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Episódio 9 (último)

 

Porém na Terra ninguém consegue

um crime esconder

por mais que ele seja oculto

alguém pode o conhecer

Mesmo chegará o tempo

que a justiça há de saber

…A mesma justiça

Que ocultamente trabalha

 Pelo bem dos inocentes:

Não cobra nem uma palha,

Na pista de um assassino demora…

Porém não falha,

 

É a justiça que disse

O Messias Prometido

Que quem com ferro ferisse,

Para que fosse punido,

Com aquele mesmo ferro

Também seria ferido      ¥

 

– Do que você está falando? – Candinha lançou a pergunta de pronto ao mesmo tempo em que se aproximava da velha – Quem vai ferir o Josué?

Maria Inês sentiu uma aflição lhe subir ao peito enquanto sustentava o olhar sobre Nicolina. Olhou dentro daqueles olhos que conhecia tão bem… e conhecia tão pouco…

O atordoamento que passou a perturbá-la não era somente por causa da iminência da notícia do provável assassinato de seu pai… Na verdade, naqueles instantes, naqueles eternos segundos não soube ao certo o que pensar. A decisão que a tinha feito cruzar a porta daquela cozinha se esvaneceu e deu lugar a uma marmórea perplexidade.

Maria Inês jamais acreditou em qualquer outra coisa que não estivesse sob a mira de seus olhos. Sempre respeitou as crendices daquele povo da fazenda e da cidade, principalmente as manias e as histórias da velha Nicolina, porém o mundo que não fosse feito de matéria palpável, o que não pudesse ser explicado, que fugisse ao seu pragmatismo, sempre seria descartado, desprezado sem a menor sombra de dúvida…

– Diz logo o que tem pra dizer e para com essa sandice – ela gritou, de repente, não conseguindo guardar as palavras, mas também não se arrependendo de sua reação inesperada.

Um silêncio recaiu sobre cada canto daquela cozinha. Candinha tão somente encarou a filha e sabia-se lá porque, não conseguiu repreendê-la diante da falta de respeito para com Nicolina.

 

– Aqueles dois jagunços… – a velha voltou a se sentar na cadeira de balanço – Eles tramaram a tocaia que vão praticar em cima do coroné.

– Nicolina, eu não sei o que a senhora…

Candinha não teve sequer a mínima chance de continuar.

– Eles foram trazidos pra cá a pedido da amásia, da outra que tá lá fora. O Miguel e o João são irmão dela e vão tirar a vida do teu marido, Cândida… Por vingança.

Maria Inês engoliu em seco diante daquela revelação, assim como sua mãe e as outras duas cozinheiras, porém ela, com a boca seca, o coração parecendo querer lhe sair do peito, queria ter certeza de que a velha não estava delirando de vez, mergulhada na caduquice que se arrastava junto com suas anáguas de cambraia.

Mirou novamente a anciã, firme. Nicolina a fitou de volta, fria, sem piscar e sem sentir o mínimo de remorso.

Maria Inês disparou para fora, atravessando a porta que dava para o quintal quase que instantaneamente. As duas cozinheiras, a mando de Candinha, correram atrás dela.

– O que significa isso? – Candinha se virou na direção da cadeira de balanço onde Nicolina já tinha começado a ir e vir – Do que a senhora está falando, pelo amor de Deus?

– Ao menos a menina não vai sofrer como eu sofri…

Nicolina balbuciou, parecendo não haver mais ninguém por perto.

– Do que a senhora está falando? – Candinha deu mais um passo e se pôs de frente para a mulher que praticamente a tinha criado – Que história é essa desses capangas serem irmãos da outra, essa tal vingança…

– Você devia levantar as mãos pro céu, Cândida…

Candinha teve a impressão de enxergar no semblante da velha Nicolina uma estranha expressão morta, que não conseguia de certo entender, e aquilo a amedrontou.

– Josué vai ter o que merece. Ele te fez sofrer demais. Muita coisa. Ninguém nesse mundo de Deus mereceu passar o que você passou e ainda vem passando…

Candinha começou a estremecer. Se ao menos houvesse alguém para consolá-la, acalmar aqueles temores que acabaram de lhe surgir, fazendo seu coração afundar num frio doentio, explicar o que Nicolina estava dizendo…

– Eu não quero o meu marido morto – ela respondeu veemente, afastando-se da cadeira de balanço, procurando manter uma distância considerável de Nicolina – Quem disse que eu o quero morto…

– Ele assassinou meu Fabiano – Nicolina derramou as palavras pausadamente com olhos vidrados no nada à sua frente – O miserável arrancou a vida do meu Fabiano sem nem mais por que, e fez pior, na frente do filho, dum menino…

Seu olhar distante voltou rapidamente para Candinha.

– O Messias disse que quem com ferro ferisse com ferro seria ferido…

Candinha encarou a velha sentada e enxergou no seu rosto a figura de uma mulher feliz, que podia estar cercada pelas tormentas sem que sua aparente serenidade fosse abalada… Concluiu, sem sombra de dúvidas que a senilidade, por fim, tomara conta do que restara de sua mente…

Com os olhos marejados de lágrimas, ela voltou a se aproximar da cadeira de balanço com menção em abraçar sua amada Nicolina, mas se surpreendeu ao ser repelida.

– Ande. Vá defender o seu homem, o seu e daquela que está lá fora.

Candinha fitou cada canto daquele rosto. Os pálidos olhos despidos de pestanas, intransigentes, os lábios contraídos… A velha Nicolina se postou ereta sobre a cadeira e se deixou tomar por uma dignidade e orgulho, que por estranho que parecesse, fez Cadinha recordar da mulher de pulso forte que comandava os quatro cantos daquela fazenda nos idos tempos…

 

*   *   *

 

O sol escaldante e perturbador sobre as cabeças de Josué Ferreira e seus quatro capangas parecia fazer as horas se arrastarem cada vez mais enquanto atravessavam a estrada poeirenta para chegar ao município de São José.

Apesar dos anos passados, aquele extenso pedaço de chão permanecia o mesmo: convenientemente sem qualquer sinal do progresso; a possibilidade de se cruzar com um tatu, um tamanduá, uma anta ou até mesmo uma jiboia, era quase certa durante aquela peregrinação que podia durar até dois dias e uma noite inteira a fim de alcançar o destino traçado, e também era preciso lidar com o vento do cerrado, que, vez em quando, erguia-se, levantando a terra batida, desafiando os viajantes a seguir em frente com suas vistas parcialmente estorvadas.

Acabaram esbarrando com algumas famílias que por ali começavam a galgar os primeiros passos rumo à esperança de uma vida melhor nas grandes capitais do Sudeste, sem saber o que de fato as aguardavam, migrando a fim de obter condições melhores de subsistência.

Josué Ferreira os desprezava. Os poucos que tinham ousado deixar a fazenda Olho d’água em favor daquele movimento, não recebiam qualquer acolhida quando voltavam todos lenhados, com uma mão na frente e outra atrás. Ele era intransigente no que dizia respeito aos que tinham desprezado a terra, que de tudo havia dado aos ingratos para sobreviver em detrimento a uma ideia de jerico que os metidos a intelectuais chamavam de êxodo rural.

O município de São José era o mais afastado de todos os outros que estavam sob o domínio patriarcal e político do coronel Josué Ferreira, mas ainda assim ele decidira iniciar por lá sua campanha para as próximas eleições, optando por deixar Vassouras, o mais próximo deles, e onde residia sua morena Adalina, em último lugar.

A saudade, de certo, só iria aumentar, afinal, já havia meses que Josué não a tinha em seus braços, não sentia o seu calor, o seu cheiro, o seu carinho intenso, mas a árdua empreitada de estreitar as rédeas do seu curral eleitoral, naquele momento, era mais que prioridade. O rastro da única derrota política que o nome de sua família tinha provado há quase trinta anos, precisava ser deixado cada vez mais para trás.

Definitivamente esquecido.

O sabor daquela desonra era algo que ele jurara nunca mais sentir, e todo o prestígio e poder que possuía não eram suficientes se não colocados em prática: era preciso ter votos, ganhar as eleições, independente do preço a pagar e das ações a serem tomadas.

E no mais, até que encontrasse o repouso urgente e necessário nos braços de Adalina, rapariga nesse mundo de Deus é que não faltava para abrandar a carência de um cheiro quando invadisse suas entranhas.

A viagem continuava e o sol já estava a pino quando o coronel, em mangas de camisa, decidiu refrear seu cavalo para desafogar-se da vontade absurda de esvaziar a bexiga.

– Preciso mijar – anunciou, apeando do animal, não sem antes conferir, junto aos seus capangas, a paisagem no entorno até constatar que naquele pedaço de estrada estéril nenhum sinal de vida humana, viva ou morta, se fazia presente.

De costas, em pé, um pouco afastado de seu grupo e com as pernas semiabertas, Josué apreciava o extenso chapadão à sua frente, coberto pela vegetação de algumas pequenas árvores retorcidas, dispersas em meio a um tapete de gramíneas, onde um silêncio absoluto reinava, lhe permitindo ouvir sem dificuldade qualquer coisa que pudesse se aproximar, ou agradável, ou indesejada ou até mesmo perigosa, inclusive o som ensurdecedor dos dois tiros disparados bem próximo de onde estava.

Apesar de um tanto sobressaltado, Josué Ferreira, sem gestos bruscos, fechou a braguilha de sua calça e permaneceu imóvel por alguns segundos até decidir se virar bem devagar, encontrando de pronto, se desdobrando à sua frente, um cenário sem hesitações, imprevisto, e por que não surreal: dois de seus homens caídos ao chão, de olhos vidrados e um fio de sangue empastando-lhes os cabelos devido o tiro certeiro que cada um deles havia recebido no meio de suas testas.

Encomendar uma alma para o tinhoso, ajudar a limpar a face do mundo de ervas daninha, fazia parte da vida, mas nos seus domínios, nas suas terras, isso só acontecia sob sua permissão, ainda mais se tratando de Diamante e Antunes, cabras fiéis, leais o suficiente para que nada de mal lhes tivesse acontecido enquanto estivessem, os dois, a seu serviço.

Precisava de respostas para o que tinha se sucedido e não demorou muito com os olhos sobre os cadáveres, erguendo o rosto, passando a encarar com uma inabalável solidez os outros dois jagunços que permaneciam ainda montados em seus respectivos cavalos, ousando apontar na sua direção, sabia-se lá porque, os rifles que carregavam.

– Creio que esteja acontecendo alguma coisa de errado por aqui, não acham? – indagou Josué Ferreira numa calma aparente, sem mudar qualquer linha de sua fisionomia, não demonstrando a mínima alteração em seu comportamento, e carregando, como sempre, a autoridade no tom de sua voz.

– O senhor está bastante enganado, coronel…

Retrucou Miguel apontando com um gesto ligeiro de cabeça os dois corpos que jaziam inertes ao chão.

– A única coisa errada por aqui, se é que podemos considerar dessa maneira, é o preço que estes dois homens tiveram que pagar para que pudéssemos acertar as contas com o senhor. Mas também se for pra julgar a vida que esses infelizes tiveram…

Miguel meneou a cabeça para o lado, sem deixar de fixar o patrão, e atirou o cuspe que saiu arrastado de sua boca na direção do solo, limpando em seguida, com as costas da mão, o resquício da saliva que ainda escorria.

– Eles não morreram tão inocentes assim, não é mesmo, coronel Josué Ferreira? – continuou – De quantos homens eles não tiraram a vida cumprindo suas ordens? De quantos homens nós não ceifamos as miseráveis vidas que levavam para atender os seus desmandos?

– Pelo amor de Deus, Miguel… – manifestou, de repente, João, com a voz trêmula e um suor excessivo lhe brotando das mãos – Ainda temos como ir embora daqui sem precisarmos de nada disso…

– Cala a boca, João.

Ordenou Miguel, furioso, continuando a manter o patrão sob sua guarda e mira.

– Nós já discutimos isso diversas vezes e não vai ser agora que iremos dar pra atrás, ouviu bem?

Josué Ferreira não conseguia entender o que estava acontecendo. Por que cargas d’água seus subordinados estavam agindo daquela forma?

– Ajoelhe-se! – ordenou Miguel, impassível, descendo de seu cavalo, mas sem pressa, afrontando o coronel com veemência, ordenando-lhe, ao passo em que ia se aproximando, que se desfizesse do armamento que trazia em seu vestuário.

– O que significa essa bestagem? – questionou Josué Ferreira, por fim e entre os dentes, ainda sem renunciar a habitual postura de comando, mantendo os olhos semicerrados devido à forte claridade do sol em seu rosto enquanto ia jogando fora suas armas.

Era inadmissível estar recebendo uma ordem e ainda mais daquela natureza.

Precisava de respostas.

– Eu mandei se ajoelhar cachorro – bradou Miguel encostando o cano do rifle com extrema violência contra a testa do coronel.

Sem alternativa, ao menos não de imediato, Josué Ferreira começou a se abaixar, e ao mesmo tempo em que se acercava do chão, seu olhar transbordando contrariedade se fixava sobre a face cada vez mais transfigurada de seu verdugo.

– Nem mesmo assim, não é, coronel? – constatou Miguel num misto de ironia e pesar – Nem mesmo de joelhos o orgulho deixa de brilhar nos seus olhos. Vamos ver até onde vai esta petulância…

De súbito, Josué Ferreira sentiu o peso da mão do capanga aterrissar com violência sobre o seu rosto.

Um instante de silêncio de morte reinou defronte aquele cerrado enquanto o poderoso coronel, subjugado, sentia o rubor tomar-lhe a face.

– Abaixe esses olhos filho de uma égua.

Balbuciou Miguel, escarrando sobre o lado esquerdo no rosto do homem ajoelhado à sua frente, forçando ainda mais o cano da arma sobre sua pele, quase lhe trespassando os ossos do crânio.

– Por esse sol que nos alumia, juro que hoje será seu último dia nesse mundo dos homens, coronel. Hoje você vai prestar contas de todos os seus pecados a Deus, ou ao diabo, mas de um desses pecados você vai prestar conta é aqui mesmo, diante de mim e do meu irmão…

Josué Ferreira fez menção em levar a destra até a altura da face maculada enquanto corria os olhos sobre a terra exposta diante de si, enquanto mirava a bota envelhecida, com fivela carcomida, suja e malcheirosa de estrume do desgraçado capataz, enquanto sentia a rijeza do aço daquele rifle sobre a pele.

O calor já não mais o incomodava, tão somente a vergonha e a humilhação, o brio ferido.

Exceto o pai, nenhum outro homem se atreveu a por a mão na sua cara, nem mesmo os macacos, aqueles ordinários oficiais do Estado, quando decidiam enfrentar o bando de Zé Porcino, nos tempos em que ele, Josué, recém-saído da adolescência, andou pelo cangaço.

Estremecendo ao sentir a cólera invadir-lhe o âmago, baixou a mão de súbito antes que ela alcançasse seu rosto, espalmando-a em seguida, assim como a outra, sobre a terra batida para sentir a energia das profundezas de sua alma descer pelos braços, lenta como uma onça rondando a presa antes da investida fatal, até chegar à ponta de cada um dos seus dedos…

Cerrou os dentes. Encolheu os ombros.

Estava pronto para atacar.

-De verdade, eu espero que você se lembre, maldito…

Miguel, engolindo em seco, os lábios trêmulos, puxou o ar com toda força para dentro dos pulmões antes de continuar, ao passo em que observava um punhado de cabelos brancos espalhados pela cabeça do coronel; fios, que sob a forte claridade solar, refletiam estranho tipo de luminosidade…

Desde quando o diabo pode usar um halo?

Balbuciou um tanto confuso a pergunta retórica, sem eco, enquanto uma onda de calor excessiva, arrepios e uma leve tontura invadiam seu peito, sua cabeça.

-Espero que se lembre de um ato covarde que praticou lá atrás, há mais de trinta anos, quando arrancou a vida de um trabalhador inocente, um pai de família honesto…

O embargo lhe subiu a garganta sobremaneira e por mais que tentasse ignorá-lo, não conseguiu seguir adiante. Aquele sinal de fraqueza, de inconstância, o fez sentir raiva de si mesmo e então meneou a cabeça com força, rápido, buscando no ódio que corria em suas veias a determinação para não quedar.

Precisava seguir adiante e cumprir a promessa que fizera à mãe e, acima de tudo, carecia vingar a honra, a alma de seu pai abatida na ponta daquele maldito facão…

Tensão, tristeza, desespero, aversão… A frustração era amarga demais para se sentir.

Numa fração de milésimos de segundos, Miguel levantou o pé direito e o esticou com extrema violência na direção do coronel, atingindo-lhe o rosto no mesmo lado em que havia despejado, há poucos instantes, o seu insulto.

-Em nome do que fez com meu pai, seu cobra ruim – bradou.

Josué Ferreira, ainda com os olhos fixos nos grãos da terra batida, recebeu o chute cingido de lancinante dor e com um gesto inútil tentou se equilibrar, caindo direto com as costas no chão.

Mas de que diabos o jagunço estaria falando, ele quis saber, questionando-se em completo silêncio enquanto buscava se recuperar. Por que o covarde não agia como homem e resolvia logo a questão, fosse ela qual fosse, sem arerês, a culhão se necessário, e deixasse de lado aquele rodeio…

Inspirou profunda e vagarosamente antes de apoiar um dos cotovelos sobre o solo, ao mesmo tempo em que elevou o outro braço até a altura do rosto, protegendo, com a mão, a vista do brilho intenso do sol, não demorando avistar Miguel, a poucos centímetros de distância, encarando-o com o rifle em punho e uma estranha expressão morta em seu semblante.

Sim. Miguel estava muito diferente daquele capataz humilde, fiel e dedicado que vinha acompanhando Josué Ferreira já há dois anos, desde que Adalina os havia apresentado, a ele e a João, como os dois irmãos que ela deixou para trás, ainda mocinha, antes de cair na estrada da vida.

Naquele momento, inebriada de felicidade pelo destino ter lhe permitido o reencontro há muito desacreditado, Adalina, num brado de aleluia, clamou, intercedeu, rogou ao seu homem, ao coronel, para que desse uma oportunidade de trabalho digno e honesto aqueles dois…

Adalina… Seria possível que estivesse por trás daquela  traição, Josué Ferreira atreveu-se a pensar, mas tratou de afastar o disparate daquela suspeita antes que lhe corroesse as vísceras…

Com o espírito de quem um dia fora um bandoleiro, não temendo nada e nem ninguém, ele, coronel Josué Ferreira não reconhecia a derrota, mesmo estando aprumada diante de si. Jamais imaginou que jagunço algum tentasse tocaiá-lo, emboscar um poderoso de sua estirpe, muito menos que o fedido fosse um de seus homens, de seus protegidos.

-Desce do seu cavalo, João – ordenou Miguel -Vem aqui…

João titubeou, demorou um pouco para apear. A indecisão que carregava dentro de si não lhe deixava agir ou pensar em seu estado normal.

-Miguel, por favor…

-Desça logo desse maldito cavalo!

Miguel urrou como um animal ferido, sem deixar de fitar o coronel um segundo sequer.

-Finalmente a promessa que fizemos à mainha vai ser cumprida- esbravejou como se o mundo fosse acabar naquele instante enquanto empunhava o rifle, voltando a impingi-lo contra a testa do seu patrão.

Josué Ferreira respirou fundo, sentindo o cano de a arma arranhar a fronte e então, de soslaio, espreitou sua pistola Longe caída não muito distante de onde ele estava.

-Nem pense.

Avisou Miguel, entre os dentes, a voz derramando rancor e desprezo, pressionando, com mais força, a ponta da arma contra sua vítima.

-Todo o sofrimento de minha santa mãe pela morte traiçoeira do meu pai vai ser pago quando eu te fizer sangrar igual a um porco miserável, coronel Josué Ferreira – engoliu em seco e seguiu adiante com o rosto fogueado, sem piscar os olhos – Espero que nunca tenha se esquecido do que fez lá em Areias, até porque, a marca da injustiça que meu pai deixou na sua cara deve lembrá-lo todos os dias.

Josué Ferreira não pôde acreditar no que tinha acabado de ouvir…

Ato continuo, retirou a mão de sobre os olhos e a passou pela cicatriz que atravessava o canto esquerdo da face, ainda suja pelo escárnio do jagunço, e sentiu como se estivesse sendo ferido novamente, naquele mesmo lugar.

Segundos, nada além de segundos, eternizados num simples lampejo que desafiava análises, foram necessários para desenterrar uma lembrança mais que remota dos recantos de sua mente.

Voltou a sombrear as vistas, erguendo o rosto sem demora, sabendo de pronto o que encontraria à sua frente…

Lá estava nos olhos do capataz o mesmo olhar impassível daquele menino, há trinta e quatro anos, que o fitava completamente inerte, como uma estátua, ausente de qualquer reação após ver o pai perder a vida na ponta de uma peixeira.

– Cadê você, João – gritou Miguel tomado pela ânsia e desespero – Desça logo desse maldito cavalo.

João, já parado ao lado do seu animal, permaneceu hesitante. Não queria fazer aquilo. Estava disposto a abrir mão de Maria Inês. Sabia que nunca mais a veria, mas não gostaria de lhe deixar uma nódoa terrível, não queria habitar seus pensamentos como um infiel, um pérfido que a usara todo o tempo… O assassino do seu pai!

Por que eles não podiam simplesmente seguir com suas vidas? Por que sua mãe, Eulália, não seguiu adiante, deixando o passado no lugar que deveria ficar ao invés de viver cada um dos seus dias remoendo a morte do pai que ele, João, não havia conhecido, guardando rancores, morrendo em silêncio com aquele olhar perdido que sempre estivera em seu semblante amargo…

A mãe jamais sorriu… Era seca.

João não precisou se esforçar muito para ter essa certeza nítida no limiar de suas lembranças. Trabalhadora, lutando todo o tempo para não se render à miséria, Eulália parecia encontrar suas forças no inconformismo, nas lamentações pela morte injusta de Fabiano, naquela eterna luta íntima que estabelecera para si.

Ele, Miguel e Adalina levavam uma vida marcada pela dor e o sofrimento, cercados pelo silêncio, pois Eulália jamais conversava com eles, a não ser sobre o desgosto que lhe consumia o peito, as entranhas, o ar que respirava, e com isso se tornava mais e mais incompreensível…

– Miguel – João buscou forças no infinito antes de se dirigir ao irmão – Eu não quero…

– Chega. Não quero mais ouvir lamentações. Nossa sentença está mais que determinada, João. Pela última vez te digo que não vou deixar que essa paixãozinha ridícula que você tem pela filha desse ai, estrague o nosso objetivo – Miguel terminou a frase puxando uma faca da bainha de sua calça.

Ardente rubor subiu às faces de Josué Ferreira ao ouvir o disparate de que um mero jagunço estaria se enrabichando pro lado de sua filha Maria Inês. A perturbação que lhe tomou de assalto foi tamanha que não conseguiu conter-se. Deu um salto na direção de Miguel, pouco se importando o que poderia acontecer dali por diante.

Por mais que estivesse vigiando o homem que até então lhe fora o seu patrão, Miguel não pôde deixar de ser surpreender com aquele ataque, e muito menos com o chute que ganhou no rosto, fazendo com que sua cabeça pendesse para trás e o corpo estatelasse no chão junto com o rifle, que saltou para fora de seu alcance.

João, ao ver o coronel partindo para cima de Miguel, correu em sua direção, mas Josué Ferreira conseguiu se esquivar, passando por baixo dele, partindo de novo para cima do jagunço caído, chutando sua mão que segurava a maldita faca, que logo aterrissou junto às demais armas caídas no entorno.

Josué Ferreira relanceou o olhar para a faca e de pronto João aproveitou a distração para se lançar sobre ele, fazendo-o cair, de costas, sobre Miguel, que se contorceu sob os dois enquanto lutavam.

O coronel sentiu o desespero tomar conta de seu ser, a adrenalina explodindo por todo o corpo.

Gritou, empurrou, chutou e abriu caminho entre os dois irmãos, usando mãos e pés, socos e desvios, conseguindo se soltar, partindo em direção à faca e por fim aterrissando perto dela a tempo de lhe agarrar e girar o corpo, aguardando um ataque imediato.

João e Miguel estavam acabando de se levantar.

– Vão embora agora. Já – determinou Josué resfolegante – Mas fujam para o quinto dos infernos onde eu não possa encontrá-los, filhos de uma égua.

– Coronel, por favor…

João tentou iniciar uma negociação. Agira por impulso, determinado a proteger o irmão, porém convicto de que não iria ferir o pai de Maria Inês.

– E você seu imundo – iniciou Josué Ferreira – Eu devia lhe cortar os bagos, e acredite, o farei quando nos reencontrarmos…

– Eu amo a sua filha coronel, assim como o senhor ama a minha irmã…

Miguel tentou intervir, fazer o irmão se calar, mas João foi firme, lhe empurrando o braço que vinha ao seu encontro.

– Assim como o destino infeliz quis que Adalina e o senhor se conhecessem, ele também quis que eu e Maria Inês…

Josué Ferreira recuou e atirou a faca. Ela girou pelo espaço entre eles, brilhando sob o sol a pino, e atingiu o pescoço de João. De início não houve sangue, mas logo ele levantou a mão e o choque lhe transformou o rosto. Agarrou a faca enfiada no pescoço e o sangue começou a jorrar, saindo em jatos, conforme os batimentos cardíacos…

 

 

 

 

 

 

 

 

João ainda fez menção em dizer alguma coisa, mas, antes que articulasse qualquer palavra, caiu de joelhos, lágrimas a escorrer por seu rosto…

JOÃO!

Miguel gritou, os olhos arregalados de horror ao fitar o corpo caído do irmão e logo em seguida, mais que ofegante, voltou a cabeça para encarar Josué Ferreira.

Num movimento instantâneo, arrancou a faca do pescoço de João e partiu, cego de ódio, para cima do assassino de seu pai, e agora, também de seu irmão. 

 

*   *   *

A velha Nicolina continuava balouçando em sua cadeira, novamente solitária naquela cozinha depois que Candinha, por fim, saíra para ir de encontro à amásia do coronel.

Sentiu-se, de repente, observada e então respirou fundo, aguardando quem logo surgiria à sua frente.

Chegou a hora, dona Nicolina.

A velha não demorou a reconhecer aquela voz e então sorriu, mesmo entre os dentes ao vislumbrar a imagem de padre Manuel com sua vestimenta negra folgada no corpo anguloso, bem diferente do robusto homem que deixou a fazenda Olho d’Água há quase cinquenta anos…

 

– Pensei que nunca mais nos veríamos padre – ela comentou solícita, como se estivesse recebendo um amigo para uma pequena prosa.

 

 

Nós somos apenas homens, atraídos para agir em nome da vingança que julgamos ser a justiça, gerando mais vingança… Forjando o primeiro elo da cadeia de ódio.

Nagato Uzumaki

 

 

 

¥    trecho do Cordel “A vingança de um inocente”, de João FIrmino Cabral 

 

Notas do autor:

Agradeço de coração a todos que puderam acompanhar esta história, chegando até aqui, no final desses nove capítulos, que podem parecer poucos, mas para mim foram de uma intensidade quase atroz, desafiadora, já que eu pretendia (espero ter conseguido) expor os dramas de homens e mulheres (essas verdadeiras fortalezas) que não são heróis ou vilões, mas que agem e reagem conforme a natureza humana que cabe a cada um…

Orgulho, ciúme, ressentimento e a necessidade de se fazer respeitar foram os mecanismos que incitaram os personagens dessa trama a tomar os caminhos que, infelizmente, decidiram trilhar.

Não os condeno, jamais, porque são “meus filhos”, criados um a um com um carinho e dedicação imensos, desde aqueles que tão somente foram citados até o protagonista, o controverso Josué Ferreira, de menino que fora criado na miséria, passando pelo cangaço, até se tornar o poderoso coronel que se tornou, mas sempre carregando na alma a baixa autoestima que lhe fora imputada pelo pai, pelas circunstâncias, pela vida… A autoestima do indivíduo que se sente constantemente humilhado diminui para o nada se ele não for admirado. A admiração traz respeito e respeito é uma proteção contra o desamparo e contra a insignificância.

E para finalizar, uma frase de Aurilene Damaceno: A VINGANÇA HABITA CORAÇÕES VAZIOS. SE INSTALA COM PERMISSÃO. DESTRÓI COMO UM FURACÃO. É COMO VENENO QUE CORRÓI POR DENTRO. FERE O PRÓXIMO E DILACERA QUEM O SENTE. 

Até a próxima e um grande abraço em todos vocês.

 

 

https://www.youtube.com/watch?v=9jaXO0KNpd

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  • Acaba uma saga que durou o tamanho de uma “mini-série”, mas, não pense que se trata de um título pejorativo, muito pelo contrário, histórias como essas enchem de satisfação o leitor, que só está acostumado a encontrar esse nível de qualidade em um João Cabral de Melo Neto, ou Suassuna, ou Guimarães Rosa.
    Francisco, o autor, não poupa esforços em impor perfis complexos em seus personagens, tramas entrelaçadas, passados pungentes, a vida nua e crua, mas com requintes de uma poesia sertanista bastante coerente e verossímil. Sim, Miguel, João, Adalina, Candinha são qualquer coisa de palpável, pessoas críveis e reais. Os cenários são espetáculo aparte, enriquecidos pelos folclore e costumes regionais que, também, ganharam força nesse eletrizante thriller de ação e vingança.
    Francisco mostrou-se um excelente autor, seguro e versátil e essa história é daquelas que devem ser guardadas na estante ao lado dos grandes autores tupiniquins.
    Muito obrigado e forte abraço.

  • Acaba uma saga que durou o tamanho de uma “mini-série”, mas, não pense que se trata de um título pejorativo, muito pelo contrário, histórias como essas enchem de satisfação o leitor, que só está acostumado a encontrar esse nível de qualidade em um João Cabral de Melo Neto, ou Suassuna, ou Guimarães Rosa.
    Francisco, o autor, não poupa esforços em impor perfis complexos em seus personagens, tramas entrelaçadas, passados pungentes, a vida nua e crua, mas com requintes de uma poesia sertanista bastante coerente e verossímil. Sim, Miguel, João, Adalina, Candinha são qualquer coisa de palpável, pessoas críveis e reais. Os cenários são espetáculo aparte, enriquecidos pelos folclore e costumes regionais que, também, ganharam força nesse eletrizante thriller de ação e vingança.
    Francisco mostrou-se um excelente autor, seguro e versátil e essa história é daquelas que devem ser guardadas na estante ao lado dos grandes autores tupiniquins.
    Muito obrigado e forte abraço.

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