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Os órfãos de Eldarion – Capítulo 2 – O menino alado

Os órfãos de Eldarion

 

Capítulo 2

O menino alado

 

Afundado no córrego até o pescoço, Will se atentou para um cobra que rastejava nas raízes do carvalho. Sentindo a boca salivar, correu para sua matula. Nunca comera uma serpente; mas havia uma primeira vez para tudo, como dizia seu avô.

O menino se esgueirou nu pelo que sobrara da relva. Não havia problema em se sujar de novo, tomaria outro banho se preciso fosse. A cobra pressentiu o perigo, esguichando sua bocarra de dentes poderoso. Num solavanco torto, Will acertou-a com a faca no dorso. Foi o suficiente para fazê-la tombar para lado, dando tempo para um novo ataque. A faca de corte preciso decepou a cabeça da serpente, separando-a do resto do corpo. A animal estrebuchou por alguns segundos, para depois se esticar num último tremor. Will pegou-a com satisfação. Para uma primeira caça, havia se saído muito bem.

Ele limpou a cobra no córrego, se livrando das entranhas. Depois arrancou a pele, colocando-a para secar ao sol (talvez fizesse algo com ela mais tarde, um pequeno porta níquel, pensou). Mais uma vez se enfiou na água. Precisava de outro banho para se livrar daquele cheiro de peixe. 

De volta ao carvalho, procurou por gravetos para fazer uma fogueira. A despeito de sua sorte com a cobra, não fazia a menor ideia de como começar um fogo. Uma ironia e tanto para alguém que acabara de perder os pais nas chamas bravias de um incêndio.

_ Onde você está, Sr. Dragão? Me dê um pouco do seu fogo _ gritou na floresta.

Apenas o barulho dos corvos foi ouvido por Will. Ele suspirou profundo. Comeria a serpente crua mesmo.

Quando perto de destroçá-la com os dentes, escutou passos vindo do mato.

_Ei, você! _ Alguém falava com ele. _ Te dou fogo se me der um pedaço dessa cobra.

O menino de Lotz escancarou o queixo em um o maiúsculo quando ouviu a voz. Mas que depressa se colocou de pé com a faca e a cobra nas mãos.

_ Quem é você? O que deseja de mim?

_ Sou como tu e tenho fome. Posso fazer fogo se desejar cozinhá-la. Essa serpente é grande, não vai conseguir comê-la sozinho.

_ Eu posso querer guardar um pedaço para depois.

_ Os répteis são traiçoeiros para o estômago. Precisa do fogo para limpar os seus vermes.

_ O que são répteis?  

Ele ouviu um suspiro do outro lado da mata.

_ Deixa para lá. Posso aguentar um pouco mais.

Os passos se afastaram para longe do córrego.

_ Espere! _ Gritou Will guardando a faca. _ Eu te dou um pedaço se fizer fogo, claro.

Um menino com asas saiu detrás da árvore. Will esbugalhou seus olhos úmidos de jabuticaba quando o viu. Nunca vira nada mais bonito em toda sua vida.

***

 _ Quem és tu? _ Perguntou o menino de Lotz.

 _  Sou Banshee. Onde estão suas asas?

 _ Eu não tenho asas. Ninguém por aqui têm asas, apenas os pássaros.

 _ Isso é por demais estranho _ o menino olhou para a cobra. _ Vamos ou não comê-la?

Will assentiu com a cabeça.

O menino sentou ao pé da fogueira com a criança alada esfregando duas pedras. O fogo se alastrou pelos gravetos através de suas faíscas. Por alguns minutos ficaram calados, ouvindo apenas o barulho das labaredas asando a crobra.

_ De onde você veio? _ Perguntou Will para Banshee.

_ De terras acima dos mares.

Will franziu a testa. Havia terras depois dos mares?

_ Nesse lugar todos têm asas?

_ Nem todos. Apenas os Etéreos de Primeira Classe.

A conversa intrigava o menino franzino de Lotz.

_ Você ainda não me disse seu nome _ perguntou o alado arrancando uma lasca da carne dura da serpente.

_ Sou Will, do Vilarejo de Lotz.

Banshee engoliu seco seu pedaço de carne.

_ Onde estão seus pais? _ Banshee sabia da resposta, mas recusava-se a acreditar.

_ Foram mortos por uma criatura sanguinária. Ela cuspia fogo pela boca e possuía enormes asas. Um demônio com o corpo cheio de escamas.

_ Eldarion é uma criatura milenar de grande poder, Will. Ele não é um monstro.

O menino de Lotz olhou para Banshee com o ímpeto de esganá-lo. Havia fúria no olhar daquele que perdera a família por algo que desconhecia; para uma criatura que nunca vira por aquelas bandas. O povo calmo que conhecia desde o nascimento fora dizimado por um demônio vindo de terras além dos mares. O menino de asas sabia disso, conhecia até o seu nome. Talvez o tivesse trazido com ele quando atravessou as serranias do seu mundo. 

_ O que sabe sobre o Dragão? _ Will não conseguia disfarçar o ódio que sentia do mundo de Banshee.

_ Sei que não fez por mal. É um filhote birrento. Papai veio buscá-lo. Só que ele é tinhoso e se esconde como ninguém nas montanhas. Mas fique tranquilo, Will, meu povo vai pegá-lo mais cedo ou mais tarde.

O menino sem asas deixou que as lágrimas escorressem até seu pescoço. Não quis limpá-las. Que o alado visse o seu sofrimento antes que tentasse novamente defender aquele monstro.

_ Eu sinto muito, Will. Nós vamos pegá-lo, eu prometo.

O órfão de Lotz aprumou seus punhos no rumo do alado. Os dois rolaram pelo mato, um grudado no pescoço do outro.

_ Eu vou matar você e todas as criaturas do seu Mundo!

Will parecia outra pessoa, totalmente transtornado pelas palavras de Banshee.

_ Você fala como se não fosse importante _ ele forçava as asas do alado no chão.  _ Aquele monstro matou minha família.

_ Ele não é um monstro, Will. É apenas uma criança deslumbrada com seu poder.

_Ahh!!

O órfão apertava o pescoço de Banshee. Os olhos de Will transpareciam sua ira. A boca curvada num o maiúsculo ressaltava suas bochechas vermelha.

_ Você trouxe esse monstro até minha casa!

Will gritava em alto e bom som assustando os pássaros nas copas das árvores.

_ Não foi culpa de ninguém. Eldarion apenas aprendeu a voar.

Ele largou o pescoço de Banshee. De nada adiantaria matá-lo. Não era como o Dragão; e muito menos ceifaria a vida de inocentes por causa dele. Depois que o mal fora feito, não havia como voltar atrás. Seus pais estavam mortos, assim como todos na sua aldeia. De que adiantaria para o Senhor da Criação uma alma ceifada pelo ódio? O órfão de Lotz rolou para o lado, chorando com os braços em volta dos joelhos. Banshee sentiu seu coração apertado por saber que Eldarion era o causador de tamanha dor.

_ Eu sinto muito, Will. Sinto de verdade.

_ Deixa para lá. Vou dar o meu jeito.

_ O que pretende fazer? _ O alado esfregava o pescoço. As marcas das mãos do órfão ficaram gravadas nele.

_ Eu vou matar Eldarion.

Os olhos de Will assustaram Banshee.

O menino de Lotz voltou para a cobra. Aquele que podia voar sentou ao seu lado. Sem pedir licença, tomou o que restara da água no cantil. Não voltaram a conversar, apenas saborearam o restante da refeição.

***

Will observava Banshee no córrego. O menino limpava suas asas da lama do mato. Estavam sujas e cheias de fuligem. O órfão imaginou em como seria voar. Talvez lá em cima as coisas fossem mais fáceis, até menos cansativo. Imaginou também o mundo do amigo, ou se ele realmente existia. Provavelmente estava sonhando e quando acordasse encontraria sua mãe na cozinha assando seus  pãezinhos de milho.

_Como é voar? – Perguntou engolindo mais um pedaço de carne.

Banshee olhou para ele com estranhamento. Como explicar para uma criança sem asas a sensação de voar?

_ Para mim é como caminhar. É tão natural como lavar as mãos.

_ Seu Mundo deve ser interessante.

_ Todo Mundo é interessante ao seu modo, Will.

_ Onde está seu pai?

_ Caçando Eldarion.

_ Seu pai é o Rei  do seu Mundo? Você é o príncipe herdeiro?

Banshee franziu a testa novamente. As necessidades humanas são deveras espantosas.

_ Creio que sim.

_ Por que está aqui e não com teu pai? Tem medo de Dragões?

Banshee gargalhou. Gostava da inocência torpe do menino.

_ Eu não tenho medo de nada, Will.

O órfão também sorriu pela valentia descabida do  menino. Ele não quis prolongar a prosa, tinha coisas para fazer. Na velha matula do seu avô guardou sua faca e o que restara da cobra. Banshee já estava ao lado dele quando pegou o rumo da montanha.

_ Para onde vais, Will?

_ Para as Montanhas de Lys – a matula machucava seu ombro direito. _ Vou me alistar no Exército de Prata em Sentz. Tenho certeza que quando contar minha história vão matar o Dragão.

Banshee suspirou profundo. Que seu pai resolvesse depressa esse imbróglio. Não perderia seu tempo tentando convencer o povo daquela terra que aquilo era suicídio.

_ Posso levá-lo até lá – Banshee pegou Will no colo. – Não se preocupe comigo, tenho a força de mil exércitos de prata.

O menino das terras além dos mares estendeu suas asas para planar sobre a mata. Will agarrou seu pescoço quando sentiu o vento no rosto e o farfalhar das folhas. Como os olhos fechados, nem teve tempo de reclamar. Sabia que estava voando, podia ouvir o som das asas de Banshee batendo contra o vento.

_ Abra os olhos, Will – gritou nos seus ouvidos. – Assim não tem graça.

O órfão de Lotz sentiu um pequeno solavanco quando suspenso apenas por um dos braços. Estava voando sobre as nuvens, sustentado pela brisa. Ele olhou para baixo e viu os vales rochosos e o leito dos rios. O mundo era tão diminuto quando visto de cima, pensou.

Os meninos voaram sobre as serranias, com Banshee se esquivando das montanhas e morretes. Quando viu o mar, desceu num rasante arrastando os pés de Will pelas águas. O garoto gargalhava pelas cócegas que recebia nas panturrilhas. Por um tempo se esqueceu de seus pais e do fardo causado por Eldarion. O alado ficou feliz em mostrar para o órfão de Lotz um pouco do seu mundo.

***

Will e Banshee viajaram cerca de uma hora sobre as Terras Alagadas. Banshee parecia não se cansar pelo peso de Will. Ele não mentiu quando dissera que tinha a força de mil exércitos. Quando perto das montanhas de Lys, o menino de Lotz sentiu um nó no peito, como se algo apertasse seu coração. Via-se outros como ele caminhando pelo mato, indo em direção ao Vilarejo de Sentz (tão cabisbaixos quanto o órfão que voava com um anjo).        Banshee desceu perto de uma sombra, entregando a matula para Will.

_ Não posso ir mais longe que isso. Seria uma imprudência.

_ Tudo bem, posso caminhar até lá. Isso não vai me matar.

_ São muitos os órfãos. Preciso conversar com meu pai sobre isso.

_ Não se preocupe, Banshee. Vamos matar o Dragão.

O menino alado deu de ombros para a falácia de Will. Conhecia Eldarion e  sua rebeldia. Apenas os Etéreos conseguiriam colocar freios nele.

_ Deve convencer o seu povo a não enfrentá-lo. Eldarion não é como os outros dragões. É insurgente e de difícil trato.

_ Seu povo vai ouvir falar de mim quando eu matar aquele maldito monstro.

_ Nosso povo presa pela paz, Will. O que Eldarion fez não pode ser remediado, eu sei. Mas não se apaga o fogo com trovoadas. É preciso deixar que a chuva caia.

Banshee planou sobre as Montanhas de Lys sem se despedir de Will. Ele sumiu nas nuvens, deixando o menino intrigado. Por que não se despedira dele? Tentaria impedi-lo de matar o Dragão? Que não fosse besta em fazê-lo. Nada na terra ou nos céus o faria desistir de ceifar a vida daquele ser  maldito.

***

O menino de Lotz andou com os outros órfãos. Nenhum deles se atreveu a olhar para os lados. Mantinham as carrancas sisudas, como se os fardos da vida fossem pesados demais. E eram. O mundo que conheciam fora dizimado pelo fogo de um dragão. Nada mais justo que se juntassem para vingar a morte de seus entes queridos. Muitos pensavam como Will, por isso caminhavam para alcançar os muros de Sentz antes do anoitecer.

As Montanhas de Lys sombreavam a mata ao redor do vilarejo. Will sentou perto de uma moita de capins, buscando na matula o que sobrara da cobra. Um garotinho de aproximadamente cinco anos olhou para ele. A fome dilacerava suas entranhas, não deixando que desviasse o olhar da serpente torrada e seca. Will deu um naco para ele, que comeu com a ferocidade de um porco.

_ De onde você veio? _ Perguntou quando percebeu que o garotinho recém-saído das fraldas retomava seu rumo.

_ De Terra Morta.

Will escancarou seu queixo quando escutou a resposta do menino. Terra Morta ficava do outro lado de Lotz, bem acima das terras alagadas. O Dragão chegara tão longe assim? Maldito ser alado! Se deixassem destruiria toda Terra de Mythos.

_ Pretende se alistar no Exército de Prata?

O garotinho assentiu com a cabeça.

Will se aprumou ao lado dele e começou a caminhar. Havia um bom pedaço até os portões de Sentz. Se acelerassem os passos, chegariam antes do anoitecer.

Os portões de prata que circundavam o Vilarejo alcançavam o topo das serranias. Will nunca os vira pessoalmente, apenas conhecia suas histórias através das conversas com o avô. O muro que  mantinha o povoado livre de invasores tinha uma cor esverdeada, com uma mistura de musgo e lodo. Os órfãos se amontoaram a alguns metros do portão, esperando que alguém os deixassem entrar. Não demorou para que fossem abertos.  O barulho de seu ranger fez com que Will tapasse os ouvidos. Um homem alto, e da velha guarda dos guerreiros de prata, se colocou na entrada. Trazia nas mãos um pedaço de papel.

_ Façam uma fila, filhos. Preciso saber o nome de cada um de você e de onde vieram.    

Houve um começo de rebelião quando os que chegaram por último tentaram empurrar os da frente. Muitos foram jogados para trás ralando os joelhos nas pedras. Dez homens deixaram seus postos de combate para ajudar na organização da fila.

_ Calma, crianças. Ninguém será esquecido. Sabemos por que vieram. Então acalmem os seus corações.     

Will não quis encrenca, esperou que os Guerreiros de Prata organizassem a fila. Aos poucos foram colocados para dentro, sem que percebessem o adiantado da hora. Quando perto do guerreiro da velha guarda, esticou o pescoço para ver o que tinha além do portão.

_ Qual é o seu nome, criança?

_ Will. Quero dizer, William.

_ Decida-se, garoto: Will ou William?

_ Will.

_ Muito bem, Will. De onde veio?

_ De Lotz.

_ O que aconteceu por lá?

_ Um dragão matou minha família.

O homem velho franziu a testa.

_ Como sabe que foi obra de um dragão?

_ Pelo fogo que saía de suas ventas e garganta.

O Guerreiro da velha guarda gargalhou.

_ Muito bem, Will. Muitos não chegariam a essa conclusão.

O menino não gostou da observação. Sentiu-se estúpido. Uma criatura alada que coloca fogo pela boca só poderia ser um dragão. Não havia novidades na fala de Will. A despeito disso, não contaria sobre Banshee. Não acreditariam mesmo.

_ Entre menino de Lotz. Procure pelo refeitório. Precisa de uma boa canja.

Quando dentro de Sentz, deixou cair sua matula. Por mais que o avô tentasse convencê-lo com palavras, nada se comparava ao que acabara de ver. Seu avô não estava caducando como dissera seu pai.  O Exército de Prata não era fruto da imaginação de um velho rabugento. Ele existia e treinava sobre sua cabeça agora.

Enya – may it be

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