EPISÓDIO XI

ENTRE AMIGOS

 

*

– Joaquim Gusmão, visita!

Quim pulou da cama ao ouvir o barulho da grade da cela ser aberta. Não estava esperando nenhuma visita, sua mãe já estivera ali duas semanas antes e, com certeza, não poderia vir tão cedo, já que não era muito fácil encontrar alguém para cuidar do seu pai.

Aproximou-se do agente penitenciário para que fosse revistado e algemado.

 – Quem é? – perguntou ao agente que tinha cara de ser novo no presídio.

Não houve resposta. Quim ainda não se acostumara com o tratamento dado aos presos de segurança máxima.

– A paz do senhor, irmão Joaquim! – o Pastor pôs a cabeça um pouco para fora da cama de baixo do beliche. – A maior felicidade de um homem é saber que Deus o ama e põe, em sua vida, pessoas que também o amam e o ajudam a seguir pelo caminho do céu.

Joaquim forçou-se a não revirar os olhos.

– Bom dia, irmão.

O agente o segurou pelo antebraço e os dois iniciaram a peregrinação pelos corredores e portões do Estabelecimento Penal de Segurança Máxima de Serrinha até o amplo salão em formato de caixa que servia como sala de visitas.

– Joaquim, há quanto tempo!

Era como se raízes brotassem da terra e prendessem os pés de Quim. Ele sentiu a sua garganta fechar, o mundo girar ainda mais rápido e, se não fosse o agente penitenciário segurando o seu braço, teria caído no chão.

Dois dias antes

– Chegou a hora da nossa conversa – Jurema tamborilou os dedos na coxa de Antônia e sorriu, sentando-se na cadeira ao lado dela na mesa de jantar.

Antônia respirou fundo.

– Você viu como as pessoas nos recepcionam? – Jurema serviu-se um copo d’água. – É sempre assim, acostume-se. Timbaúba nos ama e, por isso, lutamos por ela.

A prefeita bebeu a água em um só gole enquanto Antônia continuou inerte, em uma constante queda para dentro de si.

– Pensou em minha proposta?

Antônia levantou-se e caminhou até a mesa da sala em que ficavam os conhaques, uísques e licores à disposição de quem os quisesse. Encheu um copo de uísque e bebeu de vez, batendo o copo contra a mesa ao terminar.

– Querida, você está bem? – Jurema se assustou.

A moça retornou à cadeira em que estava sentada e puxou ar para os pulmões.

– Há muito tempo venho pensando nisso, na verdade muito antes de você sugerir que eu fosse o novo rosto político da família – Antônia começou. – E, eu te confesso, prima: nunca pensei que fosse sequer considerar a hipótese de seguir por esse caminho tortuoso, sangrento e miserável que o Coronel nos impôs desde o dia em que fomos fecundadas.

“Mas, diante dos últimos acontecimentos, eu comecei a rever as minhas ideias, a minha essência. A morte do Coronel, a sua maneira de agir para punir as pessoas que você acreditava ser culpadas pelo assassinato dele, como se você fosse um deus e tivesse o poder de decidir o destino de alguém. Isso, a princípio, me encheu de repulsa e de um desejo quase sobrenatural de fugir daqui, de desaparecer do mapa e não permitir que o meu sobrenome me acompanhasse”.

Jurema a ouvia em silêncio, impassível.

– Embora eu ainda considere as suas atitudes repugnantes, precisei amadurecer o meu pensamento – continuou Antônia. – Por isso, não pense que eu aprovo os meios de se fazer política nessa família ou fingirei que não sei de nada do que você e o vovô fizeram durante todos esses anos para se manter no poder – ela cerrou os punhos como se reunisse dentro de si toda a coragem necessária para prosseguir. – Apesar disso, eu aceito.

Um pequeno sorriso se formou no canto da boca de Jurema.

– Com duas condições, na verdade – disse Antônia.

– Quais?

– Que você desfaça alguns erros recentes.

– Erros? – surpreendeu-se Jurema.

– Nós duas sabemos que Joaquim e Salete não tinham motivos para assassinar o Coronel.

– Você se surpreenderia com a capacidade humana de fazer o mal.

– Jurema, eu nasci na família Pinheiro, não há nada de mal que possa me surpreender.

– E quais são as suas condições? – desviou Jurema.

– São simples: libertar os dois – Antônia foi firme. – Não é justo que eles paguem por um crime que não cometeram.

– Como você tem tanta certeza de que eles não cometeram?

– Desconfia de mim, prima?

Jurema arqueou uma sobrancelha.

– Você sabe que não.

– Então, não é nada que você não possa fazer – pontuou Antônia. – Ou melhor, desfazer.

– Você não imagina que desfazer isso poderá trazer complicações futuras para mim?

– E desde quando alguém nessa família se complica?

– Veja só como o nosso avô morreu.

– Foram as consequências dos atos dele.

– Não seja insensível, Antônia.

– Estou sendo realista. O Juca cavou a própria cova durante toda a vida dele, era de se esperar que ele se afogasse na piscina de sangue que ajudou a encher.

– Ele era seu avô.

– Isso não muda muita coisa.

– Você não vai conseguir manter essa postura de redentora durante muito tempo.

– Não estou treinando para ser santa.

– Às vezes parece que está.

Jurema se levantou.

– Prometo que tentarei atender às suas condições.

E saiu em disparada porta a fora.

– Cuidado, Antônia.

Laurinda surgiu no sopé da escada e caminhou até a mesa na sala de jantar, assustando a moça.

– É muita ingenuidade sua acreditar que a Jurema não irá cobrar para atender a esses seus pedidos no futuro.

– Laurinda, me desculpe, mas o seu disco já está arranhado – retrucou Antônia.

– No fundo você sabe que eu estou falando a verdade.

– Eu pesei os prós e os contras da minha decisão, Laurinda, e decidi, no final das contas, que a melhor maneira de expurgar esse câncer de Timbaúba é me tornando parte dele.

– Talvez o seu erro seja acreditar que precisa destruí-lo de dentro para fora.

– Que outra sugestão você dá? Me tornar uma sombra e vagar por essa casa praguejando e resmungando?

– Olha só, pelo visto você não é muito diferente da sua prima, por mais que queira ser.

Laurinda deu de costas e tornou a subir a escadas.

E Antônia não soube dizer se ela estava mentindo ou não.

– O que você está fazendo aqui, Jurema? – Quim sentou-se de frente para a prefeita e estendeu os pulsos algemados sobre a mesa.

– Uma visita, ora.

– Você é a última pessoa que eu esperava aqui.

– O destino é uma criança brincalhona, Quim.

– Eu acredito que você não veio aqui fazer metáforas de bêbado sobre a vida, Jurema – Quim inclinou o corpo na direção dela. – Seja direta.

– Vim propor uma trégua – Jurema cantarolou a última palavra.

Joaquim abriu a boca para falar algo, mas o espanto lhe roubou as palavras da boca. Ele ajeitou-se na cadeira de ferro e coçou a palma da mão com a algema.

– Qual é o seu plano dessa vez, Jurema? – indignou-se. – Você não cansa de destruir a vida das pessoas, de agir como se o mundo fosse seu brinquedinho de infância?

– Não há motivos para tanta raiva, Quim – debochou Jurema. – Aqui em Serrinha não tem psicólogo para os detentos? Deveria. Você precisa tratar essa raiva.

Joaquim comprimiu os lábios e fez uma expressão cínica.

– Ah, me desculpe, às vezes me esqueço de que estou falando com o único ser inocente da face da terra.

– Cinismo não é o seu ponto forte.

Touché.

– Enfim, enfim, não vim aqui para saber como andam as suas férias – Jurema se aproximou mais do Joaquim para falar baixo. – Digamos que eu tenho uma proposta mutuamente beneficente.

– Você me prendeu aqui por um crime que eu não cometi e agora quer que eu aceite a sua proposta – fez sinal de aspas com os dedos – mutuamente beneficente? – socou levemente a mesa. – Ah, Jurema, seus tempos de esperteza já acabaram.

– Me deixe falar que eu posso até te dar uns dias para pensar, não muitos.

– Quer saber? Eu nem sei porque estou aqui te ouvindo – virou-se em busca de um agente penitenciário. – Alguém pode me levar para a cela, por favor?

– Liberdade – disse Jurema, impetuosamente.

Quim voltou-se para ela.

– Freedom, libertad, liberté.

– Como assim, Jurema?

– Você não quer retornar para sua vidinha medíocre junto ao seu papai atrevido e a sua mamãezinha projeto de hippie?

– Só pode ser uma pegadinha – Quim forçou uma gargalhada.

– Joaquim, você realmente acha que eu viajaria treze horas para me meter em um presídio para brincar? Tenha bom senso, eu sou uma mulher de negócios.

– E qual preço eu terei de pagar pela minha liberdade?

Jurema ajeitou o seu blazer vermelho.

– Nada.

– Nada?

– Nem um centavo, nenhuma dívida e sem pegadinhas.

– Eu não sou idiota, Jurema! – Quim se exasperou. – Não tente me fazer parecer um estúpido outra vez ou…

– Ou o que, Quim – caçoou Jurema. – Veja só onde você está: atrás das grades. O que você pode fazer contra mim? – a prefeita riu.

Joaquim a fuzilou com os olhos. Naquele momento, desejou poder soltar-se das algemas e estapeá-la.

– Mas não vamos nos prender a pormenores, agora o menos importante é o seu grau de afetividade por mim – Jurema retomou a sua expressão séria. – Quer me ouvir ou não?

Quim desviou seu olhar para a parede. Havia apenas um outro detendo recebendo visita de uma senhora de cabelos grisalhos, que chorava impetuosamente.

– Diga – respondeu.

– Para sair daqui livre, sem ficha criminal e sem dever absolutamente nada a ninguém, você só precisa confirmar uma história.

– Que história? – perguntou Quim, suspeitando das intenções de Jurema.

– Basta dizer que Silvero sempre morreu de ciúmes de você por minha causa – sussurrou Jurema.

– Uau, haja autoestima! – Quim revirou os olhos.

– E aí, aceita a minha proposta?

Joaquim encarou a prefeita e ajeitou-se na cadeira de ferro e suspirou.

Domingos de Carvalho sempre se sentiu diferente das outras pessoas. Não, não das outras pessoas: dos garotos de sua idade. As aulas de educação física em seu colégio confessional eram o seu pior pesadelo: os meninos o desprezavam porque ele não gostava de futebol e as meninas, porque ele era “estranho”. Filava as aulas para ficar perambulando pelo colégio, conversando com a moça da limpeza ou procurando alguma nova leitura na biblioteca (seu romance preferido desde aquela época é Vidas Secas: nunca conseguiu conter as lágrimas com a morte de Baleia).

Ele não sabia contar quantos socos, chutes, empurrões ou tapas levou durante o ensino fundamental e o ensino médio. Tampouco se lembrava de ter feito alguma amizade nessa época. Hoje em dia, é claro, se perdoa e não guarda ressentimentos: ele entende que uma pessoa como ele em uma cidade como a em que vivia não tinham muito em comum.

Ao concluir o ensino médio, pelos idos de 1994, contou aos seus pais a verdade: “mamãe, papai, talvez vocês não entendam agora e não entendam nunca, mas eu não sou como os outros garotos: eu sou gay”.

Desde então, nunca mais falou com seus pais, com sua irmã ou com qualquer pessoa da sua família, exceto uma tia distante que o ligava sempre que alguma desgraça acontecia na família.

Foi na universidade que Domingos de Carvalho se encontrou. Beijou todas as bocas que conseguia, transou com alguns rapazes e com algumas mulheres também, envolveu-se com o Diretório Acadêmico, foi para festas, baladas, bebeu. Viveu. Como nunca tinha vivido antes. Fez grandes amizades, conheceu gente do mundo todo, até namorou com um belga e um canadense durante a semana do Carnaval. Formou-se em Artes Visuais, comprou uma filmadora e alguns equipamentos de filmagem e montou a sua primeira produtora audiovisual. Depois retornou à federal para cursar Jornalismo.

Nessa época conheceu Camila. O espírito investigador e jeito de moça do interior o cativou. Domingos fez a jovem conhecer o céu e o inferno, o bem e o mal, a verdade e a mentira. Tornaram-se grandes amigos. Mesmo quando ele se mudou para Cachoeira, eles não perderam o contato.

Tamanha foi a sua surpresa quando descobriu que Camila iria viajar para uma cidadezinha no oeste baiano com a responsabilidade de desestruturar um conglomerado político-familiar. Entretanto, pôs seus serviços à disposição. Que ela contasse com ele para o que fosse necessário, que não hesitasse em liga-lo, fosse dia ou fosse noite, ele atenderia com um sorriso no rosto.

Quando Camila ligou pela primeira vez, Domingos estava ocupado em uma calourada da universidade em Cachoeira. Na segunda vez, por fim, atendeu. Não contou problemas: no dia seguinte já estava no carro com destino à Timbaúba.

Três semanas depois, recebeu outra ligação dela. Fora promovida à Secretária de Comunicação e precisava de um subsecretário, um ajudante, um ombro amigo. Alguém que não perguntasse o motivo, apenas agisse. Domingos, é verdade, não estava pronto para morar em uma cidade distante até da própria distância, mas precisava de dinheiro e o salário do cargo era suficientemente atrativo. Aceitou.

Se soubesse o que se esconde por trás da fachada de cidade pequena e pacata, provavelmente Domingos tivesse preferido ficar em Cachoeira.

– Camila? – Silvero coçou os olhos, surpreso e sonolento. – Aconteceu alguma coisa?

– Depois do dia em que nos vimos na prefeitura, achei que você precisasse de um alguém para conversar – Camila suspendeu a mão para exibir uma garrafa de vinho um pouco caro demais. – E para beber.

– Beber sozinho não tem graça – Silvero deu espaço para que a secretária entrasse em sua casa.

Casa simples, mais simples do que Camila imaginara. A sala de estar era ampla, com uma escada que dava acesso ao andar superior, uma sala de jantar contígua e um banheiro. A decoração, por outro lado, a surpreendeu. Aparentemente, Silvero tinha um ótimo senso de organização e um gosto por tons pasteis.

– Viver sozinho não tem graça – Camila piscou o olho enquanto pousava a garrafa de vinho sobre a mesa de centro de vidro.

– Eu estou realmente surpreso – disse Silvero. – Nunca me passou pela cabeça que você sabia onde eu morava… ou que um dia viria me visitar.

– Nós temos pouco tempo convivendo juntos, é verdade, mas eu não consigo ficar apática quando vejo alguém próximo a mim passando por um momento difícil – Camila sentou-se no sofá de três lugares, o único na sala, que ficava de frente para o painel da televisão.

– Uma característica de boas pessoas.

Silvero aproximou-se da garrafa de vinho e a segurou, maravilhado.

– É um Cheval Blanc original? – disse, pasmado.

– Uma cortesia de Jurema – respondeu, casualmente, Camila.

– Nem sei se tenho taça para esse vinho!

Camila riu.

– Duvido que não. A sua casa é magnífica!

– Obrigado – Silvero pôs o vinho de volta sobre a mesa. – Vou pegar as taças lá em cima. Sinta-se à vontade.

– Com certeza.

Silvero subiu as escadas alegremente.

Chegara a hora de Camila colocar o plano em ação.

Ela abriu a bolsa que trouxera e puxou um notebook de dentro. Caminhou pela sala de estar e, quando chegou à sala de jantar, notou o aparelho de Silvero sobre a extensa mesa de madeira de lei com oito cadeiras. Seu objetivo era simples: trocar o notebook de Silvero pelo notebook preparado por Jurema – e sabe deus quem mais – sem que ele notasse.

Assim o fez.

Quando Silvero retornou com as taças, Camila estava sentada no mesmo lugar.

– Uma pena que não tenho nada a altura desse vinho para acompanhá-lo – disse Silvero enquanto abria a garrafa.

– A companhia desse vinho será uma boa conversa entre amigos, Silvero.

Camila nunca havia se sentido tão bem em toda a sua vida.

*

Não perca, na próxima sexta, 14 de maio, às 22h, as emoções do próximo episódio de

A CANDIDATA

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