EPISÓDIO IX

“SUCESSORA”

 

*

– Minha sucessora!

Antônia sentiu o peso de todo o seu corpo puxá-la para trás. Ela caiu no sofá, absorta. Nunca pretendeu permanecer em Timbaúba por mais tempo do que o realmente necessário, não se via carregando o seu Sobrenome pelas ruas, agindo como se a cidadezinha fosse o quintal de sua casa. Respirou fundo. A voz firme de Jurema cambalhotava pelo seu cérebro, girando e girando, cada vez mais pesada, cada vez mais deixando-a com vontade de gritar.

– Timbaúba está em nosso sangue, Antônia – Jurema sentou-se ao lado da prima. – Não existe a família Pinheiro sem Timbaúba e nem Timbaúba sem a família Pinheiro.

A prefeita segurou as mãos da frágil Antônia.

– Olha, eu entendo que é muita informação para você processar. Não é fácil assumir um legado, mas você sabia que, mais cedo ou mais tarde, chegaria o seu momento.

E você não pode se negar.

– Eu estarei ao seu lado te apoiando, te guiando, afinal de contas ainda temos dois anos até as próximas eleições – continuou Jurema. – Vamos te transformar no novo rosto político da região, a Camila até já pediu ao amigo dela, aquele cineasta de Cachoeira, para vir aqui e nos ajudar em estratégias e campanhas de marketing. Você não estará sozinha.

A voz de Jurema soava distante para Antônia. Era como se ela estivesse assistindo aquela cena do alto, bem lá de cima, vendo duas desconhecidas conversarem.

– Silvero também pode te ajudar – a prefeita suspirou. – Nos últimos tempos, eu reconheço, ele não está sendo o Silvero que nós conhecemos. A morte do vovô o afetou mais do que eu podia imaginar.

Com os olhos vidrados na parede, Antônia se sentia uma espectadora da sua própria vida.

– Antônia, você está me ouvindo?

Por um instante, Jurema pensou que a prima havia se transformado em uma versão ainda mais perturbadora de Salete.

– Sim, prima.

Jurema ajeitou um cacho de cabelo que lhe cobria o olho direito e sorriu para Antônia.

– Entendeu tudo o que eu disse?

– Preciso de um instante sozinha.

– Para pensar no assunto?

– Também.

– Sabe que não estou te obrigando, não é?

– Imagino.

– Suba e descanse. Não tenha pressa em me responder.

– Não terei.

– O vovô teria muito orgulho de você se estivesse aqui.

– Você acha?

– O sonho dele é que Timbaúba não se perca dos Pinheiro.

– Posso ir?

– À vontade. Estarei na prefeitura, caso precise.

– Qualquer coisa te ligo.

– Eu também tenho muito orgulho de você. Independente da sua decisão.

– Obrigada, prima.

– Te vejo no jantar.

Antônia tentou desenhar um sorriso nos lábios.

– Não precisa se assustar, Antônia.

– É mais responsabilidade do que eu acredito que consigo suportar.

– Nunca duvide de seu potencial.

Antônia umedeceu os lábios e respirou fundo.

– Vou subir.

Jurema assentiu. Levantou-se e sorriu para a prima antes de sair pela porta da frente.

Antônia assustou-se ao sentir a mão de Laurinda tocar-lhe o ombro.

– Você sabe que se aceitar ser transformada na sucessora de Jurema estará vendendo a alma ao diabo?

– Eu tenho alguma escolha, Laurinda?

– Talvez.

– Qual?

– Por onde anda aquele seu namoradinho misterioso?

Antônia engoliu em seco. Não falava com Álvaro desde que ele foi embora, havia três meses.

– Como ele poderia me ajudar?

– Ele não é daqui, é?

Antônia negou com a cabeça.

– Bom, isso significa que você tem para onde ir.

Laurinda olhou no fundo dos olhos de Antônia, que jurou ter sua alma invadida pela viúva.

– Preciso descansar um pouco, Laurinda.

– Não deixe que a minha filha ocupe seus pensamentos e te deixe pensar que, no final das contas, não há outra escolha que não seja seguir os passos do Coronel.

Antônia sentiu um calafrio lhe subir pela espinha. A mesma sensação que tinha quando estava na presença do avô. Engoliu em seco.

– Laurinda, por favor, eu preciso descansar.

Ao olhar para a viúva, notou os seus olhos assustados.

– Você também sentiu, Antônia?

A moça sobressaltou-se.

– O quê?

– Ele está aqui. Está. Eu sinto o cheiro de enxofre, a sensação de que o mal está por perto.

– De que você está falando, Laurinda?

– Do Coronel.

Uma reprodução cubista de “Retirantes”, do Portinari, despencou da parede e o vidro espatifou-se no chão, espalhando cacos por toda a sala.

Antônia gritou de susto.

– Ele sabe que não o queremos aqui, Antônia, por isso que continua entre nós.

A frieza de Laurinda assustou a jovem.

– Você tem a oportunidade de ir embora, não a desperdice!

– Camila, querida, não seja confusa – Domingos ajeitou a sua boina cinza. – Quais são os objetivos da Jurema com isso?

– A manutenção do poder, não é meio óbvio?

Domingos franziu o cenho.

– A democracia ainda não chegou em Timbaúba?

– Em curtos passos lentos.

Ambos riram. Um raio de sol se estendia por todo o gabinete da prefeita e, nele, era possível ver a poeira dançando no ar.

– Então, a prima da Jurema será a próxima prefeita da cidade? Confesso que acho essa atitude muito ambiciosa e um pouco arriscada. O povo não conhece essa Antônia pelo visto, a transferência de votos será difícil.

– Por isso a Jurema quer começar a campanha o quanto antes.

– E como ela quer fazer isso exatamente?

– Esse será o seu trabalho: transformar a Antônia em uma das maiores lideranças políticas do oeste baiano.

Domingos balançou a cabeça.

– Ou seja, eu preciso transformar a gata borralheira em alguém que as pessoas confiem o poder de cuidar do destino da cidade.

Camila bebeu o último gole de água que estava em seu copo plástico.

– É por aí…

– Já até pensei em algumas influências, veja só: adoro a Katniss Everdeen, de Jogos Vorazes, conhece? Ela surge do nada e se transforma em um símbolo de resistência para o povo.

– Hum…

– Uma personalidade forte, decidida, firme, confiável. Uma mulher de fibra – Domingos se inclinou em direção a Camila – você sabe como o brasileiro é, cá para nós, muito me surpreende que tenham eleito uma mulher para a presidência.

– Esqueceu de que eu vivo essa realidade vinte e quatro horas por dia, amigo? – Camila levantou-se. – Preciso de mais água.

– Pegue um pouco para mim também, secretária!

Os dois riram outra vez. Camila conteve-se para não demonstrar a sensação de superioridade que sentia desde que Jurema havia a nomeado a secretaria de comunicação da cidade, após a partida repentina de Miguel Sampaio.

– Gelada ou natural?

– Misturada.

Ao abrir a porta, Camila deu de cara com Silvero. Os olhos do vice-prefeito estavam profundos, vermelhos, envoltos em uma bolsa roxa. Cara de quem não dormia há dias, semanas talvez.

– A Jurema está? – perguntou Silvero.

– A caminho – respondeu Camila.

– Preciso conversar com ela.

– Se for muito urgente, espere-a aqui – Camila sentiu o cheiro de álcool no hálito de Silvero. – Ela chega em instantes.

– Licença.

O vice-prefeito entrou e sentou-se na poltrona ao lado de Domingos, que olhou para Camila com ar de quem não estava entendendo absolutamente nada da situação.

A secretária saiu do gabinete, deixando os dois a sós.

Um silêncio constrangedor se acomodou entre Domingos e Silvero. Camila não demorou muito com os copos de água. Entregou um ao amigo e bebeu o seu em apenas um gole. Fazia um calor desértico em Timbaúba, apesar de o inverno se aproximar.

– Então, Silvero, animado para o São João? – questionou Camila.

Silvero parecia imerso em seu universo particular. Domingos ajeitou-se em sua poltrona.

– Adoro festas juninas em cidades pequenas – observou o cineasta. – Esse ar hospitaleiro me atrai, sabe? As famílias reunidas em volta da fogueira, milho assado, sinto falta disso.

– Falta? – pontuou a secretária.

– Eu cresci em uma cidade do interior, lá no sul da Bahia, Coaraci. Perto de Ilhéus – Domingos espantou um mosquito que se aproximava de seu rosto. – Por isso nunca me dei com Salvador, grande demais, gente demais. Daí me descobri e redescobri em Cachoeira: cidade pequena, pacata, porém com aquele toque de história, cultura, a mesma coisa de Ilhéus.

Camila meneou a cabeça, sorrindo.

– Também nunca me dei muito bem com Salvador – complementou Camila. – Era sufocante.

– Ela vai demorar? – Silvero grunhiu, como quem acabara de acordar de uma longa noite de sono.

Domingos o olhou de esguelha com um misto de preocupação e medo.

– Não – respondeu a secretária.

O silêncio que se fez entre os três foi rompido com a porta do gabinete sendo aberta. Ao ver Jurema, Silvero saltou da cadeira e voou em sua direção.

– Precisamos conversar, Jurema.

– Bom dia, Silvero! Há quanto tempo não nos…

– A sós – atalhou Silvero.

– Não há nada que eu precise esconder da minha secretária e do assessor dela – retorquiu Jurema.

– A sós – foi a palavra final de Silvero.

Camila e Domingos se entreolharam.

Jurema levantou uma sobrancelha e fitou Silvero.

– Um mês, Silvero – bradou Jurema. – É o tempo que você não aparece aqui na prefeitura. Timbaúba está há um mês sem vice-prefeito. Você parou para pensar que foi eleito para esse cargo?

– Eu prometo que não tomarei mais tempo do que o necessário – Silvero levou as mãos ao rosto.

Parecia estar prestes a ter um ataque de nervos.

– Camila, Domingos, conversamos mais tarde.

Os dois saíram cuidadosamente do gabinete, deixando Jurema e o vice-prefeito sozinhos.

Silêncio.

– Eu não sou mais a mesma pessoa depois do… – começou Silvero.

– Do que?

– Da morte do Coronel.

– Não sei porque isso te afetou tanto.

– Você sabe, Jurema. E deveria estar pior do que eu.

– Não sou frágil.

– Ele estava… – o vice-prefeito não conseguiu completar a frase. Uma ânsia de vômito fechou-lhe a garganta.

– Morto?

– Nem no açougue fazem aquilo, Jurema.

– Não sei do que você está falando. O meu avô infartou – Jurema encarou Silvero com um olhar cínico. – Pessoas velhas morrem.

Silvero sentiu o chão fugir de seus pés. Quis apoiar-se na mesa e, ao mesmo tempo, não quis demonstrar ainda mais fraqueza diante de Jurema.

– Não vim aqui para discutir esse assunto – prosseguiu. – Tenho uma notícia para te dar.

A prefeita inclinou levemente seu corpo em direção ao homem a sua frente.

– Eu renuncio o meu mandato de vice-prefeito de Timbaúba.

– Deus tem um plano para você, irmão!

Quim tentara não rir, quase em vão. Um risinho frouxo, que mais pareceu um gemido, escapou dos seus lábios. Um dos seus dez companheiros de cela, um homem de estatura mediana, corpo quase coberto de tatuagens tribais e recém-convertido ao cristianismo, alguns meses após ser preso por mais homicídios do que Quim Gusmão gostaria de saber, apontou a bíblia em sua direção.

– Aceite os planos de Deus para a sua vida! Você não vai se arrepender, isso eu te garanto – bradou o homem.

Quim sabia que acreditar em uma força divina, cuja maior capacidade era oferecer uma vida após a morte, poderia diminuir o sofrimento de passar as próximas três décadas dividindo uma cela pequena e quente com outras dez, talvez mais, pessoas.

Mas ele não conseguia acreditar.

Até poucos meses atrás, Joaquim Gusmão costumava frequentar assiduamente a missa do Padre José Amâncio, pároco de Timbaúba nos últimos dez anos. O Padre Amâncio, como era conhecido, tornou-se um grande amigo da família Gusmão e costumava ir, nas tardes de sábado, tomar um café com Olavo e discutirem sobre Deus, o Diabo e a vida. Quim acompanhava algumas dessas conversas quando não estava ocupado na padaria. Admirava a eloquência e a sabedoria do Padre Amâncio, seu domínio na Filosofia do cristianismo e seu grande apreço por causas sociais; não à toa, a Paróquia de Timbaúba mantinha um projeto que oferecia cestas básicas aos moradores menos favorecidos, projeto este apoiado em grande parte pela padaria da família Gusmão.

Porém, naquele momento, Quim considerava tudo aquilo – Deus, o Diabo, o Cristianismo – uma grande idiotice. Perda de tempo. Que tipo de deus permitiria que um de seus filhos fosse preso, acusado de um crime que não cometeu?

Seu álibi de nada adiantava? E por que transferi-lo para um presídio de segurança máxima em Serrinha?

Tantos porquês.

Quim se sentia sufocado por eles. Uma mão invisível se fechara em torno do seu pescoço e insistia em permanecer ali. Imóvel. Se fechando mais a cada novo “por que”, cada nova dúvida que surgia.

– A palavra de Deus diz, irmão, em segundo Coríntios, capítulo 1: “Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, Pai das misericórdias e Deus de toda consolação, que nos consola em todas as nossas tribulações, para que, com a consolação que recebemos de Deus, possamos consolar os que estão passando por tribulações.” – o homem de média estatura falava de uma maneira afetada, dando voltas pelo pequeno espaço disponível na cela, segurando a bíblia aberta com a palma de suas mãos.

Quim se deitou em sua cama, a parte de cima de uma velha beliche feita de concreto, e olhou para o teto. Queria poder desligar sua audição, não ser obrigado a ouvir a pregação de um homicida.

Fechou os olhos.

Jurema Pinheiro invadiu seu pensamento sem ao menos avisar. Quim se sentiu envergonhado, e irritado, por ainda se sentir excitado com ela. Virou-se de lado para que ninguém o visse e abriu os olhos novamente.

A mulher que o colocara na cadeia, o prendera no meio de reais criminosos. O rapaz tentou imaginar como estaria Timbaúba naquele exato momento.

Desde que fora preso, só recebera visita uma vez. Duas semanas após ser transferido para Serrinha, Vera veio visita-lo. Trouxe um bolo de cenoura, o predileto dele, e algumas fotografias.

– Como está o meu pai? – Quim perguntara a Vera enquanto olhava um retrato do bom e velho Olavo sentado à sombra de uma mangueira na pracinha do povoado de Malhadas.

Vera abaixou o olhar e Quim sentiu na reação de sua mãe que algo de ruim havia acontecido.

– Não precisa se preocupar, filho – Vera respondeu. – O impacto foi muito forte para o Olavo, ele passou mal, mas, já está em casa, se recuperando.

– Por que ele não veio? – Quim pousou a fotografia sobre a mesa.

– Treze horas de viagem, Quim.

Ele assentiu.

Desde aquele dia, varou madrugadas imaginando o que acontecera ao homem que era seu pai. Temeu que Olavo estivesse morto, mas não seria algo que Vera esconderia. Ou seria?

A imagem de Olavo, de olhos fechados, paletó preto e rodeado de cravos, deitado em um caixão, assombrara os sonhos do pobre Quim por semanas.

O homem de média estatura começara a rezar o Pai Nosso. Institivamente, Quim o acompanhou até perceber o que estava fazendo e se calar. Tentou se lembrar o nome do homem, que havia chegado à cela poucos dias antes, mas não conseguiu. Tinha certeza que o nome se iniciava com “E”.

Os outros oito detentos seguiram o Pastor na oração, deixando-o radiante. Quim notou que aquele espetáculo evangélico se repetiria todas as noites e revirou os olhos. Será que ele conseguiria trocar de cela?

Não queria passar os trinta anos seguintes ouvindo pregações sobre o Deus que o abandonou.

*

Na próxima sexta, 07, às 22h…

– Como assim, Jurema?

Camila nunca duvidou da capacidade do ser humano de ser mau. Não apenas mau: monstruoso.

– Silvero está tentando me fazer de idiota, Camila – afirmou Jurema com veemência. – E ninguém me faz de besta!

– Isso não é um pouco… demais?”

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