Deixo o celular escorregar da minha mão enquanto corro os olhos pelos quatro cantos do teto do meu quarto até fixá-los em um ponto qualquer. Sem sombra de dúvidas a Gabriela sofre de transtorno dissociativo de identidade, pelo menos é assim que dona Lúcia iria diagnosticar a crise de dupla personalidade que minha amiga acabou de manifestar.

 

                              (momento flash back)

Há praticamente uma hora Gabriela me ligou, indignada, diga-se de passagem, com o fato do David querer, nos quarenta e cinco minutos do segundo tempo, vir conversar comigo para esclarecer o “mal entendido” do fim do nosso namoro, e ela mesma fez questão de me contar, antes que eu soubesse por terceiros, o fato do quadrúpede estar namorando alguém do SEXO MASCULINO depois daquela desculpa esfarrapada que deu pra se ver livre de mim.

 

    Pois bem…  

Após a retomada da campanha “Todos contra David”, o mínimo que eu poderia esperar seriam aplausos pela minha postagem no Secrets, mas o que eu recebo? Uma reprimenda por causa de uma desforrazita. ‍♂️Que eu agi por impulso. Que vingar-se de alguém nada mais é do que se igualar a outra pessoa e que eu abri um precedente para que o David assuma um papel de vítima.

 

Oi? 

   

 

Tive que ser irônico e perguntar se quem estava realmente do outro lado da linha era minha amiga ou a minha mãe. Pelo Criador, a Gabriela sabe melhor do que ninguém como eu estou sobrevivendo a essas últimas semanas; que conto com ela para ser minha válvula de escape no meio desse Deus nos acuda…

Tamborilo os meus dedos sobre o colchão. Estou tão nervoso que mal consigo respirar.

Desde que o mundo é mundo vingar-se tem sido uma prática usual, perturbadora. O desejo da desforra tem sido representado pelo homem em obras que vão desde a mitologia grega até a novela das nove. Medéia que o diga. Matou os próprios filhos para punir o marido traidor… Ok. Radical demais e apelativo, além de completamente insano, mas eu entendo a Medéia. De verdade. Não que eu chegaria a esse extremo, mas o principio de não deixar que o rival nos considere fraco e vencido, é válido. É o que nos impulsiona a reagir de uma maneira tão derradeira, e no meu caso o David foi um covarde filho da puta…  

Por que o infeliz não me disse que tava a fim de partir pra outra? Precisava inventar aquela historinha ridícula de que eu o fiz enxergar que sentia atração pelo sexo oposto? Cara, na boa, será que ele não pensou em nenhum momento que esse pretexto iria me afetar de maneira negativa, fazendo-me acreditar que eu fui um péssimo namorado, um completo incompetente elevado à milésima potência? Teria sido melhor se ele tivesse dito que não iria mais rolar porque nossos signos não combinavam. Mas não. E agora o cretino me aparece com um cara mais velho? Pior do que ser trocado por um novinho é ser substituído por um tiozão…

Pensando bem, acho que eu gostaria de ver o David antes de ir embora para o mundo de Nárnia e perguntar, face to face, se ele acordou, assim, do nada, há mais de três semanas, com a ideia de que queria terminar o nosso namoro.

O infeliz já devia estar dando um perdido em mim com esse papa anjo trintão, e nada vai me convencer do contrário, até porque o David é um péssimo ator, e na primeira oportunidade me dispensou sem sequer levar em conta que o meu mundo estava começando a desmoronar…

Viro-me de lado, num movimento brusco, e à medida que o edredom engalfinha-se aos meus pés, apoio a cabeça sobre o meu braço esquerdo e fico olhando para a larga faixa dourada da luz do sol atravessando a janela e digo a mim mesmo, decidido e erguendo o queixo, consciente do orgulho ferido que transborda por cada um dos meus poros, que não vou pensar em nada disso por agora, nem mesmo no sermão que a Gabriela me deu, afinal de contas, ela não está raciocinando direito por causa dos trabalhos da escola.

Sinto (ou pelo menos acho que sinto) meu corpo desacelerar ao passo em que experimento (ou pelo menos acho que experimento) movimentos espasmódicos acontecendo em uma das minhas pernas e então balanço a cabeça bem, bem devagar enquanto um bocejo muito, muito longo e uma moleza me incentivam a fechar os olhos para ouvir minha respiração.

Neste instante, sem qualquer aviso, uma verdadeira batalha entre titãs começa a acontecer em minha mente, entretanto, para que isto não aconteça, luto como um bárbaro, como um selvagem cuja vida está por um fio… Mas estou perdendo terreno… Não. Não. Não. Quero e mereço descansar, esvaziar todo o meu cérebro até alcançar um nível mínimo de subsistência cognitiva, porém, algumas vozes começam a se fazerem ouvir. Palavras mastigadas, sem pressa, desordenadas, sendo atiradas contra mim e por mais que me esforce não consigo distinguir quem está falando, apenas compreender, ou reconhecer, as frases, cada uma delas, como a ameaça de dona Lúcia em me deixar de castigo; ou as justificativas de meu pai para que eu não vá para Curitiba; ou a notícia de que o novo namorado do David é um cara mais velho; ou ainda o absurdo de ser chamado de egoísta por não ter notado a fragmentação do casamento dos meus digníssimos progenitores…

Empenho-me no intuito de me defender, argumentar, entretanto minhas ideias não se concatenam e ainda que pudesse, percebo que minha voz está trancafiada na garganta, assim como também não encontro forças para abrir os olhos, pois minhas pálpebras estão extremamente pesadas e meu cérebro segue revisando e processando memórias, pensamentos e sensações diversas, dando-me a impressão de que não sei exatamente o que está acontecendo ao mesmo tempo em que imagens oníricas, flashes de luz e pensamentos mal formados, surgem, alguns estáticos, outros dinâmicos, ou complexos ou simples demais, ou atraentes ou insuportáveis. Todas, ou cada uma dessas representações, parecem obedecer a uma determinada ordem, contudo, também me levam a crer que se movimentam de maneira aleatória.

Mary Shelley disse ter tido inspiração para criar o personagem Frankenstein em um “sonho acordada”, nas primeiras horas da manhã, ao tempo que escrevia…

Minhas pálpebras continuam extremamente pesadas, mas consigo sentir fragmentos de movimentos rápidos nos meus olhos, assim como um formigamento se intensificando no braço esquerdo, onde, tenho certeza, minha cabeça ainda está repousando…

Segundo Freud, ou minha mãe, eu não sei mais, disse que o sonho seria uma “válvula de segurança” para expelir os desejos recalcados e deixados ao abrigo do inconsciente…

Estou sonhando?

“Diversas línguas, hórridos falares, palavras dolorosas e coléricas, vozes altas e roucas, sons de mãos faziam um tumulto que se expande na atmosfera sem tempo”, assim descreveu Dante ao se deparar com o tumulto das almas condenadas, numa escuridão terrível, sem céu nem estrelas, depois que atravessou o limiar do inferno, em sua “Divina Comédia”.

Estou exausto. Necessito frear, encontrar um meio termo que me permita chegar são e salvo até domingo…

Por que não aceitou o convite de amizade que a Bia te enviou pelo facebook? Ela está ansiosa por este contato. A pergunta retórica de dona Lúcia acompanhada de uma justificativa aparentemente despretensiosa buscando mascarar o efeito de uma manipulação passiva, ambas embaladas num tom de voz aveludado, grita aos meus ouvidos me fazendo despertar um tanto assustado e com uma sensação de que estou caindo, perdendo o equilíbrio…

 

Estou parado em frente a uma estrada sinuosa, vermelha como o sangue, ladeada por cedros escuros de cascalhos, que se encontra em arco, dificultando em grande escala a passagem dos raios de sol por suas copas, transformando a extensa alameda que se desdobra ao longo do caminho em um túnel sombrio.

Que lugar é esse? Questiono ao tempo em que não demoro a perceber que não consigo me mover, falar ou qualquer outra ação…

De repente sinto minha mão esquerda sendo puxada. Um corpo etéreo, um fluido que se deforma continuamente em cores e imagens, como o de um caleidoscópio, surge à minha frente tentando me fazer andar. Recuso-me a seguir, claro, e reclamo, perguntando o que está havendo, onde estou, mas não recebo qualquer resposta e daí eu olho para trás e por incrível que possa parecer constato que caminhei um bom pedaço de chão.

Mas como? Estou imóvel…

Sinto filetes de raios de sol tocando minha pele, cálidos, plácidos, complacentes, ajudando a iluminar a semiescuridão que me rodeia. Volto-me na direção da tal imagem constituída de pura energia, mas não a encontro. Ela (ou ele) desapareceu completamente sem deixar qualquer vestígio.

Uma chuva torrencial desaba sobre mim sem aviso prévio ao passo em que volto a ter domínio sobre o meu sistema motor e então começo a correr sobre a estrada vermelha sem diminuir um instante sequer os meus passos. Não sei para onde estou indo, só sei que preciso sair daqui, deste lugar que nunca vi antes em toda minha vida. Depois de certo tempo, já ofegante, eu percebo que não consegui me mover, como se todo o caminho que ficou para trás tivesse sido percorrido sobre uma esteira rolante.

Inesperadamente, como um sopro de vida, uma silhueta de contornos femininos surge no meu caminho. Semicerro os olhos e estico um pouco o pescoço para frente na tentativa de identificá-la. Como se pudesse ler os meus pensamentos, a imagem embaciada adianta-se alguns passos em minha direção, estaciona e em seguida, como se as lentes de uma câmera tivessem encontrado o foco, uma jovem de cabelos longos e pretos, pele branca, muito branca, é revelada. Não a reconheço de pronto, mas seu rosto aos poucos vai sendo iluminado pela luz escassa do sol e só então percebo que o dilúvio que desmoronava sobre mim, estacou.

A jovem à minha frente é bastante bonita, de olhos bondosos, inteligentes. Com um sorriso encantador atravessando todo o seu rosto e uma empatia singular emanando do seu semblante, ela abre os braços convidando-me para ir ao seu encontro… É Bia. É Bia, minha prima. Está idêntica aquela foto de perfil do seu facebook…

Decido não demonstrar qualquer emoção, apenas me limito a perguntar o que está havendo, por que não consigo sair do mesmo lugar, por mais que eu tente… Tal como o ser etéreo, ela também não me devolve qualquer resposta, qualquer explicação, apenas permanece parada, inerte, entretanto toda sua expressão acolhedora é substituída numa fração de segundos por um cenho cerrado, carrancudo, ao mesmo tempo em que sinto o chão começar a tremer sob os meus pés e uma aflição imediata tomar conta de mim seguida de  um calafrio percorrendo todo o meu corpo.

Tento e novamente não consigo me mover e constato que apenas eu estou sendo atingido por esse cataclismo e sem pestanejar volto a perguntar o que está acontecendo, mas dessa vez aos berros, incentivado por um frenesi genuíno incrustado em cada fibra do meu ser.

Bia permanece impassível, indolente acima da terra vermelha como o sangue, até que o solo, por fim, para de tremer, porém não tenho tempo de me sentir aliviado, pois os meus pés imediatamente começam a afundar e eu não demoro a olhar para baixo e me certificar, assumindo uma expressão de tamanho terror, que estou sendo devorado lentamente por um banco de areia.

Uma sensação de que algo está percorrendo meu cérebro, uma espécie de onda magnética, lenta, rápida, lenta, rápida, me deixa ainda mais perturbado, em polvorosa. Por um instante tenho a certeza absoluta de que estou sonhando, que estou separado do meu próprio corpo, um espectador assistindo a um filme de terror, um suspense barato. Mas em questão de segundos, como tudo que acontece nessa viagem psicodélica, essa convicção se esvai e volto a me deparar com o banco de areia tragando o meu corpo e então começo a me debater, me contorcendo de puro medo, gritando enquanto o suor brota de meus poros aos borbotões até que levanto o rosto no intuito de pedir ajuda a Bia, porém em meio a essa realidade bizarra encontro em seu lugar a imagem de minha mãe, que também não se move, não esboça qualquer sinal de que pretende me ajudar…

“Querido, para quê resistir?”.

Minha mãe, ou quem quer que seja, pois agora não consigo mais distinguir com exatidão a pessoa ou o espectro que está diante de mim, lança sua pergunta num tom de voz bastante sóbrio, mas que esconde, mal e parcamente, o prazer que isso lhe dá, a satisfação da tortura psicológica que me impõe com esse questionamento (ou constatação) aparentemente inofensivo.

“Lucas. Não é mesmo? Posso falar com você um instante? Na verdade já há algum tempo que eu estava aguardando por este encontro”…

A tal energia se expande, tornando-se disforme por completo Um caleidoscópio. Um ser etéreo. Apenas um jogo de luzes se intercalando entre incandescente e frio. Uma substância amorfa. Uma névoa branca-acizentada, semitransparente, se agitando como um condutor de eletricidade e magnetismo. 

Quem ou o que é você? Como e desde quando me conhece para afirmar que estava aguardando por este encontro? Eu não tenho medo de você, sabia?

Palavras, palavras e tantas outras palavras que ficam atravessadas em minha garganta; indagações que não consigo, de repente, mais exprimir… Detesto essa impotência. Odeio ser subjugado.

Sonho. Sonho. Estou sonhando. Quero acordar!

Não estou mais sendo sugado pelo chão, todavia, a composição do solo sob os meus pés não parece sólida. Tenho a impressão de que estou pisando em um colchão d’água. Não! Parece que estou sobre um amontoado de plástico bolha…

“Lucas. Não desista de nada, apesar de alguns obstáculos. E não tente ser quem você não é”.

Olho para baixo. Não consigo me mexer. De novo.

“O que te leva a investir tanta energia nesses rapazes que nem sequer se interessam, de verdade, por você?”.

Ergo a cabeça num gesto extremamente exagerado. A tal energia continua brilhando à minha frente… Mas do que é que ela está falando?

“Nem sempre a pessoa que julgamos amar é a certa para o nosso aprendizado”…

Sua voz ecoa por todo o canto. Forte. Densa. Irreconhecível. Irritante.

“Quando, Lucas, você vai parar de apenas querer enxergar miragens? Ainda não aprendeu a lição?”.

Quem é vocêêêêê? Clamo desesperadamente, pouco me importando se vou me fazer ouvir. O que não posso é ficar com esse nó atravessado, essa angústia, essa passividade diante dessa afronta alucinógena.

“Como é fácil iludir todos vocês, jovens. A arrogância desmedida que carregam dentro de si é o combustível que me alimenta. Assim como a carência exagerada, o desespero de se ter alguém ao lado para chamar de seu, acreditando que com isso conseguirão o passaporte de entrada para o universo de uma vida perfeita…”.

Não quero ouvir. Não vou te ouvir.

“Contudo, não conseguem abrir mão das aventuras, do apetite por distração, esquecendo suas reais necessidades e é aí, exatamente aí que eu entro, sufocando-os com trivialidades, incentivando-os a enxergar inimigos invejosos por todos os lados. Afastando-os do mínimo do bom senso, afinal, nos dias de hoje, tenho todas as ferramentas de que preciso: qual a diferença entre educação e entretenimento?”.

Meneio a cabeça com força ao passo que fecho e abro os olhos, repetidas e repetidas vezes, na direção do chão, decidido a ocupar minha mente com esse gesto puramente mecânico, já que não consigo concatenar qualquer linha de raciocino, por mais simples que seja. É preciso apelar para qualquer coisa, qualquer artifício que me ajude a atirar para bem longe essa aberração que está diante de mim. 

“Pessoas carentes como você, Lucas, acham que amam, mas não. Fazem reféns!”.

Segundos. Um piscar de olhos e não demora muito para que metade do meu corpo volte a submergir para dentro do maldito banco de areia.

Eu não posso acreditar!

Grito. Muito. Alto. Enquanto um frenesi de horror e ansiedade incrusta minhas entranhas, meus pulmões, meus braços e pernas. Já não tenho mais voz e todos os meus músculos doem e é aí, então, que noto um silêncio absoluto reinando ao meu redor. Ergo, por fim, a cabeça. O espectro, a imagem disforme, a tal energia, sumiu! Desapareceu sem deixar rastros.

O banco de areia volta a agir e agora bem mais rápido, tragando todo o meu corpo como se ele fosse uma mera gelatina, como se não houvesse ossos na minha constituição física… Alguém me ajude, pelo Criador! Rogo à medida que corro os olhos para todos os lados na tentativa derradeira de encontrar algo para me apoiar até que me deparo com uma serpente imensa rodeando-me e ela parece sorrir… Mas isso é impossível…

A terra continua a me devorar e eu uso o que resta das minhas cordas vocais para um último pedido de socorro e qual não é minha surpresa ao ver a tal serpente se metamorfosear em David, e ela, já em sua forma humana, me dispara uma piscadela rápida seguida de um tímido sorriso maquiavélico enquanto me estende a mão…

 

*  *  *  fotos: Banco de dados PIXABAY (imagens livres de direitos autorais)

*  *  * gifs “ampulheta” (momento flah back) extraídos do site https://www.casamentos.com.br/forum/lembrancinha-para-os-padrinhos-vemver–t412740

*  *  * gif “fazendo cáuculos extraído do site geekie games

*  *  * gif  “mergulhando em um sonho” extraído do site “Pink Floyd, Psicodelismo e o Doutor Estranho”, de Fábio Finotti

*  *  * gif “correndo pela floresta”: endereço eletrônico https://gifimage.net/floresta-gif-8/

*  *  * gif “jovem caminhando”: endereço eletrônico http://meu-paraiso-das-gifs.blogspot.com/2017/10/gifs-em-imagens-fundo-negro.html

*  *  * gif “caindo” extraído do site “segredos do mundo”, https://segredosdomundo.r7.com/5-sonhos-que-pessoas-ansiosas-sempre-tem-e-o-que-significam/

*  *  *  vídeo “Losing my religion”, R.E.M.: FONTE YOTUBE.com.br

 

 

 

 

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