Raízes

 

 

 

— Tu armou pra mim, seu desgraçado, e junto com essa quenga!

— Quenga é a tua mãe! — ela puxou o cabelo dele.

Alfredo se desvencilhou das cordas afrouxadas, tirou o pano da boca e se levantou.

— O que vamos fazer, Onélia?

— Matar esse infeliz.

— Quem?

— Ora, quem? Tu, homi!

— Eu não! Oxente, tu que inventou isso então termine.

— Mas é frouxo mesmo! Mate esse infeliz, Alfredo! Mate!

— Tu tá ruim de macho, hein, quenga? — risada.

— Cala a boca, traste!

— Eu não vou! Como eu vou matar ele se é você que tá com o canivete?

— A gente troca de lugar, mas não tire o canivete do pescoço dele.

Alfredo se aproximou e agachou.

— Espera aí, eu não sou nenhum viado pra ficar agarrado por trás de macho.

— Deixa de falar merda, seu idiota! Pegue esse canivete e mate esse filho da puta!

O jornalista estava com medo e ao tentar pegar o canivete na mão de Onélia foi quando Dario agiu com rapidez os empurrando no chão, se levantou e apontou a arma para o casal. A Onélia pegou discretamente o canivete caído no tapete e o colocou dentro do decote.

— Você é um burro, Alfredo! Um burro e tapado! Perdemos a chance de matar esse traste.

— Eu te disse que não iria dar certo, eu te disse, Onélia!

— Cala a boca os dois! Minha mão tá coçando aqui pra atirar nas cabeça do pé de pano e de tu quenga.

— Não me mata, por favor, Dario! Tenha piedade! — ajoelhou e juntou as mãos. — A ideia foi dela, foi só dela.

— Como é que é, seu covarde? Está querendo tirar o seu corpinho de fora? Você me ajudou na emboscada, então, tem que morrer também. Eu não vou pagar esse pato sozinha é coisa nenhuma, viu?

— Você que começou com tudo isso, me seduziu e veja a roubada que me meti. Esse pistoleiro veio me matar e suspeito que foi o teu marido que o contratou.

— Ah! não cuspa no prato que se come, meu love lindo, se me procura é porque gosta do meu mel. — ajeitou o decote trocando olhares com o amante.

— Chega de conversa fiada! Os dois escolhe quem vai morrer primeiro, e me dê o canivete, quenga, pensa que eu não vi tu botando nos peitos?

— Tá doido? Eu não peguei canivete nenhum. Ele deve tá por aí jogado.

— Mentirosa! Me dê esse canivete ou quer que eu tire?

— Dê logo esse canivete a ele.

Dario colocou a boca da arma na testa de Onélia que retirou o canivete do dentro do decote e o entregou.

— Já decidiu quem vai morrer primeiro? Porque não tô com paciência e tenho o que cuidar.  Escolha se é na bala ou na furada?

O casal se olhava assustado.

Naquele entardecer no do casarão da fazenda Sertaneja acabavam de entrar na sala o Seu Félix, o padre Jarbas e o vereador JP Andrade.

— A obra da escola está de vente e poupa. Estou ansioso para inaugurá-la na frente dos fiéis. — disse o sacerdote.

— Esse é o sapo que vou ter que engoli. — sentou e colocou os pés no centro de madeira.

— O senhor deveria me agradecer que eu não fiz questão de tomar essa parte das terras porque na teoria esse casarão aqui e tudo há nele é da Santa Madre Igreja.

— Padreco não me venha com suas ameaças porque se a beatada soubesse que tu andas por aí fazendo apostas com o dinheiro do dízimo…

— O que fiz foi para o bem da comunidade de Vila de São Cristóvão. A única escola que tem na cidade está entregue as moscas. Se alguém quer dá um futuro que preste para o filho tem que levá-lo pra cidade vizinha pra estudar isso é um absurdo! Como essas autoridades que temos não fazem nada para o povo? Como não pesam na consciência deles que estão tirando o direito de uma geração de estudar e ser alguém na vida?

— Blá, blá, blá. Chega me emocionei com suas palavras tão cheias de moralismo e é uma pena que venha de você, padreco.

— O senhor me respeite, Seu Félix!

— É por isso que eu vou me candidatar à prefeitura e podem esperar que na minha gestão não vou aceitar menino nenhum fora da escola.

— Tu é homem de coragem, JP, até hoje não restou ninguém vivo que fizesse oposição aos Barbosa pra contar a estória.

— Eu lá tenho medo deles, Seu Félix? Sou caba macho pra enfrentar essa gente que tá desde a fundação da cidade mamando nas tetas da prefeitura.

— Para ter essa segurança toda você deve tá bem seguro e blindado.

— Estou, é claro, que não sou besta, Seu Félix. O que posso dizer por hora é que o tempo de Zé Barbosa passou, ele prometeu demais e não cumpriu aos seus colaboradores.

— Que isso sirva de lição pra você em ter cuidado com as promessas e mais ainda com quem você promete.

— A política é um jogo de disfarces e interesses. Neste atual cenário político estou no lado de todos, eu estou no centro e só preciso alimentar bem os dois lobos opostos.

— Não seja ingênuo. Não se pode agradar gregos e troianos. Um dia esses lobos vão se unir e devorar você.

— Saberei domá-los. O que posso garantir é que além daqueles que me patrocinam às escuras também tenho a apoio das duas forças a sua e de padre Jarbas.

— O vereador pode contar com a Santa Igreja e com os meus fiéis.

— Tenha vergonha nessa tua cara lisa, padreco. Tu é um vira-casaca, basta um te oferecer um dinheirinho pra sustentar essa sua vida de boy que muda de lado igual rapariga com cliente novo e rico.

— Mais uma vez te peço que me respeite, Seu Félix, eu sou um sacerdote.

— Grande coisa! Eu sou Félix de Aguiar, dono desta fazenda. Você está em minhas terras e não admito que um sujeitinho ordinário venha cantar de galo aqui e ainda mais na minha frente.

— Por favor, senhores, acalmem os ânimos. Eu preciso que meus aliados estejam unidos, pois não posso correr o risco de me quebrar.

Padre Jarbas e Seu Félix se encaram.

— Se eu quebrar a minha base a minha vida política já era. Peço a colaboração dos senhores.

— Me diga logo o que tu quer que eu faça por você, vereador? O que quer em troca? Já tô cansado desse lengalenga e quero tomar o meu café e dormir.

— Sua liderança na bancada rural. Você é nome forte, Seu Félix, no meio dos fazendeiros e preciso que me agregue novos aliados.

— Eu estou do seu lado vereador, entretanto o Zé Barbosa tem os seus chegados entre os fazendeiros e logo estou te avisando que não vai ser tão fácil fazer com que eles deixem as mamatas que tem com o prefeito para ficar do seu lado.

— Seu Félix, eu sei onde estou pisando e que há lobos famintos.

— Lobos famintos? Para mim não passam de ovelhas desgarradas que abandonaram a Santa igreja para se converterem há qualquer um vestido de terno, com uma bíblia de baixo do braço, gritando aleluia e glória à Deus.

— O padreco tem razão. Cada esquina se abre uma igreja protestante, têm muitos fazendeiros virando crente enchendo o ego e os bolsos daqueles pastores metidos e sabichões.

— Acho difícil Zé Barbosa virar crente, ele é tão devoto de Padi Cíço que faz questão de decretar feriado no dia do aniversário de vida e de morte do santo. — falou o vereador.

— Aniversário de morte?

— Sim, inventaram mais essa moda, Seu Félix.

— Credo, como alguém pode fazer aniversário de vida de quem já morreu e mais ainda o aniversário de morte? Como? Esse mundo tá virado. — disse o fazendeiro.

— Mesmo com essa devoção ao beato porque deixo bem claro que padre Cícero ainda não foi canonizado, digo, não é um santo, isso não é empecilho para que o prefeito fortaleça mais ainda os laços com os evangélicos por intermédio da maioria dos fazendeiros convertidos. — falou o sacerdote.

— Não posso temer meus adversários, serei a oposição de centro e vou enfrentar como caba macho tanto a direita com Zé Barbosa e quanto a esquerda com aquele bando de retirantes comandado por aquele comunistazinho safado do Agenor.

— Soube que Agenor foi assassinado.

— Também fiquei sabendo, padre Jarbas, e achei foi bom porque é menos um desculpado e preguiçoso no mundo pra aperrear.

— E quem vai ocupar o lugar de Agenor?

— Já chegou aos meus ouvidos que um tal de Chico Neno que tá agitando os retirantes para fazer justiça sobre a morte de Agenor. — falou o padre.

— Aqueles retirantes são um monte de arruaceiros e esfomeados que não sabem com quem estão se metendo e espero que tenham aprendido a lição.

Padre Jarbas e o vereador JP Andrade ficam desconfiados com o comentário do fazendeiro e surgindo a dúvida se ele teria alguma coisa a ver com a morte de Agenor.

— Bom, eu tenho que ir. — olhou para o relógio no punho. — Tenho missa daqui há pouco. Até mais, senhores.

— Vou aproveitar sua saída, padre, e também vou voltar pra casa porque Madá me espera para a hora da massagem. Tchau, Seu Félix.

— Tchau. — levantou e se espreguiçou. — Vou comer o meu cuscuz com ovo. — coçou a barriga.

Na casa do jornalista, Dario continuou com a arma apontada para o casal.

— Mudei de ideia. Tu te levanta, quenga, vai levanta! — a puxou pelo braço.

— Ai! O meu braço! — gritou Onélia.

— Tu vai simbora daqui condenada. Vai-te bora! — a empurrou.

— Não vou deixar o meu love lindo sozinho com você. Acha que vou deixar matar ele? — abraçou o amante.

— Se tu não se mandar eu atiro em você, condenada. — apontou a arma no rosto dela.

— Vá embora, Onélia, vá. Prefiro morrer do que te ver morta.

Onélia olhou para Dario com interesse.

— Tem razão, se eu morrer aqui do teu lado é aí que vou virar uma falecida mal falada. É melhor eu ir, love lindo. — o beijou continuando a olhar para o pistoleiro e andou até a porta.

— Oh, fia, isso é seu? — disse Dario arrastando a calcinha com o pé.

Ela retornou, pegou a calcinha e olhou provocante para o pistoleiro.

— Eu tenho várias dessas em casa e se perder uma não me fará falta. — andou rodando a calcinha com o dedo, a colocou na bolsa e saiu.

— Oh, mulé chave de cadeia.

— Dario, se for pra matar me mata logo. Acaba com isso!

— Tu é frouxo e tapado de cair nas teias de um mulé como aquela.

— Eu amo Onélia.

— Hum-hum, veja se ela tá aqui com você. Já botou o rabo entre as pernas saiu igual uma cachorra medrosa.

— Ela está com medo do marido, esse sujeito que te mandou me matar.

— Você que está dizendo isso.

— Não tenho inimigos, exceto o Sargento.

— Chega de ficar aí miando como gato e se levanta. — o levantou, pegou as cordas e amarrou nas mãos dele.

— Por que está me amarrando?

— Vou te levar comigo e terminar o que vim fazer aqui.

— Meu Deus! Misericórdia!

— Para de chorar, oxente! Eu já apareci demais e muita gente me viu. Não quero correr o risco de alguém armar pra mim como você e aquela condenada fez.

— Vai me matar? E os seus planos de aprender a ler e a escrever?

Dario ficou em silêncio e seguiu arrastando Alfredo com a corda pela estrada enquanto estava sob o cavalo. Anoiteceu e na estrada a lua minguante surgiu entre as nuvens e Alfredo se encontrava exausto de tanto andar.

— Sou novo demais pra morrer. Por que, meu Deus? Por que? — chorava e olhava para o alto.

— Eita boba cipó, tu choraminga demais, homi.

— Já estamos tão longe da cidade e imagino que está me levando para a desova.

— Que diacho é isso?

— Desova?

— Sim.

— O lugar onde você enterrar os corpos de suas vítimas.

— E tu acha que vou me dar o trabaio de matar e depois enterrar? É ruim, hein. Deixo que os urubus e os vermes façam o resto do serviço. — deu uma breve risada.

— Por que não admite que foi o Sargento que mandou você me matar?

— Desde quando sou obrigado a te responder? Tá mal acostumado, Alfredo, saiba que quando cruzei o teu caminho a tua vida está nas minhas mãos.

— Você tem prazer nisso, não é? Sentir que tem o poder sobre a vida do outro, porém está se enganando. Não tem como controlar meus pensamentos e mesmo que me torture não me fará deixar de amar Onélia.

— Pouco me importa com que tu faz da tua vida, caba. Me pagam e eu faço o serviço.

— É, mas no meu caso foi bem diferente. Você me mantém vivo porque viu em mim a oportunidade de aprender a ler e a escrever e isto é a prova de que colocou o seu interesse acima do que teu trabalho, aliás a que ponto cheguei em dizer que pistolagem é trabalho?

— Cada um vevé como pode e falar de interesse todo mundo tem. Tu só aceitou me ensinar porque tem medo de morrer, mas se eu chegasse sem arma e sem te ameaçar com certeza me mandaria chispar correndo da tua casa.

— Tem toda razão, Dario, a pedagogia é um dom para poucos e confesso que não tenho. O que ofereço como jornalista é um texto pronto para pessoas que já sabem ler e por ventura escrever.

— E quem não sabe? Como fica sabendo das coisas que acontecem no mundo? Aqui é tão longe da cidade que é difícil pegar um radinho e muito menos uma televisão porque são poucos que consegue ter luz em casa.

— Reconheço as dificuldades de quem mora no sertão e infelizmente essa realidade se arrasta por anos é um povo com fome, sem água, luz e informação. Vocês tem que mudar essa situação e cobrar das autoridades, do prefeito e não vender um voto em troca de um bujão de água.

— Tu é de onde, caba?

— Da capital.

— Só tem fome, falta de luz e água aqui? Lá também não tem não, é? — questionou em tom de ironia.

— É claro que tem.

— O probrema do bujão de água não é apenas nosso, é de todos. A coisa é errada da seca até a praia. É fácil culpar a gente e chamar nós de ignorante, mas não é porque que na capital vocês vivem melhorzinho que nós que as coisa lá não falta.

— Tem razão. Eu faço a minha parte como jornalista de fazer denúncias e abrir os olhos da sociedade do que realmente acontece.

— E tu acha que o povo não sabe? Que o povo é cego? Ninguém tá nem aí pra nada a não ser olhar para o seu próprio rabo.

— Como já te falei, eu faço a minha parte…

Chegamo.

Dario parou em frente a porteira de sua casa enquanto Alfredo olhava tenso para o lugar, será ali o local que o pistoleiro cessaria sua vida?

Amanheceu, e Alfredo estava deitado na varanda e amarrado entre a pilastra e dona Maria do Céu lhe dava comida e sentada nos degraus.

— Por que está me dando comida, dona?

— O doutor tá na minha casa, é visita e tem que ser bem tratado.

— Teu filho vai me matar.

A mulher parou e olhou para o jornalista com os olhos cheios de lágrimas e Dario se encostou ao lado da porta.

— Que diacho é isso, mainha? — deu um mordida numa goiaba. — O que tu tá fazendo?

— Dando de comer a esse fio de Deus. — levantou.Fio, solte o doutor, deixe ele ir simbora.

— Mainha, já falei que tu não se meta nos meus assuntos.

Seu Romão apareceu na janela.

— Tu vai matar esse peste é quando, Dario? Já me basta a mulé tirar de casa pra encher o bucho desse verme, ele não é porco que nós o engorda pra comer depois. — deu um trago no cigarro.

— Os dois vão queimar no inferno, seus fios do cão.

Dario e Seu Romão gargalhavam por causa da expressão horrorizada de Maria do Céu. Um barulho de carro chamou atenção de Alfredo e quem sabe seria a chance dele de se livrar daquela situação? Poderia ser uma possível ajuda? O jornalista voltou os olhos para a estrada e viu uma caminhonete se aproximando.

— É alguém vindo aí. — disse a matriarca.

— Pode ser alguém querendo ajudar esse infeliz.

— Eu vou esconder esse caba em algum canto. Tu vai na frente, painho, depois volto para cá.

Dario amordaçou a boca de Alfredo com um pano, o desamarrou e o levou para atrás da casa.

— Do Céu, entre pra casa e feche tudo.

— Minha Nossa Senhora! — saiu apavorada e correndo para dentro de casa.

A caminhonete estacionou na entrada da porteira e Seu Romão seguiu armado em posição de ataque.

— Oh! de casa? — gritou uma voz feminina e batia palmas.

Em frente a porteira apareceu uma jovem mulher, cabelos médios castanhos ondulados com alguns fios loiros, pele morena, óculos escuros espelhados, usava calça jeans, uma blusa azul estilo ombro-a-ombro, botas de couro e ao seu lado uma mala com rodas. Ela viu de longe a imagem do patriarca.

— Pai? Mãe? Sou eu a Ester!

Seu Romão colocou a arma no cós das calças e saiu correndo em direção a porteira.

— Ester! Fia! Minha fia Ester voltou!

Dona Maria do Céu ouviu da porta de casa os gritos do marido anunciado a chegada da filha e se ajoelhou emocionada.

— Graças a Deus! Um milagre! Jesus Cristo e Nossa Senhora ouviu as minhas preces e devolveu minha fia! — chorando se levantou.Fia! Ester! Fia! — correu.

O patriarca abriu rapidamente a porteira e ao ver a filha abriu um largo sorriso e seus olhos cheios de lágrimas.

Fia, minha fia, Ester! — abraçou. — Painho tava com tanta saudade, fia.

— Pai, eu também sentir muita saudade.

Fia? Lembra da mainha?

— Sim, lembro sim, mãe, um pouco mais lembro. Vem me dá um abraço.

Mãe e filha se abraçaram.

— Nunca me esqueci de vocês, viu? Nunca.

— Eu pedi tanto a Deus que fizesse tu lembrar de nós. Perdoa a mainha, perdoa? Eu te dei, mas foi pra te dar uma vida meior, não foi por maldade não fia. — chorava.

— Mainha. — enxugou as lágrimas dela passando as mãos sob a face. — A senhora pensou no meu bem. Onde estão meus irmãos?

Dario entrou na varanda da casa e viu a irmã, porém não a reconheceu, afinal quando Ester foi embora ele era apenas um bebê. Os dois irmãos se olhavam de longe.

— Sabe quem é aquele? É o Dario, teu irmão caçula. — disse a mãe.

— Dario?

— Sim, tu lembra dele, fia?

— Não.

— Deve ser porque tu quando saiu de casa ainda era muito pequena. Vocês quase tem a mesma idade. — falou o pai.

— Vem cá, fia, vem ver teu irmão. — pegou na mão da filha e a conduziu até a casa.

— Dario, é a Ester! Tua irmã voltou! Ester voltou! — gritou o patriarca.

O caçula ao ver a imagem dos pais ao lado da irmã sentiu algo tremer por dentro, pois cresceu sem ter gravado na memória a irmã e assim suas lembranças eram construídas pelos relatos de seus pais, Tereza e Manuela. Para o pistoleiro a sua irmã Ester era um mistério, alguém em sua vida que vivia no campo da sua mente e que emergiu ao mundo real.

— Ester? — expôs a afeição de incredulidade.

— É ela, sim, fio, tua irmã Ester voltou pra casa, voltou pra nós. — falou o pai com os olhos lacrimejados.

— Não acredito que depois de tanto falarem de tu…você existe mesmo, Ester. — abriu um sorriso e abraçou bruscamente a irmã. — Tu lembra d`eu? — tocou no rosto dela.

— Não me lembro.

— Vocês eram tudo pequeno, menino de braço como vão lembrar de alguma coisa?

— Tem razão, mainha. Ester é mais bonita do que eu pensava que fosse. O que fez tu voltar pra casa? Por que não voltou antes? Painho e mainha tem uma saudade da bixiga de você e tu nunca deu as caras por aqui.

— Dario! — a mãe o repreendeu.

— Você tem razão de me perguntar isso.

Fia, vamo entrar, você deve tá cansada da viagem, vem tomar um cafezinho e aí tu conta o que quer contar.

— Vem comigo, fia. — a mãe conduziu a filha para dentro da casa.

— E tu se avexe de resolver o teu probrema, caba. — disse o pai o encarando e entrando em casa.

Dario retornou ao quintal enquanto na sala a dona Maria do Céu servia a filha à mesa e Seu irmão sentou na cadeira de balanço, ligou o rádio de pilha e acendeu um cigarro.

— Como estão o Seu Teixeira e a dona Rosinha? — perguntou a mãe.

— Estão em São Paulo.

— Voltaram a morar lá?

— Sim.

 — Onde tu tava, menina, todo esse tempo?

— Passei um tempo na capital e quando fiquei moça fui com eles para São Paulo.

Maria do Céu desconfiou que sua filha escondia algo, mas preferiu acredita que fosse apenas impressão.

— O que tu faz da vida, fia? Estudou, é doutora? — perguntou o pai.

— Sim, eu estudei. Não sou doutora e sim professora.

— De menino pequeno? — sentou a mãe à mesa.

— Sim, de crianças.

— Tá vendo, Romão? Eu fiz bem em ter mandado nossa fia ir com Seu Teixeira e dona Rosinha.

— Tô vendo, Do Céu, tô vendo. — se balançava na cadeira e colocava o rádio no ouvido.

— Eu tenho uma fia fessora, fessora.

— Mãe, o corretor a dizer é professora.

Ester olhou com certo desdém para o seu redor pela simplicidade do lugar.

— Isso! Ah! a comida já tá quente. — levantou e caminhou ao fogão a lenha. — espero que tu goste do pirão de carne que fiz e do arrozinho. — colocou a comida no prato e depois sob a mesa.

Ester olhou com nojo para o prato.

— Não gosta de pirão de carne, fia?

— Nunca comi isso. O que é?

— Comeu sim, quando tu era menina as vezes quando tinha algo melhorzinho pra comer era o que eu te dava.

— Não gostei da cara e muito menos do cheiro. — empurrou o prato.

— O que tu come? Posso pedi pra Dario ir lá na cidade e trazer.

— Aqui em casa se come o que tem!

— Romão!

— Mãe, pode deixar, eu como uma fruta. — pegou uma banana dentro do cesto e começou a comer.

— Onde tu tava antes de vim para casa?

— Eu estou morando em São Paulo, vim passar uns dias em Alagoas para conhecer minhas raízes e também porque vou me casar.

— Casar? Ouviu isso, Romão? Nossa fia vai casar?

— Hum-hum, ouvi, quem é o sujeito?

— O nome dele é Marlon, ele é francês e faz algum tempo que mora no Brasil.

— De vez em quando lá no Velho Chico, veem uns turista desse lugar aí que tu falou.

— Mãe, quando o Marlon soube da minha estória e que eu nasci em Vila de São Cristóvão, no sertão de Alagoas, ele ficou fascinado.

— Já vi que o caba é besta. O que tem de bom em Vila de São Cristóvão? É só seca, gado morto e pistoleiro. — gargalhou.

— Pai, o Marlon é um homem viajado, culto e educado. Ele é pós-doutor em antropologia, escreveu vários livros e artigos acadêmicos e é poliglota fala cinco idiomas.

— Fale minha língua, fia. Não entendi foi nada que tu falou aí do caba. — levantou e coçou a barriga. — Eu vou trocar a comida do galo[1]. — pegou um pau encostado na parede e tirou uma gaiola pendurada no teto.

— É um absurdo que prendam esse passarinho em uma gaiola.

— Menina, tu não me venha com tuas frescuras. Esse galo é meu, a casa é minha e se não aceita o meu modo de ser, então volte de onde veio.

— Romão, nossa fia acabou de chegar e tu já começou a arengar com a menina?

— Oxente, quem ela pensa que é de querer mudar as coisas aqui dentro de casa? — saiu com o gaiola.

No quintal, Dario estava encostado na porta do galinheiro olhando para Alfredo que se encontrava amarrado com a boca vedada com um pano.

— Tu vai ficar aí e nenhum pio se quer.

O jornalista por exaustão não demonstrava resistência e Seu Romão com a gaiola parou ao lado do filho.

— Ainda não matou esse caba?

Dario fechou a porta e trancou com o ferrolho.

— Tô achando que tu tá enrolando demais pra matar esse sujeito.

— Painho, tu não te mete não.

— Tá se acovardando, Dario? O que tem esse caba que tu não mata?

— Dessa noite ele não passa. — saiu.

— Eu espero que sim porque não tenho fio covarde.

Maria do Céu continuou a conversar com Ester à mesa.

Fia, liga não pro teu pai. Ele é bruto assim mesmo. O seu noivo te trata bem?

— Sim, Marlon é um gentleman.

— Gentle…o que é isso?

— Quero dizer que ele é um homem educado e fino.

— Quando vai trazer ele pra cá pra gente conhecer?

— Em breve. — tomou um gole de café.

— Parece que foi ontem que naquele canto da sala tava você e Dario ali sentadinhos no chão brincando e nuzinhos. — olhava emocionada para o lugar. — eram meus menino mais novo, meus caçula. E você aqui, fia, na minha frente. — segurou as mãos dela. — É um milagre de Nosso Senhor. — acarinhava as mãos da filha. — Me sentia tão culpada, tinha medo, fia, de tu me esquecer, de tu achar que foi malvadeza minha mandar ir simbora com Seu Teixeira e dona Rosinha.

— Já disse que não precisa se culpar, mãe, foi o melhor que pôde fazer.

— Tenho uma fia fessora.

— Professora.

— O que tu falou. — riu. — Tua vêia mãe não sabe falar direito. Não seio nem ler e nem escrevo.

Logo, Dario parou na porta dos fundos do quintal.

— Mainha, sabe onde tá a vassoura?

— Está atrás da pôrta. — a irmã falou a palavra porta com o sotaque paulista.

— Oxente, e pegou as manias dos paulista de falar assim é, Ester? — disse Dario em tom de brincadeira.

— Eu não peguei mania de ninguém porque eu sou paulista.

— Tu é o quê, miséria? — cruzou os braços. — Tu nasceu aqui, é alagoana e vem com essa conversa que é de São Paulo. Tá negando de onde veio é?

— Sou paulista, pois passei a maior parte da minha vida lá.

— Dario, para de arengar com a tua irmã.

— Deixo não, mainha, essa aí já tô vendo que é fresca e vergonha da gente.

— Me poupe, Dario, só porque eu me acostumei com o sotaque paulista não significa que eu tenha vergonha de ter nascido em Alagoas.

— O que mais tem é gente que sai da tua terra e quando volta vem cheio das munganga[2] dos outros cantos.

— Inveja sua, nada posso fazer se nossa a mãe me escolheu para ir com os padrinhos.

— Padrinhos? — a perguntou dona Maria do Céu.

— É assim que chamo a dona Rosinha e o Seu Teixeira.

Diacho, onde é que eu tenho lá inveja de tu, coisa lorde? Eu vou cuidar. Oh! Mulé metida da peste. — saiu resmungando.

Fia o que tu vai querer de mistura?

— Mistura?

— Sim, para o almoço. Tu come carne ou frango?

— Eu quero cainé. falou a palavra carne com o sotaque paulista.

De noite, Ester entrou na varanda, se deitou na rede e mexeu no celular.

— Nenhum sinal de internet. Esse povo vive na pré-história. — balançava na rede e olhava no alto a lua. — Como alguém em pleno no século 21 vive sem luz, sem internet e só tem água se for tirada no poço? Eu tive foi sorte em ter sido dada. — começou a se coçar. — Ah! esses mosquitos estão me devorando e mais ainda com esse calor, eu vou é tomar um banho mesmo sendo de cuia.

Ester tomava banho em um banheiro improvisado no quintal. O local era aberto e apenas umas tábuas revestidas de palhas cobriam o corpo de quem entrasse para se banhar.

— Será que tem cobra por aqui? Ah! meu Deus, eu não devia ter vindo para esse fim de mundo. — olhava para o chão assustada.

Quando de repente ela escutou uns gemidos vindo do galinheiro.

— O que foi isso? — olhou ao redor.

Novamente escutou uns gemidos.

 — Eu vou ver o que é. — pegou a toalha pendurada na tábua, se enrolou e saiu.

Apenas uma luz de um lampião clareava o lugar e Ester seguiu o som dos gemidos quando parou na porta do galinheiro.

— Vem daqui. — abriu a porta.

Ester tomou um susto ao ver Alfredo amarrado e amordaçado no chão e arrodeado de galinhas.

— Ah! Socorro! — a toalha caiu.

[1] Galo-de-campina ou cardeal-do-nordeste.

[2] Munganga na gíria nordestina significa careta, momice, trejeito.

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