Os órfãos de Eldarion
1a. Ed. – Goiânia / Goiás
Copyright 2018 por Sylvana Camello
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Capítulo 1
O fogo do Dragão
Will se arrastava pelas cinzas do lugar que um dia chamou de lar. As chamas consumiam as plantações de trigo e milho do seu pai. Nada brotaria daquele chão novamente, nem mesmo o capim denso que alimentava os animais selvagens das serranias mais próximas. Se os olhos de um visitante se estreitassem numa linha fina, eles veriam apenas uma sequidão bruxuleante que alcançava as montanhas do norte.
Nas terras bravias de Mythos, sentou-se ao pé de um antigo carvalho. Carregando uma pequena matula que fora do seu avô, tentava alcançar as montanhas de Lys. Havia um córrego que passava além da ribanceira e que não fora atingido pelo fogo que consumira sua aldeia. Ele se despiu das roupas para se enfiar nas suas águas frias. Encontrava-se perto do Vilarejo de Sentz, um lugar de exótica beleza e de poderosos guerreiros. Se conseguisse chegar até lá, talvez o aceitassem no seu exército.
Apesar da fome, Will mantinha-se aprumado diante da sua condição de miséria. Não comia há dois dias e sentia os ossos das costelas quando tocava seu abdômen. O mundo que conhecera padeceu sobre os poderes de um ser alado; que com sua sede por sangue ceifou a vida do Rei Rarian – um monarca justo e benevolente. Durante seu reinado houve progresso para os mais pobres e prosperidade para o Clero. Não havia divergências no mundo de Rarian, apenas um nascer do sol de tirar o fôlego.
No Reino de Mythos, Will vivia do plantio de sementes e das demandas da natureza. Mesmo sendo uma criança de dez anos, ajudava seu pai com a terra, aliviando os fardos de sua mãe grávida.
_ Não se preocupe com o trigo, filho. Ainda temos tempo _ dissera seu pai na noite em que a besta fera atacou seu vilarejo. O menino se lembrava da neblina que escondia a lua quando o Dragão chegou.
Naquele dia, Will terminara de recolher o arado. Sua mãe pusera na mesa pão de centeio com guisado de frango. Antes de comerem, fizeram suas orações. O filho elogiou o tempero da refeição, enquanto o marido cortava de um jeito estranho o pão. Foram dormir cedo, já cansados pelo adiantado da hora. Antes de adormecer, Will escutou passos na escada e um arrastar de chinelos.
_ Boa noite, filho.
_ Boa noite, mãe.
Foi a última vez que ouvira a voz da mãe.
***
Pelas serranias de um Reino desconhecido, o barulho ensurdecedor de uma criatura alada. Ela veio de longe, soltando fumaça pelas ventas e levantando folhas secas. Ninguém percebeu sua aproximação, nem mesmo os soldados de Rarian. Apenas o menino franzino que atendia pelo nome de Will despertou assustado, sentindo que as portas do casebre onde morava tremiam com a chegada de Eldarion. Ele desceu as escadas correndo para ver a criatura sumir entre as montanhas. Hipnotizado pela beleza de suas asas, se aproximou do celeiro. A fumaça que se juntava a fuligem vinha de Lotz.
Um silêncio mortiço abraçou as plantações de milho quando percebeu as cinzas. O espantalho feito por sua mãe balançava ao murmurejar do vento. De repente os corvos que se alimentavam das espigas voaram sobre ele, assustando-o. Uma bola de fogo subiu das entranhas das montanhas, transformando à noite em dia. De dentro das chamas veio a criatura cuspindo fogo em Lotz. Suas asas escuras cobriam as dimensões entre os dois picos do Vilarejo, que em movimento, provocavam rajadas de vento.
O dragão escancarou sua bocarra sobre as casas. Seu voo rasante vinha em ondas cadenciadas, levantando poeira e pequenos animais. Bezerros e porcos saciavam a fome da besta fera. Ao se alimentar de carne, Eldarion urrava um som estridente, quase febril. Sem se preocupar com as flechas que eram lançadas pelos arqueiros do Rei, se enfiava na fumaça para ressurgir entre as nuvens. Do topo de uma das montanhas esbravejava seu fogo sobre o vilarejo. Quando perto do fim da noite, bateu suas asas à favor do vento e regurgitou seu grito de vitória sobre Lotz. O menino viu através da fumaça que Eldarion descansava ao pé do seu quintal.
***
Will rastejou pelo mato sem fazer barulho, não desejava despertar a criatura alada. Pensou em voltar para casa, para avisar seus pais. Mas desistiu considerando a situação de sua mãe. Ela estava grávida, e não queria assustá-la com pormenores. A criatura seria morta por suas mãos, como fizera com o lobo que afrontou suas galinhas. Na inocência dos seus 10 anos, Will acreditou ser capaz de resolver o problema com seu machado de cortar lenhas. Pensando que mataria o dragão com golpes nas suas costas, pegou-o no celeiro com as mãos de um caçador.
A besta fera encontrava-se com as asas abertas e levantando poeira com sua respiração. Parecia dormir tranquilo, como um grande réptil que acabara de se alimentar. Will se aproximou devagar, o machado levantado acima da cabeça e a boca espumando pelos cantos abertos. Se o pai estivesse com ele, o compararia a uma vara de pescar que acabara de fisgar um peixe.
As escamas azuis da criatura refletiam a luz mortiça da lua. O menino se aproximou puxando ar para os pulmões castigados pela fuligem. Quando perto da acertá-lo na asa direita, sua cauda bifurcada se levantou acima da sua cabeça. Will caiu para trás, deixando o machado escapar das suas mãos. O Dragão abriu seus olhos incandescentes para encará-lo no vazio da noite. O chão de Mythos tremeu novamente quando se aprumou nas pernas. Will se jogou na plantação, se arrastando pelas folhas empastadas de cinzas. As chamas fizeram com que rolasse para o outro lado, sentindo apenas o quente das labaredas nas costas. O ser alado voou para a lua, descendo num voo rasante sobre a casa do menino de Lotz.
As chamas provocadas por sua bocarra vieram de forma avassaladora. Will correu para o poço, se jogando dentro dele através do seu diminuto buraco. O vento causado pela criatura despencou o barranco do tanque, jogando pequenos tijolinho na cabeça do menino. Sem conseguir alcançar o fundo da cisterna, segurou nas suas paredes. O que conseguia enxergar do lado de fora era o clarão do fogo comendo tudo em sua volta. Vez ou outra conseguia distinguir a cauda bifurcada de Eldarion através do fogo.
Com o passar do tempo ouvia-se apenas o barulho da destruição causada pelo incêndio. Will começou a tremer, chamando pelo nome do pai. A água quente o incomodava, assim como o cheiro da fumaça no poço. As lágrimas teimavam em rolar por suas bochechas, como se estivesse preso num pesadelo ruim. Ao seu redor, apenas os tijolinhos que recobriam a cisterna. O menino de Lotz constatou que precisava sair de lá. O poço começava a desmoronar.
***
Will conseguiu se firmar nas paredes da cisterna. Mantinha a mão firme, grudada nos tijolinhos e nas suas fissuras. Aos poucos foi galgando espaço e alcançando o cume. Ele colocou a cabeça para fora, tentando ver se a criatura encontrava-se por perto. Não havia sinal dela e muito menos o barulho estridente de suas asas. Quando olhou para a plantação de trigo percebeu que na mais alta montanha, nas planícies do castelo de Rarian, apenas as chamas de um fogo bravio. Com os lábios roxos e secos, engoliu a saliva densa que teimava em grudar no céu da sua boca.
Ele pulou para fora encharcado de água e fuligem. A casa que nascera padecia nas chamas, assim como celeiro. O vale em que morava ardia no fogo do Dragão. Seu pranto se sobrepôs ao barulho dos corvos no vilarejo e na montanha que abrigou por anos o castelo do Rei de Mythos. Will se encolheu entre os joelhos com as lágrimas escorrendo pelo rosto .
O garoto de dez anos esperou que o fogo abrandasse para recolher os corpos do seus pais. Não conseguiu conter o choro ao vê-los queimados como bonecos de espiga de milho. Will remoía sua culpa por não os ter acordado. Talvez estivessem vivos se não fosse tão estúpido ao ponto de acreditar que mataria um dragão.
O ódio no rosto de Will fez com que abrisse a cova perto da casa, lugar considerado sagrado para seu pai. Ele os enterrou num buraco fundo, para que os corvos não se alimentassem deles. Ao pé do outro poço, que ficava bem mais afastado do celeiro, viu a matula de couro feita por seu avô. Sem pressa, pegou-a com os olhos curiosos. Havia uma faca de caça e um cantil de água. Ele o encheu com fúria, pegando o rumo de Sentz. Procuraria pelo Exército de Prata nas montanhas de Lyz. E quando contasse para eles a sua história, bolariam juntos um plano para matar a maldita criatura alada.
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