“No último Interlúdio, Maya pretende se encontrar com o cadeirante. Para isso, terá que atravessar o deserto na companhia de estranhas entidades. Nossa guerreira está prestes a cumprir com sua missão, entregando ao Feudo de Produção os frutos de sua caça.”
V
Interlúdio
A entrega
Antes do declínio do mundo, assisti a um documentário que contava a história de um maratonista que sobreviveu no deserto por 40 dias bebendo o sangue dos morcegos que encontrava pelas docas do caminho. Mas não havia morcegos no meu caminho (exceto aqueles enormes que tentaram me comer).
Atravessei as montanhas num sol que queimava a pele acreditando ver oásis e lambendo o beiço a procura das gotas de suor. Eu escutava o roquinho safado pelas montanhas e o riso irônico do palhaço. Quando os via por perto, me escondia em cavernas vazias. Às vezes vinha um flutuar ao vento, numa voz grossa e maligna. Aquele palhaço me gelava a espinhela. Com o tempo me acostumei com eles. De longe subia a fumaça do Plymouth, o ronco poderoso do seu motor. Continuei pelas montanhas. Não podiam me pegas nas pedras.
Quando cheguei ao feudo do cadeirante me deixaram apodrecendo no sol do lado de fora.
-Me desculpe, Maya. – disse o mensageiro de outrora – Não a reconheci pela distância.
Pudera! Eu estava um trapo; toda suja, com sangue nas pernas, cabelo seco como palha. Fui direto para o poço d’água (os cumprimentos ficaram para mais tarde). Me saciei naquilo que tinham em abundância. Seus poços artesianos eram os melhores que já vi. Como conseguiram cavar tão fundo nessa terra dura?
-O Portal espera por você. – Disse o mensageiro.
-Quem? – Perguntei para me certificar do que dissera.
-O Portal.
-Quem é Portal?
-Você tem o que ele pediu?
O cadeirante? O chamam de portal?
-Sim, eu trouxe.
-Vou avisar ao seu feudo de que chegou com a encomenda.
-Faça isso, por favor. Não sei se aguento andar até lá nesse sol.
O mensageiro sorriu.
-O Portal te espera no mesmo lugar.
-Tudo bem, tudo bem. Estou indo.
Um pouco recomposta da condição vexatória em que cheguei fui me encontrar com o tal do Portal (Boo! Uma terra estranha, com pessoas estranhas e denominações mais estranhas ainda).
O tal lugar tinha o cheiro característico das livrarias (de papel e coisa nova). Coloquei a encomenda em cima da mesa de duas cadeiras. Olhei para as prateleiras repletas de livros (havia mais de 10.000 livros nas estantes), títulos que me lembro de ter lido quando crianças e outros que nunca ouvi falar. Apesar de me lembrarem meu pai, nunca os odiei. Vivia mil vidas quando lia um livro.
-Se sente bem aqui, Maya?
O Portal sussurrou nas minhas costas. Virei para me gabar da encomenda. O São Bernardo de outrora estava ao seu lado; rosnando como um cão raivoso, sujo e babando sua gosma nojenta. Me afastei com fúria.
-Não tenha medo, Maya. O nosso amigo aqui é um bom cachorro.
O bicho continuava rosnando como uma serra elétrica estragada. O pelo estava empapado de sangue, um odor podre infestando o ar.
O homem tinha apenas os cotocos dos braços. Havia decepado as mãos. Mas por quê? Corri tropeçando nas coisas. Aquela coceira poderia ser contagiosa.
-O que vê não foi fruto de nenhum tipo de peste. – Gritou virando sua cadeira.
Eu parei. Não tenho medo de nada, lembra? O cachorro deitou a cabeça sobre as patas da frente, ainda rosnando (ughhhhhh, ughhhhhhh).
-O que foi, então?
-É uma longa história. Um dia terei prazer em contá-la. – Ele coçou seu tórax irritado. – Trouxe o que pedi?
-Creio que vai gostar do que tenho.
Passei pelo São Bernardo. Ele me encarava com aqueles olhos caído e remelentos. Do nada soltou latidos roucos. O Portal o acalmou, pedindo que fizesse silêncio com os dedos. O cachorro obedeceu abanando o rabo. Esparramei os exemplares sobre a mesa (Os miseráveis, Alice no país das Maravilhas e Sobre a escrita). O Cachorro levantou a cabeça como que franzindo a testa.
-Calma, amigão. Maya também é nossa amiga.
Não sou amiga de ninguém. Sou fiel aos do meu Feudo.
Os olhos do Portal brilharam pelo que coloquei na mesa.
-Para não esquecer; para se adaptar; para aprender. – Disse tocando-os com o que restou dos seus membros – Vou pagar o preço justo. Sou um homem generoso.
Fora uma caçada e tanto.
-Coloque-os naquela prateleira para mim, Maya. Creio que na minha condição não posso fazê-lo.
Fiz o que me pediu. Se o tal Portal desejasse preencher todas as outras estantes com livros que não contasse com a minha ajuda.
-O que encontrou pelo caminho? – Me perguntou.
-O de sempre. Nada de interessante.
Olhei para o seu dorso. Havia algo sob a camisa, se mexendo, instigando o Portal a coçá-los. Tinham o formato redondo; vítreo. Eram muitos, preenchendo todo seu peitoral. Meu Deus! Eram olhos! Malditos olhos! Com o susto deixei alguns livros caírem no chão.
-Não tenha medo. Eu posso controlá-los, são parte de mim agora.
-O que são? – Perguntei recolocando os livros no lugar.
-Eu não sei. Aprendi a controlá-los com ameaças – ele mostrou o cotoco dos braços – não podem viver fora do meu corpo.
-E como sabe?
-Extirpando-os.
Meu Deus! Vivendo para ver coisas estranhas.
-Por que te chamam de Portal?
-Pelo que sei. Não me pergunte como sei. Talvez eu seja o elo entre o mundo antigo e o novo.
-Você os trouxe? É isso que tá me dizendo?
-De certa forma, sim. Mas não me sinto culpado. Aconteceria de um jeito ou de outro.
O peito dele pulsava.
O cachorro se esgueirou pela porta, procurando abrigo na sombra perto do poço.
-Não precisa ter medo de mim.
-Mas eu tenho.
-Um medo tolo. O pior já passou.
-O que vai fazer comigo?
-Nada. Eu os mantenho sob controle agora.
-Um pouco tarde para isso, não acha?
-Olhe para os livros, Maya. Nunca é tarde para recomeçar.
Paulo me esperava no Fusca. Ele me abraçou como antigamente, quando éramos crianças e corríamos soltos pela Cidade do México. Sinto falta desse tempo; da escola, dos amigos, da comida das lanchonetes, do bolo de chocolate da minha mãe. O que me sobra agora são as lembranças. Nada mais do que velhas e pálidas lembranças.
Senti uma brisa incomum no rosto. Minha mão direita coçava como se uma ferida estivesse sarando, como se os pontos estivessem sendo puxados pela sequidão do curativo. Eu só não me lembrava de tê-la machucado.
Inspirado nas obras:
A Torre Negra
O Iluminado
Cujo
Christine
It – A Coisa
As crianças do milharal (Livro Sombras da noite)
Eu sou o portal (Livro Sombras da noite)
O turno da noite (Livro Sombras da noite)
‘Boston Red Sox é o time de baseball favorito de Stephen King’
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