Após a evasão de Areias, montado no cavalo concedido pelo tal coronel através das mãos do jagunço que o aguardava nos arrabaldes da cidade, Josué atravessou o deserto, a campina imensa onde colinas baixas e vegetação espinhosa definhavam, onde rios se infiltravam na areia ou formavam poços na pedra com seus bebedouros de água lamacenta, tomado pela decisão em construir um destino diferente, não se importando com o preço que tivesse de pagar. Estava mais do que na hora de reaver o sonho de liberdade e de êxito que lhe invadira o âmago ainda no início da adolescência, enquanto crescia na fazendo Bastião sob os domínios de coronel Valdêncio Firmino, cercado por um teatro de miséria e agonia.

Um propósito, aliás, que Josué acreditou ter alcançado quando Zé Porcino o resgatou da prisão, do castigo que recebera de Valdêncio depois de sua malfadada tentativa de fuga daquela fazenda nos dias seguintes à morte de sua irmã Inês, que sucumbira sob as labaredas ardentes que devoravam o casebre de pau a pique onde viviam.

Não. Josué não ficaria à mercê dos desmandos de um latifundiário, preso à dividas crescentes, sobrevivendo com o que restava de sua dignidade, se deixando sufocar, impotente, entre as garras da injustiça, mergulhando as frustrações na bebida, imputando infelicidade a todos à sua volta, assim como seu pai fizera com sua família. Nascera num mudo seco, populoso, mas não teria o mesmo fim daqueles muitos bandoleiros que sumiriam numa volta do caminho, sob uma chuva de balas, decapitados ou mutilados, e definitivamente não viveria no inferno para onde Severino o tinha mandado com sua maldição.

A marca indelével cruzando o lado esquerdo da face, abaixo do nariz até a altura dos olhos, a nódoa do estrago feito pelo maldito feirante, lhe serviu como um troféu de guerra, afinal, só ria de uma cicatriz quem nunca havia sido ferido.

Josué Atravessou o sertão baiano, de cidade em cidade, sofrendo numerosas injustiças, muitos empurrões, suportando sede e fome depois que a paga por ter mandado a alma de Fabiano para os quintos dos infernos, findou. Arrastou enxada, dormiu em areia de rios secos e por fim, brigou com gente que falava alto enquanto efetuava transações comerciais com armas engatilhadas. Não se surpreendera com nenhum daqueles embustes do destino. Aos dezenove anos de vida sabia melhor do ninguém que numa terra onde a força e a faca era lei, tanto Deus quanto o tinhoso precisavam andar armados. Nenhum mau trato, nenhuma injustiça o faria desistir do seu desígnio.

A partir de 1930, as migrações internas começaram a desempenhar um papel de destaque na recomposição espacial da população, e, com a crise econômica mundial de 1929, dois tipos de movimentos foram gerados: uma parcela da população dirigiu-se para as fronteiras internas, ocupando o Interior, e a outra, para as cidades. Dessa forma, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e os Estados da Região Sul predominaram como as principais áreas de imigração, e Josué, disposto a se afastar cada vez mais e mais das misérias de seu passado, seguiu o fluxo natural daquele êxodo, até chegar à cidade de Caratinga, no interior do estado mineiro, por volta de 1940, conseguindo, de início, um trabalho exercendo a função de carroceiro, depois começou a vender bananas ou qualquer outra ocupação digna que lhe permitisse criar raízes, se firmar e prosperar, mas sua vida não se movia e qualquer sinal de progresso lhe escapava das mãos.

Ainda assim Josué não aceitava estar fadado a ser um Zé ninguém. Não descia à goela o conformismo de uma existência desprezível, insignificante e então logo tratou de fazer o destino lhe sorrir por bem ou por mal. Em questão de poucas semanas, começou a se envolver com dona Marianinha, mulher mais velha, vendedora de mingau e possuidora de algumas casas residenciais na cidade. Graças a esse conveniente relacionamento, conseguiu dar os primeiros passos como comerciante, recebendo a ajuda financeira de sua companheira para adquirir os doze garrotes magros que um homem vendia, na praça central de Caratinga, a baixos preços e, depois de três meses, os animais, já bem nutridos, foram vendidos por mais de três vezes do valor comprado.

Josué pagou o empréstimo à companheira e foi-se embora, abandonando-a sem muitas explicações e com  dinheiro no bolso, aportou em Laranjeiras, centro urbano que por pouco não se transformou na capital de Minas Gerais. Lá, arrendou um roçado de dona Eva Germano Crespi, matriarca da fazenda Olho d’Água e recém-viúva do coronel Antero Crespi, que Josué logo descobriria se tratar do mesmo homem que o contratara como seu pistoleiro de mando, em Areias… Mundão pequeno esse.

No ano em que passou em seu roçado, Josué soube aproveitar a chuva e o sol na época certa, plantando e colhendo milho, feijão, fava e algodão em abundância, mas durante as entressafras, saía a cavalo pelos engenhos da redondeza, comprando e vendendo gado, cavalos, burros e, principalmente, ferro-velho, tachos, caldeiras, tubulações, maquinário imprestável. A injustiça e os maus tratos da vida lhe foram grandes, e outras mais estariam por vir, mas sua perseverança seria compensada ao olhar o seu reflexo no espelho, alguns anos depois, e constatar à sua frente, admirado, a figura imponente do Coronel Josué Ferreira, um dos homens mais ricos da região, uma das maiores e influentes personalidades públicas do município de Laranjeiras, detentor do poder patriarcal da fazenda Olho d’Água e tudo o mais que lhe fosse permitido…  

 

 

Numa forma de cordel

Falava do homem valente

Do tipo do coronel

Que amedronta muita gente…

De um povo sofrido

Daquele homem disposto

A enfrentar a chuva e o sol quente

Trazendo a marca no rosto

Orgulho em se olhar de frente…  ¥

 

 

1972…

É iniciada a construção de Angra 1 através da aquisição de um reator nuclear francês.

O Milagre econômico brasileiro é a denominação dada à época de crescimento econômico elevado durante o Regime Militar no Brasil, entre 1969 e 1973, também conhecidos como “anos de chumbo”. 

Durante esse período instaura-se um pensamento ufanista de “Brasil potência”, que se evidencia com a conquista da terceira Copa do Mundo em 1970.

 

Há quem pense que com o passar dos anos o coronelismo estivesse declinando. No início da década de 70, em algumas regiões do norte, nordeste e até mesmo do sudeste, o poder mantido sobre o cabresto da violência dos fazendeiros, dos coronéis, abusando dos colonos, manipulando pessoas simples, sem informação e estrutura para realizarem suas vontades, além da matança de pessoas inocentes, permanecia vívido, pungente…

É lançado o vigésimo primeiro livro escrito por Jorge Amado, Tereza Batista Cansada de Guerra. Órfã de pai e mãe, a menina Tereza é vendida pela tia Felipa a Justiniano Duarte da Rosa, o capitão Justo. Nas terras dele, é tratada como propriedade, inclusive do ponto de vista sexual. Mas Tereza irá lutar até o fim contra as dominações a que se vê submetida. “Peste, fome e guerra, morte e amor, a vida de Tereza Batista é uma história de cordel”, já adianta a epígrafe do romance. Na saga dessa heroína não faltam atribulações e conflitos, que ela vai enfrentar com determinação inabalável. E o fim de sua história reacende uma luz de esperança que o cansaço não pode apagar.

 

*   *  *

 

Fazenda Olho d’água.

Laranjeiras,

Minas Gerais

 

João, Miguel, Antunes e Diamante tinham sido escolhidos para acompanhar o coronel Josué Ferreira na viagem que ele faria aos municípios vizinhos para reforçar o seu curral eleitoral. Já havia algum tempo que estavam em frente ao portentoso sobrado que servia como a casa-sede da fazenda Olho d’Água. Em mangas de camisa, e quebrando seus chapéus de couro para frente do rosto, a fim de tapar a claridade excessiva daquele sol forte que já fazia doer a pele antes mesmo das 8 horas da manhã, permanecia, os quatro, imóveis e num silêncio absoluto, tendo a atenção concentrada nos olhos e nos dedos que percorriam seus enormes rifles e nas armas que carregavam em suas cinturas.

Ostentavam uma severidade impassível, como se estivessem a decidir o destino do mundo e da humanidade, contrastando, de maneira quase surreal, com a serenidade e a alegria do jardim colorido que ornamentava em perfeita simetria a frente do sobrado, onde se podiam encontrar diversas espécies da flora brasileira, trazidas, em sua maioria, ilegalmente para a fazenda Olho d’Água por iniciativa (e capricho) da finada matriarca, dona Eva Germano Crespi.

Aqueles quatro homens, aos olhos do coronel, eram cabras confiáveis, discretos, valentes e fiéis; estavam sempre alertas e prontos para uma ação de defesa ou ataque, tendo demonstrado por diversas vezes que eram os melhores dentre aqueles que arriscavam a própria vida para defender a vida do homem que lhes havia contratado, principalmente naquelas empreitadas que duravam semanas, atravessando caminhos suspeitos, livrando o patrão de emboscadas e tocaias e cumprindo suas ordens sem se darem conta se o que faziam era certo ou errado.

Num movimento súbito e quase violento, as janelas do sobrado começaram a ser abertas, uma a uma. A cada som de veneziana sendo alargada e de caixilhos de vidros sendo suspensos, João sentia um calor sufocante invadir-lhe o peito, lhe subir a cabeça, estonteando-o. Será que Maria Inês está me vendo?, pensou imediatamente, engolindo em seco, tentando disfarçar o nervosismo. Olhou de soslaio para os três companheiros que permaneciam inabaláveis em seus postos e respirou fundo. Carecia ter a certeza de que Maria Inês estava em uma daquelas janelas, buscando-o, feliz por poder vê-lo já àquela hora da manhã. Sentiu uma comichão tomar conta de todo o seu corpo. Precisava se virar, ter essa certeza, principalmente por saber que seria a última vez que veria sua amada… 

– Olhem só quem está vindo – alertou Antunes, com um sorriso de satisfação lhe rasgando a cara carrancuda ao mesmo tempo em que levantava a aba de seu chapéu para reparar melhor a passagem da mulata Lucinda – Essa daí, se me pedir, largo tudo e fujo com ela pra onde puder e Nosso Senhor permitir. Nem o coronel me impediria…

– Cuidado! – preveniu Diamante – Sabe que o coronel tem grande apreço por essa daí. Só não assumiu a paternidade por respeito à dona Candinha.

– Respeito? – indagou Antunes com ironia e desprezo mais para si próprio do que para o companheiro, cuspindo em seguida com o canto da boca e limpando o que restava da saliva com as costas da mão.

Lucinda se aproximou dos quatro cavalheiros. Morena, muito bem feita de corpo, lábios carnudos e belas pernas, ainda não havia completado seus dezessete anos, porém há muito já não lhe restava qualquer resquício da menina que corria de pés descalços pela fazenda Olho d’Água, sempre de tranças e uma boneca dependurada sob um dos braços; a ingenuidade dera lugar a uma natureza felina, desafiadora, capaz de inebriar e encantar os homens sem qualquer esforço, ao passo que para as mulheres, particularmente as casadas, ela não passava de uma dissimulada, fogosa e namoradora, cujo destino profetizado era um só: “Essa daí tem tudo pra ser quenga, igual a mãe!”

Carregando sobre a cabeça um cesto com feijões verdes, Lucinda atravessou o caminho à frente dos capangas do coronel a passos lentos, encarando um a um, como se fosse um general revistando sua tropa, entregando-lhes um sorriso cheio de malícia, principalmente para João, o seu João, o único que ela teria se entregado de verdade dentre aquela jagunçada mal encarada e fedida, mas ele a repelira e recusara seus carinhos, suas investidas, sua disponibilidade, sem pestanejar… Quantos outros já não estariam aos seus pés sem tanto esforço de sua parte?… Contudo, não conseguia guardar mágoa ou rancor de João. Entendia, mas não se resignava diante do fato de outra ter chegado antes dela e conquistado seu coração. 

– Um bom dia, moços!

Ela cumprimentou com a voz carregada de um tom penugento enquanto meneava a cabeça para João, num gesto quase imperceptível, indicando o andar superior do sobrado, deixando o jagunço embaraçado, confuso, com uma suplicante indagação lhe marcando o semblante. Não podia negar a si mesma o imenso prazer em vê-lo tão fragilizado diante do benefício da dúvida e daí sorriu mais uma vez antes de continuar o seu trajeto, deixando para trás um rastro de sedução sem qualquer constrangimento.

– Quando te pegar, peste, te arrombo! – sussurrou Antunes, entre raiva e desejo vendo a morena se afastar.

 

 

 

¥  trecho de tentei escrever meus versos, de Irarodrigues 

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KARINA BUHR – TUM TUM TUM

 

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