijo quente, onde as mãos se entrelaçam e trocam carícias.
O juízo total fôra completamente perdido. Entre as quatro paredes daquele quarto o casal estava revivendo os velhos momentos de prazer. Jairo a pressiona contra seu peito já nú e abre o sutiã com uma das mãos enquanto a outra puxa aqueles cabelos loiros.
A respiração intensa e irregular de Carmen acentua todas aquelas sensações…o coração querendo escapar do peito, o sangue pulsando mais forte e mais quente. Todo o clima pesado de assuntos indesejáveis dos últimos dias, agora derramado em um momento único de uma feliz insanidade.
Deitados naquela cama que já viveu tantos momentos de prazer, Carmen e Jairo se entregam completamente um ao outro. O vento faz as cortinas floridas da janela entreaberta balançarem suavemente e a lua cheia é visível naquele céu azul escuro cintilante, até se tornar aos poucos, em uma manhã de céu azul claro, típico daquelas manhãs bonitas, frias preguiçosas de inverno.
Naquela cama que presenciara uma noite quente, Carmen Sanchez dorme sobre o peito nú de Jairo, que abre os olhos e sorri no ouvido dela. Sentindo aquele hálito quente bem próximo, Carmen desperta e vira a cabeça para poder olhá-lo. Ela lhe devolve o sorriso. Os lábios dele tocam suavemente seu nariz , sua bochecha…uma mão está por trás do seu pescoço apoiada no ombro dela e a outra acaricia sua barriga.
Carmen
– Poderia ficar aqui o dia todo.
Jairo
– Eu te amo de verdade, Carmen.
Carmen apenas sorri e aconchega a cabeça novamente no peito nú de Jairo fechando os olhos, mostrando que sim, aquele momento merecia ser eternizado.
Quarto de Hotel – estrada de saída de Alcatraz
A cama toda bagunçada abriga Gaitán deitado sem camisa coberto por um lençol da cintura para baixo. Ele desperta e vê a jovem Bia se arrumando de pé em frente à cama.
Gaitán
– Fica mais um pouco.
Bia
– Não precisa ir trabalhar delegado?
Gaitán sorri e se senta na cama.
Gaitán
– Não lembro de ter mencionado que era delegado.
Bia olha o revólver e uma carteira com um distintivo em cima da cômoda caindo aos pedaços.
Bia
– Nem precisava mencionar delegado.
Gaitán se levanta e vai se vestindo. Bia fica parada lhe encarando.
Gaitán
– Precisa que te deixe em algum lugar?
Bia senta na beirada da cama para calçar as botas.
Bia
– E não seria ruim pra um delegado ser visto por aí com alguém que nem eu?
Gaitán sorri. Se aproxima da jovem e segura seu rosto entre suas mãos.
Gaitán
– Você é só uma jovem linda! E depois ninguém tem nada de ver com o que faço da minha vida. Se estou fora do trabalho, a vida é minha. Se estou trabalhando, aí estou à serviço da comunidade…aí tenho que arcar com as consequências…
Bia pega o pulso do delegado e olha a hora.
Bia
– Pelo relógio é hora deste delegado estar à serviço da nossa comunidade… então…
Gaitán solta a jovem e se vira para a cômoda onde está seus pertences.
Gaitán
– Ok, ok. Me venceu. Vou lhe pagar e você pode sair antes que eu…
Gaitán abre a carteira e retira um dinheiro sob olhares de Bia. Ele se aproxima novamente da jovem lhe entregando o dinheiro.
Gaitán
– Eu ainda vou te procurar…
Bia pega o dinheiro e sorri.
Bia
– Sabe onde me encontrar.
Três Meses Depois
Penitenciária Charles Freire – Pavilhão Dois
A fumaça toma conta do ambiente dificultando a visão do que está acontecendo. Estouros, tiros e gritos são ouvidos.
Agente Penitenciário I
– Eles tomaram conta do Pavilhão Um! Dois agentes são mantidos reféns! Outros dois não se tem notícia!
O estouro de uma bomba caseira explode bem próximo onde está este agente.
Agente Penitenciário I
– Merdaa!!
Agente Penitenciário II
– Reis? Você está bem?
Agente Reis
– Sim, sim. Não fui atingido!
Agente Penitenciário II
– Batalhão de choque já está subindo. Aguenta aí!
Ouve-se os passos pesados das botas dos policiais do batalhão de choque subindo pelas escadas de ferro em meio à fumaça. Em questão de segundos eles se espalham pelos corredores e celas. Mais tiros. Mais estouros de bombas caseiras. Mais gritos.
O agente Reis sai da cela em que está escondido e é surpreendido por um detento gordo sem camisa, que lhe golpeia na barriga com uma faca artesanal e se some em meio à fumaça sem ser visto pelo batalhão. Reis cai já sem vida no chão em frente à cela. Outros detentos passam correndo por cima sem se importar.
Residência da família Sanchez
Carmen Sanchez aparece no corredor enrolando uma manta no pescoço. Jairo surge na sua frente, lhe dá um beijo e vai em direção da porta.
Jairo
– Tchau amor!
Carmen
– Tchau!
O celular de Carmen toca em cima da mesinha de centro. Ela corre para atender.
Carmen
– Pronto!
Ela escuta por alguns segundos a voz do outro lado da linha.
Carmen
– É mesmo delegado?
Ela se senta na poltrona, incrédula com o que acaba de ouvir.
Carmen
– Eu vou direto…nos encontramos lá então!
Carmen Sanchez parece desnorteada com a notícia. Fica sem ação por um tempo. Liga a televisão pra ver se está passando alguma notícia sobre o que acaba de ouvir. Troca de canal até chegar em um canal de noticiário.
Na tv, uma repórter em meio à uma multidão que se aglomera. Ao fundo a entrada da Penitenciária Charles Freire. O indicador de volume na parte inferior da televisão é aumentado.
Repórter
– Estamos aqui em frente à penitenciária Charles Freire, onde há poucas horas atrás teve início uma rebelião jamais vista antes. Como vocês podem ver, a fumaça já toma conta de toda a estrutura, pavilhão Um, pavilhão Dois e chegando ao pavilhão Três. O batalhão de choque chegou há pouco mais de meia hora e já se encontra em ação lá dentro, porém já faz mais de quinze minutos que não se tem atualização sobre como está a situação…
Atrás da repórter uma multidão já se faz presente. São muitos curiosos, mas também alguns familiares dos detentos em busca de notícias sobre seus entes.
Carmen Sanchez se recompõe. Desliga a tv, larga o controle na poltrona, pega a bolsa e sai.
Penitenciária Charles Freire
Carmen Sanchez desce do táxi em frente aquele aglomerado de pessoas. Ela avista o delegado Gaitán junto à alguns policiais perto do cordão de isolamento. Vai passando pelo meio da multidão até chegar onde ele está.
Carmen
– Delegado…
Gaitán se vira ao ouvir o chamado.
Gaitán
– Bom dia detetive.
Carmen fica ao seu lado junto ao cordão de isolamento observando a fumaça que sai pelas janelas da penitenciária.
Carmen
– Vi no noticiário, ainda sem maiores informações?
Gaitán
– Nada. Situação crítica lá dentro. Não se sabe ao certo quantos agentes se encontravam na penitenciária quando começou a rebelião. Nem o que está havendo. Quem começou. Se há mortes. Se há fugas.
Gaitán olha para a detetive ao seu lado.
Gaitán
– Tô com medo aonde isso pode levar…
Ouve-se tiros e gritos vindo lá de dentro. A multidão se agita do lado de fora. Os vidros de uma janela no pavilhão Dois estouram caindo estilhaços até onde se encontram o delegado e a detetive. Parentes de detentos se alvoroçam e tentam ultrapassar o cordão de isolamento sendo impedidos pelos policiais. Gaitán puxa Carmen pelo braço para uma lateral mais isolada. O pavor se instala. O caos está formado.