EPISÓDIO X
O QUE VEM PELO ATALHO
*
– Antônia, por favor, me ajuda! – a mão ensanguentada de Henrique se estendia na direção do corpo trêmulo de Antônia.
Atrás dele, uma forma acinzentada se erguia, longa e feroz, empunhando uma barra de ferro.
– Eu não quero morrer, eu não quero… – a suplica de Henrique foi interrompida por um forte golpe na cabeça, que desabou no chão.
Sem vida.
Antônia se sentia impotente, incapaz. Sua respiração castigava os pulmões, era cada vez mais difícil permitir que o ar entrasse em seu corpo. A forma acinzentada ergueu outra vez a barra de ferro e golpeou Henrique nas costas, na cabeça, nas pernas.
O sangue dele espirrava em Antônia, a cobrindo de pequenos círculos vermelhos e quentes.
– Antônia, acorde!
Um relâmpago clareou o seu sonho e Antônia se viu de volta à realidade. Jurema estava em sua frente segurando um longo vestido amarelo-ouro.
– Fiquei em dúvida sobre a cor, não sei se você é chegada no amarelo… mas, não sei, me parece bem jovial.
Antônia sentou-se na cama e descansou o corpo na cabeceira.
– Hoje é o seu primeiro dia de – Jurema se conteve, pensou um pouco e, logo depois, sorriu – treinamento. Vamos, levanta!
A moça coçou os olhos, bocejou e olhou pela janela, cuja cortina já havia sido aberta para permitir que pequenos raios de um sol forte iluminassem o quarto.
– Sua primeira experiência política será em uma inauguração – Jurema pôs calmamente o vestido sobre a cama e sentou-se ao lado dele. – Vamos entregar uma casa de farinha comunitária aos moradores do Povoado de Pé de Serra.
– E por que eu preciso ir?
– Como eu disse: treinamento. As pessoas não vão te conhecer se você ficar presa nessa casa o tempo todo.
– Mas eu ainda não decidi se…
– Pense nisso como uma amostra grátis – Jurema não deixou que ela terminasse de falar. – Tenho certeza de que isso vai te ajudar a decidir.
Antônia limpou o rosto com as palmas das mãos. Olhou para o vestido.
– Eu gosto de amarelo.
– Era a cor preferida de seu tio Edmar – comentou Jurema taciturnamente.
– Você sente falta dele?
Jurema virou-se para olhar no fundo dos olhos de Antônia. Parecia perdida em busca de uma resposta.
– Já se passaram tantos anos – disse, por fim. – Mas, o vazio parece que nunca diminui.
– Pelo menos você soube o que é ter um pai – Antônia olhou outra vez pela janela, sua voz estava tomada de melancolia. – E, de certa maneira, uma mãe.
– Laurinda sempre amou mais o papai do que a mim.
– Mas ela te ama, não é?
Naquele momento, Antônia se sentia uma criança frágil, indefesa, numa procura constante por afeto e carinho.
– Do jeito dela, talvez. – Jurema se aproximou da prima. – Você fala isso por causa da sua mãe?
– A Salete nunca foi exatamente uma mãe para mim. Você, a Geralda, até a Laurinda foram mais mãe para mim do que ela.
Jurema não conseguiu esconder a surpresa.
– Eu espero que você não me culpe pelo que aconteceu com a Salete.
– Você realmente acha que ela assassinou o Coronel?
Jurema soltou o ar dos pulmões lentamente e inspirou outra vez. A expressão inquisidora de Antônia a fez sentir certo receio em respondê-la.
– Acha?
– Eu fiz o que fiz para o bem dela, Antônia.
– Não perguntei isso.
– Eu não consigo pensar em uma resposta para a sua pergunta.
– Era de se esperar.
– Como assim?
Antônia saltou da cama e pegou o vestido.
– Vou tomar banho e me vestir.
Jurema manteve-se calada, abstraída, enquanto Antônia caminhava para fora do quarto.
…
– Vera, venha cá! – berrou o bom e velho Olavo Gusmão.
Sua esposa, que perdera todo a aura hippie e, desde a prisão do seu filho, vivia em função de cuidar do marido doente, apareceu prontamente na porta do quarto como se já estivesse esperando ser chamada.
– Esse travesseiro me deixa desconfortável, eu já te disse. E eu estou com fome – Olavo reclamou entredentes.
Sem se manifestar, Vera caminhou até a cama e pegou o fino travesseiro da mão do marido.
– Já estou terminando de preparar o jantar – disse.
– Eu não aguento mais ficar nessa cama, Vera – lamentou Olavo.
– É para o seu próprio bem, querido.
– A minha cidade está entregue aos Pinheiro.
– Olavo, se você morrer não poderá fazer nada para impedi-los de continuar tratando Timbaúba como a casinha da árvore do quintal deles.
– Eles prendem o meu filho sem nenhuma prova e o que eu faço para tirar o Quim da cadeia? Sofro um infarto!
Vera respirou fundo apertando o fino travesseiro contra seu esguio corpo.
– Você não precisa se culpar tanto assim, Olavo – disse. – Nosso corpo reage a notícias ruins de diferentes maneiras.
– Não me venha com essa sua conversinha quântica! – resmungou Olavo.
Vera não o respondeu, apenas deu de costas e foi saindo do quarto.
– Desculpa – Olavo sussurrou.
Vera abriu a porta, assentiu fracamente e saiu do quarto, deixando o bom e velho Olavo em sua cama, impassível, em pedaços e sem muita força para tentar se reconstruir.
…
– É sempre um prazer vê-la, Jurema.
A prefeita estendeu o braço para apertar a mão do homem.
– Igualmente, Cícero.
O alto e sorridente homem, com cor de mel e olhos escuros, sorriu de volta para a prefeita.
– Pé de Serra fica extremamente feliz de recebe-la e, sobretudo, por saber que a senhora não vem aqui apenas em época de eleição.
– Estou apenas fazendo o meu trabalho, Cícero.
– A gente sabe que não é assim que a banda toca em outros lugares, prefeita.
– Como dizia o meu avô, eu não sou todo mundo – Jurema olhou por cima do ombro dele. – Com licença, preciso cumprimentar o meu povo.
– Precisaremos conversar, aliás – disse Cícero. – Soube de um burburinho que surgiu dia desses lá na Câmara e, como presidente da mesa diretora em exercício, preciso tirar a prova dos nove e saber se é verdade. Ou não.
– Burburinho? – Jurema inclinou levemente a cabeça para o lado.
– Não sei se esse é o melhor lugar para tratarmos desse assunto.
– Eu não gosto, e você sabe disso, de rodeios, Cícero.
O presidente da Câmara de Vereadores soltou o ar dos pulmões, olhou para os lados e, em seguida, encarou Jurema.
– Silvero tá pensando em renunciar ao cargo?
A prefeita fez cara de quem não entendeu.
– Se ele fizer isso, Jurema, a política de Timbaúba vai virar um caos – continuou Cícero.
– Eu realmente não faço ideia do que você esteja falando, Cícero.
Dito isso, Jurema contornou o homem e caminhou até um pequeno agrupamento de homens e mulheres trabalhadoras da terra, que logo se animaram ao vir a prefeita se aproximando.
– Dona Jurema, minha família sempre teve com a senhora! – gritou um.
– O que essa cidade seria sem Jurema? – disse outra.
– Pobrezinha, tanta coisa ruim pra enfrentar e nunca que abaixa a cabeça – comentou uma terceira.
Jurema sorriu para seus eleitores, apertou algumas mãos, deu alguns abraços, e seguiu para a frente da pequena casa de família comunitária pintada com as cores da bandeira de Timbaúba: amarelo e branco. Ali, Camila e Antônia a esperavam.
– É sempre uma alegria vir aqui – começou Jurema. – Estava até comentando no carro com a Camila, nossa secretária de comunicação, e a Antônia, minha prima e uma pessoa que vocês devem conhecer, que Pé de Serra sempre me recebe de braços abertos e com um enorme sorriso de orelha a orelha no rosto.
Pausou para os aplausos.
– Vocês sabem que esse ano não tem sido fácil: a morte do meu avô, nosso vereador, Juca Pinheiro, que me levou a desistir de concorrer ao Congresso Nacional, foi só um dos obstáculos enfrentados por mim e por minha gestão – continuou. – Como sempre, somos constantemente alvos de ataques, calúnias, mentiras das mais variadas. Eles tentam nos calar, nós gritamos cada vez mais alto!
O pequeno e fiel público ovacionou a prefeita.
– E a cada dia que passa, a minha vontade de melhorar Timbaúba só aumenta – Jurema se virou para a casa de farinha comunitária. – Essa é uma pequena prova. Eu sei, eu sei que não resolverá todos os problemas da nossa comunidade, mas é um bem necessário para gerar renda e emprego para os filhos de Pé de Serra! – Jurema se voltou para o público e seus olhos procuraram uma pessoa em específico. – Agradeçam, sobretudo, ao Cícero Amaral, líder dessa terra que eu tanto amo e zelo.
Cícero levantou o punho fechado para o ar e sorriu.
– Se me permite, Jurema – ele disse. – Nada disso seria possível sem você e sua família a frente. Sem os Pinheiro, essa cidade seria outra!
Apesar dos aplausos do público presente, Jurema conteve-se a sorrir.
…
– Pode entrar.
Vera Gusmão se afastou da porta para que o homem entrasse em sua casa.
– Olavo está no quarto, última porta à direita – disse. – Já, já, levo um cafezinho pra vocês.
– Ele tá bem, Vera? – perguntou o homem.
– Do que estava, seu Ribeiro, tá bem melhor.
– Você não imagina o quanto eu queria que nada disso tivesse acontecendo – lamentou o homem. – E pode me chamar de Tião, já nos conhecemos há mais de trinta anos!
Vera tentou, em vão, sorrir.
– Última porta à direita, certo?
A mulher assentiu. Tião Ribeiro, um homenzinho pequeno, rechonchudo e barbudo, sempre usando um paletó preto com uma camisa de botão branca, virou-se para ir até o quarto.
– Olavo!
O bom e velho sentou-se, com muita dificuldade, na cama, resmungando.
– Já não aguento mais esse quarto, Tião.
– Dias de cão, meu amigo, dias de cão – respondeu o homenzinho. – Porém, venho com boas-novas.
Olavo animou-se.
– Diga!
– Prepara esse coração aí – brincou Tião. – Silvero quer renunciar ao mandato – anunciou. – Não é nada confirmado, mas, você sabe, toda mentira tem um fundo de verdade.
Olavo franziu o cenho.
– Renunciar?
– Com todas as letras.
– Por quê?
– Só Deus sabe.
– Não pode ser algum tipo de plano da Jurema?
– O que ela ganharia com isso?
Olavo pensou por um instante.
– Cícero! – exclamou. – Todo mundo sabe do casinho que eles tiveram quando eram jovens e, agora, ele é presidente da câmara.
– Ele só assumiria se a Jurema precisasse se ausentar ou renunciasse também, o que nós dois sabemos que não vai acontecer – constatou Tião. – Então, Olavo, não acho que esse seja o plano dela.
Olavo meneou a cabeça.
– Mas não faz sentido, Tião.
– Talvez não tenha que fazer mesmo porque talvez a Jurema não tenha nada a ver com isso.
– Seria um atestado de burrice da parte dele – disse Olavo. – Não que eu considere Silvero um Einstein, mas, comprar uma briga dessas com aquele povo a troco de quê?
– Desde que Juca morreu, ele parece um pouco aluado.
Olavo se encheu de garras.
– Não me toque neste assunto, Tião!
O homenzinho ajeitou o paletó que lhe apertava os ombros.
– É só um comentário, Olavo. Só um comentário, sem intenção de magoar.
Olavo ajeitou-se na cama.
– Descubra se esse boato é verdade.
Tião confirmou com a cabeça.
– Agora!
– Mas a Vera vai…
– Tião, mexa-se!
O homenzinho bufou e deu de costas, quase derrubando a bandeja com café e biscoitos das mãos de Vera.
– Perdão!
E foi-se embora.
…
– Como assim, Jurema?
Camila nunca duvidou da capacidade do ser humano de ser mau. Não apenas mau: monstruoso.
– Silvero está tentando me fazer de idiota, Camila – afirmou Jurema com veemência. – E ninguém me faz de besta!
– Isso não é um pouco… demais?
Desde que chegara em Timbaúba, já havia presenciado mais coisas ruins do que desejava ver em toda a sua vida.
– Situações drásticas pedem medidas drásticas.
– E por que eu preciso participar disso?
No início, sentia-se enjoada ao lembrar. Seu corpo bambeava, o cérebro girava, o estômago embrulhava.
– Você está preocupada com o quê?
– Que isso seja um pouco radical demais.
Certo dia, Jurema lhe contou a verdade sobre a morte do Coronel e suas suspeitas de quem seria o responsável.
– Camila, o jogo político é assim. Acostume-se.
Naquele dia, ela não dormiu. Não porque se sentiu enojada ou com o estômago embrulhado.
– Jurema, isso pode virar contra nós!
Mas porque estava se sentindo estranhamente insensível. Era como se toda a humanidade tivesse sido sugada de seu âmago.
– Nós não estamos em Salvador, Camila!
– Isso é um absurdo em qualquer lugar!
Naquela noite, Camila se lembrou dos versos de um poeta que ela costumava ler na universidade
A história de um homem é sua pista falsa:
estudam meus sonhos, meus passos, meus mapas e dizem quem sou inutilmente.
Inutilmente.
Porque sou sempre o que vem pelo atalho.
– Camila, esse é o seu momento de escolher em qual lado você está.
Jurema olhou no fundo dos olhos da secretária, apoiando sua mão sobre a sua mesa.
– E você sabe quais são os perigos de ficar contra mim.
*
O poema deste capítulo é de autoria do poeta baiano Roberval Pereyr e se chama “Desmentido”.
Não percam na próxima terça, 11 de maio, às 22h, o próximo episódio de
A CANDIDATA