O SANTO SALVADOR:
PARTE TRÊS:
XV: E ASSIM QUE RETORNA, VAI ATÉ A SÉ, SATURNINO:
Muito além dos ímpetos empresariais de Jack Torrance, seu supervisor, de angariar novos fiéis e carteiras em potencial, Saturnino de Jesus retorna ao Brasil com fome de bater metas para subir nos patamares da New Light of Hope Church of Jesus. Quem sabe um dia, num sonho esperançoso, tornar-se-ia pastor ou supervisor de célula ou dono de sua própria franquia de igrejas. Grandes conquistas o esperam no Sangue de Cristo! Amém? Amém! Porém, a realidade é um tapa na cara que marca a alma e desorienta todos os caminhos do espírito e bem viver, pois assim que pisou em São Paulo e caminhou pela Sé, Saturnino notou um fenômeno raro: os mendigos, espécie endêmica da região, assim como os pedintes, pombas e vendedores de suas dores e desgraças, já não faziam mais parte de seu cenário. Que estranho, não? O que poderia ter ocorrido? O Santo Salvador! Ainda estavam por lá alguns poucos diabos, todavia, a falta se fazia mais presente, mais marcante e mais gritante, quase um cenário de terra arrasada, a Sé. O que terá ocorrido? Gana higienista. Saturnino olha ao seu redor pedindo informações quando, de repente, vê de soslaio o Cônego Dias conversando com uma mulher suspeita, cafetina de si mesma desde meados dos anos 80, a Dona Amélia Cachaço em pouca roupa. Por que Cônego estava conversando com uma prostituta em situação de praça e pombas? Catequização boca a boca, carne versus carne? Vai saber, Deus.
O importante é que ele, o Cônego, assim que é flagrado em seu sanctus dialogus com uma meretrix por Saturnino em pergunta e dúvida, redireciona seus passos e ações à nave da catedral e banquinhos. “Vamos conversar lá dentro, sim?”, sai de retro encarando a Cachaço, o Cônego. Nave da catedral, água benta e Coca Cola gelada, pois somos todos filhos de Deus, não?! Saturnino engatilha algumas perguntas, ao passo que Cônego as ouve, tentando disfarçar alguns arrotos de Coca: “Sou lá dos Estados Unidos, Sr. Dias”. Cônego o interrompe: “Cônego. Sou Cônego. Apenasmente e exclusivamente o Cônego Dias, ok? O “senhor” está lá no asilo. Mas vá direto ao ponto, filho. Avexe-se! Estamos no Brasil, não precisamos de formalidades, né?!”. Saturnino em tosse: “De fato, é, Cônego. Bem, sou de uma igreja lá dos Estados Unidos. Estou aqui para fazer um tipo de pesquisa de campo, para nos instalarmos por aqui. Queria começar pela Sé, sabe? Lugar onde o povão brasileiro se encontra, sabe?! Mas não vejo ninguém. Da última vez que estive aqui, estava cheio!”. Silêncio. “Muita audácia sua vir fazer pesquisa de campo bem na frente da minha catedral, a casa do Senhor, meu Deus!”, Padre Santiago surge. Olhos rígidos, raiva na voz passiva agressiva e língua nos dentes. O que responder?
XVI: A CONCORRÊNCIA DE ALMAS:
Saturnino e Padre Santiago vão à sacristia conversar. Cônego Dias vai a um dos confessionários exorcizar os males dela, Dona Amélia Cachaço. O ritual traduzia-se em gemidos e gozos que faziam eco em cada canto da catedral. “Oh, meu Deus!”, disseram eles. Eles quem? Padre Santiago, tentando ignorar os berros e gozos através de seu jeito austero, entendendo aos poucos as demandas de Saturnino enquanto fazia sua higiene oral na linguada: “Deixa ver se entendi, em português bem claro!”, tosse, “Você quer trazer pro Brasil a sua Church, sim? E você estava a pensar que ia ter um rebanho gigantesco, uma turba, massa amorfa, para compor essa sua congregação aqui na Sé?! Se você tivesse vindo há uns três meses, você ia encontrar uma miríade de desgraçados. Que pena pra você, viu? Pois o Alef Brasil levou tudo. Eu gostei, até. Levou as frutas podres pra longe enquanto que gente tradicional dos bairros daqui de perto, católicos bem selecionados, passou a frequentar mais minhas Missas. Não ganhei na quantidade. Ganhei na qualidade! Em outras palavras: eu não abro mão dos meus fiéis bem selecionados, viu?!”.
Saturnino em dúvida profunda: “Alef Brasil? Quem? Bem, pelo o que você está falando, deve ser um bom cristão!”. Padre Santiago tosse engasgado: “O quê, meu caro?”, ri, “Bom cristão!? Até parece, meu amor! Pelo visto, você não sabe nada das últimas novidades e figuras horrendas que São Paulo cagou-se nestes últimos anos, não?! Pelo seu olhar, a resposta é um óbvio NÃO!”. Saturnino: “De fato, Padre. Como disse antes, estive nos Estados Unidos nos últimos tempos. Quero gente pra minha igreja. Minha, não. De um pessoal lá de Nova Iorque, sabe?”. “Como disse, não aceito a concorrência de almas. Os meus fiéis seguidores são meus! Ou melhor, do Senhor Jesus de Nazaré, meu Deus! Mas sabe, nem tudo está perdido. Claro, se fizeres questão!”. Um barulho, parecendo um tapão seco numa das portas, deixa o ambiente quieto. Padre Santiago acha estranho, pergunta por Cônego e sua Cachaço. Nada, ninguém em lugar nenhum. O silêncio. Os ombros do Padre Santiago ignoram, e logo fofocam-se em veneno: “Um doidinho de bairro, que saiu até nos jornais e folhas daqui de São Paulo, começou a pregar aqui na Sé. Bem aqui na frente! Aqui, aqui e aquilo, ele, o Alef Brasil, juntou uma gentalha, povo desesperado, e, depois de um tempo ou dois, foram embora daqui pra algum tipo de Jonestown. Embu das Artes ou coisa do tipo. Foram eles, os desgraçados, embora”. Respira. Copo d’água.
Contínua, o Padre: “Por mais diferente que você seja, senhor Saturnino, nós temos uma coisa em comum: o Jesus Cristo! Trabalhamos com o mesmo negócio, mesmo garoto propaganda, só que com abordagens diferentes”. Saturnino: “Não encaro Jesus como um negócio, Padre Santiago!”. Em arroto risonho, o Padre irônico: “Pode até não encarar Jesus como negócio, mas cofrinhos bem recheados não faltam em seus fundilhos e igrejas, né. E outra, cai entre nós, levar uma bolada bem gorda nas burras, faz o negócio crescer como nunca, não?! Isso vale pras igrejas, também!”, pisca um olho e gargalha com o diafragma. Saturnino desarma-se de sua idéia fixa. O Padre continua: “Escute-me, irmão, depois você poderá ir pra casa refletir: esse Alef Brasil, abestado de praça e esquina, não prega o evangelho, não crê em Deus!”, Saturnino fica desconfortável, como se questionasse como alguém que não crê em Deus tem a arrebatadora capacidade de fascínio e palavras; Santiago prossegue: “Que tal tomar para você as ovelhas do Alef? Como disse, tenho minha clientela. Mas você, em Nome de Jesus Cristo, é a fome, a vontade de comer e o banquete, não?! Pai, Filho e Espírito Santo! Posso te ajudar a conseguir os ovelhas de Alef Brasil. Topa? Quero um cristão como concorrente. Não um doido de pedra! Temos um trato?”. Aperto de mãos. “Você gosta dos Beatles? Conhece a Yoko Ono?”, oferece uma cerveja, o Santiago.
XVII: SOCIEDADE ALTERNATIVA, VIVA!:
“É Fantástico: aqui na cidade de Embu das Artes, na região de Itapecerica da Serra, a menos de 40 quilômetros de São Paulo, capital, vive uma sociedade alternativa! Um dos fundadores, Erivelto Mouro, junto de Suelen Santos e Alef Brasil, esposa e sócio, respectivamente, explica de onde veio a inspiração: “Amor! Temos muito amor à liberdade, à natureza e ao ser humano. Depois de vinte anos de ditadura militar, acho super natural um movimento como este, sabe Glória!”. Enquanto o Mouro me mostra o acampamento, fico me perguntando como se alimentam, tomam banho, compram mantimentos, ganham dinheiro e etc.
Eu vou passar uma semana com essa comunidade, que se autodenomina “O Acampamento da Lei, a Sociedade do Amor“. Um pastiche esotérico, religioso e mágico. Quero saber mais sobre sua filosofia, modo de viver, e até como fazem pra usar o banheiro! Tenho certeza, e todo mundo com que falei aqui no acampamento me confirmou, que essa experiência vai mudar a minha vida. Será? Estou curiosa e super empolgada. Vamos nessa? É nesse domingo, matéria completa no Fantástico!”
Clair de Lune no toca-fitas. Segunda-feira pós Fantástico. Manhãzinha. Mini televisão preta e branca à pilha. Alan acorda com sol raiando no quase. Para entender: o acampamento é dividido em um galpão geral de tijolinho e Brasilit com banheiro, cozinha e uma saleta para reuniões ou conjunções carnais (o Alan gosta de um tête-à-tête com suas discípulas e discípulos, também, tudo bom?!). Ao largo do galpão, fazendo uma meia lua inteira, as barracas dos fiéis seguidores dele, do Alef Brasil e suas palavras. O terreno aonde o acampamento situa-se, fora cedido pelo próprio Padre Santiago — para ele, homem santo, a concorrência de almas é inadmissível, sendo melhor jogá-la numa chácara de um alqueire e tanto faz, herança de família, numa cidadela esquecida por Deus, Clero e Nobreza. Pois enfim, respirem. O Alan, que sai descalço de sua barraca num fim de madrugada congelante, observa todos ao seu redor, aquele sal da terra. Fica feliz, contente e alegre. Atingiu, ele e Alef Brasil, seu maior objetivo, propósito de vida, motivo de ter saído do ventre da Vénus de Willendorf: “Me tornei um comunicador. Falo, falo e falo e todos me ouvem!”, retumba consigo mesmo, ele. E o que isso significa? Que era mais que hora de evoluir o acampamento, sendo a Suelen a eleita e a cotada a desenvolver, pensar, transar, traçar e executar os novos passo a passo do Amor e da Lei, junta de Alan. E o Erivelto?
Saturnino de Jesus, que em storytelling bem roteirizado pelo Santiago, sendo ele mais Iago que santo, chegou bem na semaninha das gravações de Glória Maria pro dominical Fantástico. Quem o recebeu foi Erivelto. Em dois tempos, o forasteiro percebeu as entrelinhas do lugar, coisa que Glória Maria não o fez nem com câmera, nem com microfones e nem com gorda produção. Ali, naquele pedacinho de terra, vastidão do esquecimento sem-fim, ocorriam intrigas sexuais, tensões sensuais e muitos tesões sociais que renderiam outras tantas linhas aqui neste texto. Saturnino, do signo de virgem e chato, guardou consigo as sutilezas do lugar até conseguir roteirizar de forma satisfatória seus últimos dias. Uma coisa não acaba “do nada”. Jamais! Uma coisa existe no gerúndio e vai, de tanto em tanto, de gerundismo ao final. Sendo assim, num átimo de segundo das más intenções dele, do Saturnino, era mais que óbvio que aquela trama triangular (Erivelto X Suelen X Alan), necessitava de mais uma face para criar uma nova aresta e destruir tudo em vértices mal encaixados de forma bem engendrada. Tal qual uma sombra, ou igual o cheiro da carne podre e seus mosquitos, o Saturnino alugou a parte de trás das orelhas de Erivelto para brincar de esperpento. Desde o momento que chegou, passou a plantar dúvidas, olhares, comentários e provocações no coraçãozinho dele, do Erivelto. De tantinho em tantinho, o Erivelto passava a ver com olhos sujos e alma podre para Alan Bittencourt, Suelen e o Alef Brasil. O Pai é o Filho? E o Espírito Santo? Todo dia, uma semente, até a terra fazer render. Todo dia, comentários de Saturnino. Todos os dias: “Você viu, Seu Erivelto, que a sua senhora foi embora mais cedo do Culto Ecumênico? Vocês estão trabalhando num novo projeto?”. Todo dia, o dia todo, era o dia tal qual o Filho é o Pai do Filho do Espírito Santo e o amém! E o “tic tac” miserável com seu relógio.
XVIII: ERA UMA VEZ DEUS:
No princípio, era o verbo. Todavia, o verbo nascido, criado e crescido em voz não se materializa, não vira gente de verdade e perde-se aos ventos todos, sabor do destino. Para nossa sociedade feita de fatos históricos pós pinturas rupestres de Lascaux, prensadas por Gutenberg e desvendadas por Turing em doses seguras de DES e cianeto, é necessário que as palavras, os ventos sonoros de nossas gargantas e cordas vocais, estejam psicografadas em tinta e papel. Papel, papel e papel e tinta. Para essa gente, eu, tu, eles, é preciso que os sinais gráficos e acentos estejam bem sinalizados por entre as palavras, pontos e vírgulas, em adesão ao acordo ortográfico vigente. E é a partir desta constatação de papel e tinta que as “95 teses” do Santo Salvador materializam-se. As ideias são deles, do Alef e do Alan, ao passo que os dedos, ouvidos, neurônios e letras e linhas e lorem ipsum, são dela, da Suelen. Haja mão para bater tanto numa Olivetti. Tendinite e paracetamol. Teclar, teclar e teclar! Ué, mas o Alan não fazia uso de seu Macintosh e teclados? Ele não sabia digitar? Sim, de fato, o garoto das finanças usava bastante aqueles teclados, cadelinha do sistema e dígitos. Porém, o Alef não sabia digitar. Preferia não tocar em produtos do imperialismo dos outros. Ficavam eles lá na saleta de reuniões do galpão geral, sabe? Alan só no baseado de seus sentimentos e mato puro, gnose de algum tipo, enquanto eles se comunicavam por ar e viravam voz pelas cordas vocais dele, do Alef. Eles? Das cordas, sibilavam-se até os ouvidos de Suelen os textos que materializam tudo aquilo num papel, papel e papel e tinta.
Muito papel e bastante tinta e teclados. Todo este processo numa Olivetti. Olivetti, Olivetti e Olivetto, pois o texto é propaganda e a propaganda é a alma do negócio, e alma é tudo o que o Alef Brasil mais quer. As palavras escritas estão valendo mais que caixote e marketing! Alan era o Alef e o fim, ao passo que Suelen era o meio. Gita, Raul Seixas. Resumindo: depois de bem boladas e fumadas, as “95 teses” do Alef, tal qual Martinho Lutero, foram pregadas na porta de um centro religioso. Para Martinho, a Igreja do Castelo de Wittenberg; ao passo que para Alan Bittencourt, a Catedral da Sé. Um protestava em reforma, enquanto o outro escrevia em nome de sua voz, propaganda de suas idéias. Egoísmo? Talvez. O que importa aqui, na realidade, é que as “95 teses” do Santo Salvador foram lidas por diversos olhos, causando uma sorte de emoções e resultando em diversas respostas. O clero indignou-se. A nobreza publicou notas de rodapé, notícias e editoriais. Ao passo que parcela do povão, base de pirâmide em recortes populacionais bem marcados, não soube ler. Os que souberam juntar o beabá, mal decodificaram seus significados. Apenas alguns poucos, não necessariamente gente bem nascida de berço, bolso ou boa escola, souberam interpretar aquele mundo de idéias. No fim das contas, aquilo tudo, as “Teses do Salvador”, como ficou conhecido o compêndio do Alef Bittencourt, funcionou perfeitamente como a mais bem feita propaganda de suas doutrinas e idéias e considerações e tensões e fins acerca do mundo e universo.
Transbordando Embu das Artes, a Sé e São Paulo, sim, as “Teses do Salvador” fizeram sua tarefa: publicidade e propaganda d’A Sociedade do Amor, cuja lista de filiados cresceu até meados de 1992. E ele, o Erivelto? Junto de Saturnino, seu catalisador de desconfianças. Respira, meu Deus! O Alan e a Suelen levaram sete dias para escreverem as teses. Não que eles não tivessem paradas para o lanche, ou pro banheiro ou algo que o valha. Mesmo sob as demandas do Alef e da máquina Olivetti, o Alan e a Suellen ainda faziam parte da administração d’O Acampamento da Lei, a Sociedade do Amor. Mas naqueles momentos de escrita, naquela semaninha, de tese fumada e digitada, o Saturnino de Jesus, homem de beijo e Judas, um Iago, jogava ao ar seu veneno em comentários sujos e contaminantes. Igual o fazendeiro que joga agrotóxico em seu milharal para que, logo em seguida, seus filhos jantem pamonha contaminada, magnificação trófica. Mas para quem? Pro Erivelto? Sim e não. Já explico: aos membros do acampamento, dos mais novos e não enturmados, até os mais próximos de Erivelto, ouvidos e pensamentos, o Saturnino, cobra criada, jogava seus venenos, desconfianças aos ares pois sabia que, mais momento ou menos momento, seus chistes dariam bons frutos. Uma história vindo de uma única fonte é anedota. Uma história vinda de várias fontes, informações reverberadas, vai se assentando na cabeça do desconfiado e virando fato, de momento em momento. E era isso, infectar uma gente toda para asfixiar um único homem.
XIX: NOTÍCIAS POPULISTAS E VINGANÇA:
“Grave: vendedora de panos de chão é assassinada em Brasilândia por cobrar vizinho caloteiro. “Ué, e quem mandou ir cobrar?”, dispara vizinha fofoqueira”.
Notícias Populistas, 19/10/1991
“Game Over (?): viúva tem casa invadida por ex-chefe do marido falecido, é sexualmente violada mas ganha vídeo-game no final. “Estou triste, mas meus filhos estão alegres. O que fazer?”, indaga a desconsolada”.
Notícias Populistas, 20/12/1991
“Ave Maria: cafetina de si mesma pega fogo e causa alvoroço na Sé. “Farei uma Missa especial para ela”, lamenta um amigo íntimo”.
Notícias Populistas, 15/01/1992
“A profecia: taróloga famosa alerta para o nascimento do anticristo em Osasco: “Nem Deus terá misericórdia de nós. O Brasil está lascado!”.
Notícias Populistas, 07/02/1992
“Sexo, drogas e traição: após denúncia, três quilos de cocaína levam Jim Jones brasileiro para a prisão. O motivo da denúncia? Descubra nesta edição!”.
Notícias Populistas, 31/05/1992
Foram muitas as vozes que cultivaram o fel e teceram o lenço da desconfiança, até resultar nisso: Erivelto, com o ódio dos inseguros em seu coração e de ouvidos grávidos, incriminou o Alan por tráfico de drogas. Três quilos de cocaína fizeram do Acampamento da Lei, a Sociedade do Amor um dos piores lugares da terra e manchete. Jornais, tablóides e sensacionalismo. “Como que um acampamento religioso, contendo famílias, dizendo-se extensão de Deus, pode ter drogas e ser dirigido por um adicto?”, exclamou a opinião pública. O resultado? Prisão. Calma, respira. Como que três quilos de cocaína foram parar lá no acampamento, meu Deus? Como que essa desgraça, história da vida do Alan Bittencourt, brotou na língua de Erivelto? Atente-se ao caminho da bosta, merda líquida escorrendo: tudo começa com a Alice, a viúva desconsolada do Zé Fernando que, ao tentar filiar-se ao acampamento e dogmas, num conversê, soltou este pequeno detalhe sobre o passado do marido e seu colega de escritório e bordel: “O Alan, o chefe de vocês, foi coleguinha do meu falecido marido. Coleguinha de trabalho, ele”, tosse, “Eles eram usuários de pó. Eram mestres em absorver, haurir, aspirar e cheirar até o nariz ficar em carne viva. Você tinha que ver o Zé Fernando resfriado. Um nojo. Graças a Deus que o Alan tomou jeito, largou o vício e virou o santinho de vocês”. Alice não foi aceita, você já deve imaginar o motivo. Num primeiro momento, Alan ficou bravo com ela e a língua. Em seguida, num segundo momento, com o coração mais ameno, doou-lhe algum dinheiro e a última edição do Mortal Kombat aos seus filhos.
Muita grana? Não, só o suficiente pra ela retornar pra casa da mãe, em Paraguaçu Paulista. “Que fique longe”, sacramentaram o Alef e o Alan. Quem ficou sabendo do passado empoeirado do Santo Salvador foi ela, a Suelen, que comentou com o Erivelto, que contou pro Saturnino, que confessou ao Padre Santiago que riu e gozou. Ele, o Padre Santiago, cheio de humor negro e fel, cacura venenosa, meu amor, foi quem realmente lambuzou-se naquela informação e idéia: “Então o Santo Salvador não é tão santo, assim?! Que boa oportunidade!”. Oportunidade de quê? Excelente oportunidade para plantar os três quilos de cocaína lá na saleta de reuniões do acampamento, e encorajar o Erivelto a denunciar o Alef Brasil. De onde vieram os três quilos de cocaína? De uns conhecidos bem confiáveis e limpinhos do Cônego Dias. “Não me pergunte nem o como e nem o porquê!”, disse ele, o Cônego, ainda tristonho pela morta da Cachaço. Enfim, o que nos interessa saber é que os jornais todos caíram matando! Quando que iriam imaginar que o Santo Salvador, o Alef Brasil, interpretado por Alan Bittencourt, seria um assíduo usuário de fermento de nariz, neve, pó, branquinho, pérola, linha e pó de pirlimpimpim?!
Inacreditável! Inadmissível! Era verdade? Não! Mas desde quando o jornalismo brasileiro se preocupava com a verdade, coisa subjetiva. Um país que viveu vinte e um anos de repressão militar não deixaria tão facilmente o vício da opinião tendenciosa, não?! Lula e Collor que o digam! Sendo assim, pouco importando a verdade e coroando todos os interesses e bolsos, os títulos e leads dos jornalões e folhas de São Paulo e Brasil, foi a prisão do Alan Bittencourt, Alef Brasil, o Santo Salvador. Pra onde? Pavilhão Nove, Casa de Detenção de São Paulo, Carandiru, em 31 de maio de 1992, 125 dias. Comoção, brigas, gente dando depoimento, Padre Santiago fazendo uma vigília em nome do Acampamento da Lei, a Sociedade do Amor. Hipócrita imundo. Saturnino de Jesus tomando protagonismo. Erivelto vingado, mas sem Suelen: “Você tem certeza do que está dizendo? Se for verdade, eu mato eles dois!”. “Calma, Erivelto! Fica tranquilo. Se ele e Suelen estavam ou não, pouco importa neste momento. Temos que ter sangue frio se quisermos ferrar o Alan, certo? O que queremos não é machucar ninguém! Não agora! E aquela história da cocaína? Essa história é perfeita pra ferrar com o Alan. Se ele fosse pra prisão, tipo o Carandiru, seria um sonho!”, riu-se, o Saturnino de Jesus.
FIM PARTE TRÊS.
Depois daqui, leia também: Quando Fala a Noite