– Então, moço. Num vai prová?
Josué olhou do alto para o menino carcomido, estacionado à sua frente, insistindo com uma voz um tanto agravada e até mesmo “adulta” para a idade que aparentava ter. Por fim, não lhe dispensou o mínimo de atenção, pelo menos não enquanto estivesse terminando de calcular os passos que daria logo adiante, começando por deduzir as possibilidades de reação de seu adversário até o tempo e espaço que precisaria utilizar até o instante da sua iminente fuga.
Nada daria errado. Nada poderia dar errado, concluiu à medida que se convencia da inaptidão do feirante para se defender, apesar do quão habilidoso ele lhe parecera com o manejo do facão ao cortar as frutas que vendia em sua barraca.
O pacifismo que Fabiano aparentava não significava que fosse despido do instinto básico de defesa comum a todo ser humano, a todo animal, racional ou não. O impulso de sobrevivência é algo inerente da carne. É um dispositivo da natureza que nos mantém neste mundo; quando nos vemos acuados, ameaçados, nos defendemos, independente de sermos inocente ou culpado e Josué sabia muito bem como e quando aquele estopim podia ser aceso, afinal, tinha atravessado os primeiros anos de sua vida agindo como uma pessoa sossegada, obediente, um matuto, até à sua adolescência, até aquele maldito fim de tarde, há dois anos, quando atravessou a tosca porta de bambu queimado do casebre onde vivia e se deparou com o pai, de calças arriadas, na altura dos joelhos, movimentando-se violentamente sobre sua irmã, tentando tapar-lhe a boca a todo custo enquanto Inês, completamente indefesa, com o rosto tomado pelas lágrimas, agitava a cabeça, os braços, as mãos, buscando desesperadamente safar-se daquela degradante e desesperadora situação.
Sim. Josué sabia muito bem como e quando a fúria, o asco e o rancor podiam vir à tona e chegar à garganta num só galope, sendo despejados na forma de um grunhido animalesco, transformando um adolescente, até outrora um menino, em um urso gigante, uma fera ferida, disparando impropérios, socos e pontapés contra o próprio pai.
“Está com medo?”. Josué estremeceu diante da pergunta sarcástica de Severino ressoando em sua mente. O hálito fétido provocado pelo excesso da bebida invadiu suas narinas dando-lhe a impressão de que o pai estava ali, caído ao chão, com o facão empunhado na direção do peito, completamente dominado sob o peso do seu corpo.
“Vamos. Termine o que já está querendo fazer desde muito tempo, moleque. Aproveite que seu pai está caído, desarmado, bêbado, e faça o que precisa ser feito. Você é igual a mim, miserável. Nunca será diferente. O meu sangue corre nas suas veias”…
Josué olhou para os lados, e apesar das pessoas indo e vindo, caminhando ao redor, pouco se importando com o seu inferno particular, parecia que ele estava em outra dimensão. De súbito sentiu-se tomado por uma tontura, à priori um pouco débil, contudo, quando sentiu-se desequilibrar, a preocupação lhe invadiu. Temia não conseguir cumprir com o combinado, e outra chance como aquela, que poderia lhe tirar da pobreza extrema em que vivia , talvez nunca mais batesse à sua porta. Respirou fundo e então percebeu braços lhe amparando, não muito fortes, mas o suficiente para não deixá-lo ir ao chão: era o garoto, que lhe oferecia um dos ombros e por conseguinte, mais uma vez, o pedaço de mamão.
“Seu inferno começa agora”. A maldita frase seguida da imagem do pai e seu sorriso amargo no rosto enquanto empurrava contra o próprio peito o facão que ele, Josué, segurava, voltou a corroer-lhe o cranio.
Liberte-me! Josué balbuciou ainda sob o resquício da inusitada vertigem.
Não obstante ao ódio que nutria por aquele verdugo que o destino lhe dera como progenitor, não conseguia compreender os motivos que o levava a ser invadido por uma recorrente sensação descabida de culpa… Mesmo depois de morto, Severino teimava em permanecer como seu algoz.
– Então moço… Não vai prová, não? As fruta do meu painho é a melhor que tem no meio dessa barafunda toda.
Josué finalmente baixou a cabeça na direção do menino, preparado apenas para dispensar o mínimo de cortesia. Deparou-se com uma figura mirrada, cabelos ondulados, escuros, encaracolados e um sorriso passando de lado a lado sobre o rosto. Os dentes a mostra daquela criança, o semblante iluminado, carregado de disposição, o incomodou sobremaneira. Será que o pirralho não tinha noção da miséria em que vivia?
Foco exige autocontrole, Josué recordou uma das primeiras lições de Zé Porcino quando o futuro líder enxergou na sua figura de adolescente o valor, a determinação, a força, a audácia, a energia e a coragem suficientes para que se tornasse um cangaceiro e daí meneou, em seguida, a cabeça, resoluto, semicerrando os olhos por uns segundos, mensurando o merdinha parado a sua frente. A missão pela qual tinha sido contratado precisava ser completada, custasse o que tivesse de custar, rematou frio, impassível, ao passo que começava a buscar agir como um freguês qualquer, agradecendo ao menino o pedaço da fruta ofertada para depois aceitá-la.
À medida que se propunha a experimentar a fatia daquele mamão, seus olhos voltaram a buscar a direção de Fabiano, que atendia a seus clientes por detrás da barraca. Imediatamente Josué viu-se tomado pela lembrança de quando chegou a Areias, há um pouco menos de dois meses, tendo o cuidado de omitir todo e qualquer rastro de sua passagem pelo cangaço. A morte dos líderes do cangaceirismo, tanto de Zé Porcino, como de Lampião, tinha deixado a todos os seus seguidores sem horizontes, lhes permitindo apenas duas saídas: se entregar à polícia ou fugir. Recordou ainda os meses seguintes, quando se alimentou de peixes, arroz solto, feijão, farinha, rapadura, servido por pescadores e ribeirinhos, passando de cidade em cidade, dormindo ao relento, precisando se submeter a situações deploráveis muita das vezes para conseguir o que comer ou uma peça de roupa…
Uma lembrança no meio de uma louca névoa de lembranças de calor, pó, fome, esgotamento e caminhadas por estradas de barro vermelho, terra seca…
– Que absurdo – ele não demorou a gritar ao mesmo tempo que cuspia o pedaço da fruta, quase atingindo o menino a sua frente.
Limpando a boca com o antebraço esquerdo e depois demonstrando no semblante contorcido o gosto ruim que o mamão supostamente havia deixado, Josué disparou, firme, fingindo indignação ao se dirigir ao garoto, que já o encarava, atemorizado…
– Isso você tem que dar é pros porcos!
Não demorou muito para que Fabiano saísse detrás de sua barraca e se aproximasse, não tardando a entender o que estava acontecendo, procurando amenizar, de pronto, o incidente que certamente não passava de um mal entendido.
– O senhor deve tá enganado, moço. Não vendo fruta podre, não. O mamão é certo de tá bom – terminou a frase apanhando o outro pedaço da mercadoria das mãos do filho, provando-a de imediato – O mamão tá bom sim, moço.
-E ainda me chama de mentiroso? – vociferou Josué: a personificação da ofensa estampada no rosto enquanto jogava o que restou do pedaço da fruta, que ainda tinha à mão, sobre a face do feirante, fitando-o de cima a baixo com inabalável segurança – Esse mamão deve tá bom sim… – prosseguiu, seco, arrogante – Mas só pra você e pro seu filho, que são porcos e comem isso.
Fabiano tratou de afastar o seu garoto para longe do freguês insatisfeito que continuava aos berros e não lhe permitia qualquer tipo de defesa, apesar de suas malogradas tentativas de conciliação acompanhadas de pedidos de desculpas.
– O que tá acontecendo, homem de Deus? – questionou sua mulher à medida que amparava o ventre inchado e acariciava a cabeça da filha pequena, já bastante assustada, agarrada à barra de seu vestido.
Josué não parava de despejar um sem fim de desacatos a Fabiano, abarrotando nas suas palavras um tom de perversidade sem igual. O autocontrole e a absurda paciência que o feirante vinha mantendo, começou a desestabilizá-lo, e a aglomeração que só fazia crescer ao redor de ambos só serviu para potencializar ainda mais sua fúria, levando-o, enfim, ao gesto extremo da agressão física.
Fabiano não teve tempo para se defender do soco desferido no lado direito de seu rosto, e nem tampouco do empurrão que o arremessou diretamente na direção da barraca de frutas; tentou se equilibrar, mas acabou rolando para o chão com algumas de suas mercadorias, permanecendo estirado sobre a terra batida, atordoado enquanto tentava entender os motivos para a consumação daquele ataque. Passados alguns instantes, retomou a razão diante da aproximação de seu primogênito, Miguel, que tentava ajudá-lo a se levantar.
O olhar de impotência e desespero, estampados no rosto de seu menino e também de sua mulher, perturbou Fabiano de tal maneira que ele não pode deixar de sentir a humilhação e a vergonha percorrer todo o seu corpo, o que acabou dando-lhe forças para decidir, por fim, eximir-se de toda aquela exposição. Levantou-se e sem titubear apanhou o facão que usava na labuta, surpreendendo e atemorizando, na mesma medida, todas as pessoas que já ocupavam o seu entorno e que trataram de se afastar sem demora ao vê-lo partir possesso para cima de seu agressor. Josué mal teve tempo de saltar para trás no intuito desesperado de se esquivar do golpe certeiro e fatal que levaria no pescoço, porém a sorte não lhe foi de toda favorável, já que não conseguiu escapar do corte que lhe rasgou o canto esquerdo da face, abaixo do nariz, até a altura dos olhos.
Com a mão direita percorrendo o lado do cara tangida e confirmando de pronto o ferimento ao divisar o vermelho de seu sangue empoçado na palma exposta, Josué esbravejou, jogando-se brutalmente por cima do feirante, dando início a uma violenta luta corporal, fazendo com que ambos rolassem no chão, não tardando a dominar com uma das mãos o braço direito de Fabiano, forçando-o a permanecer com o membro pairado no ar enquanto mantinha o facão obstinadamente em punho.
-Filho de uma égua!
Por alguns segundos Josué se questionou se realmente conseguiria quedar o rival diante de sua inacreditável resistência. Justo ele, que já havia enfrentado todo o tipo de ser vivente, não poderia se render, se permitir morrer nas mãos de um feirante franzino e miserável. Definitivamente não tinha mais tempo a perder e num gesto rápido, conseguiu, por fim, desarmar Fabiano e ao ver a arma branca cair próxima de seus pés, não pestanejou, largou o feirante e atirou-se para o lado com uma destreza ímpar, mergulhando na direção do facão, capturando-o, sôfrego, ao passo em que Fabiano terminava de tombar de costas sobre o chão.
– Chegou a sua hora, infeliz.
Josué bradou ao mesmo tempo em que sentia a camisa cada vez mais empapada de suor, partindo, carregado de uma cólera sem tamanho, para cima de Fabiano enquanto o via perder o equilíbrio ao tentar se levantar, pouco se importando pelo fato de que não lhe daria a menor chance de se colocar de pé…
Num gesto instintivo de proteção, Fabiano ergueu a mão esquerda no intuito de se resguardar, sem sucesso, pois não conseguiu impedir o golpe do facão que lhe atravessou a palma, atingindo, por conseguinte, seu ombro, fazendo seu sangue respingar no rosto do adversário, cegando Josué por alguns instantes, obrigando-o a se afastar, permitindo, nesse ínterim, que ele, Fabiano se levantasse.
Atordoado, carregando um semblante completamente irracional, o feirante tratou de avançar contra o opositor sem demora ao passo que deixava escapar um som gutural de sua garganta. Ao vê-lo se aproximar, Josué teve a impressão de que aquela figura mirrada estava duas vezes maior do que realmente era, e, sem hesitar, partiu ao seu encontro empunhando o facão de modo feroz, cravando sem qualquer piedade, na base de sua clavícula, um golpe certeiro, sentindo a lâmina pontiaguda da arma cortar a carne de Fabiano, seccionando suas artérias e trespassando o seu coração.
O corre-corre diante daquela tragédia não demorou a acontecer, enquanto alheio a tudo e a todos, como se estivesse anestesiado, Josué via Fabiano cair de joelhos à sua frente, agarrando-lhe o abdômen, escorregando por suas pernas até tombar por definitivo sobre o solo, dando o seu último suspiro de vida.
Não fosse o bramir de lamentação da mulher do feirante, Josué talvez demorasse um pouco mais para despertar de seu aparente transe. Um tanto disperso, foi retomando a lucidez dos fatos e de tudo o que acontecia ao seu redor e prontamente se viu diante do filho mais velho de sua vítima, que o encarava, estagnado como se fosse uma estátua.
Josué não soube exatamente o que viu nos olhos daquela criança, mas a imagem de seu semblante impassível com toda a certeza o acompanharia por toda a vida. A despeito de todas as atrocidades que cometeu acompanhando o bando de Zé Porcino, jamais havia assassinado um pai diante de seu filho…
– Assassino! Covarde!
Em uníssono, as acusações expressando horror e revolta começaram a chegar até os ouvidos de Josué, que meneando a cabeça, frenético, percebeu o movimento, ainda que claudicante, das pessoas se aproximando, começando a fechar o círculo à sua volta. Puxando o facão do corpo inerte de Fabiano, voltou-se sem demora e fitou uma a uma com o olhar perturbado, mantendo a arma em punho, deixando claro que estava pronto para o que fosse preciso.
– Se alguém quiser ser meu amigo, não se aproxime – avisou aos berros, não encontrando resistência para se afastar enquanto lhe abriam caminho.
Com os passos firmes, seguiu em frente e sem olhar para trás, tendo a certeza de que nunca mais iria tornar a aparecer por aquelas bandas, pois caso o fizesse, receberia um tiro pela cara e seria esfolado para não ser reconhecido quando o encontrassem com os dentes de fora. E assim, já tendo se afastado a um bom pedaço de chão da cidade, com o lado esquerdo da cara todo ensanguentado, sentindo a dor daquele ferimento lhe incomodando de maneira atroz, Josué, arquejando e ainda temendo pela própria vida, encontrou um dos jagunços que estivera na casa paroquial, há três dias. Ele estava à sua espera, já ciente do serviço realizado, e lhe deu a paga merecida e um cavalo para continuar seu caminho.
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Batacotô – “Confins”
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=vLxQ055H_oc]
Mano, que capítulo é esse? Fantástico.
Mano, que capítulo é esse? Fantástico.