Quebrando regras
Na cozinha da fazenda, Eugênia cozinhava no fogão quando de repente apareceu Dario.
— Eugênia. — falou próximo ao ouvido dela.
Eugênia tomou um susto.
— Ai! Dario! Que susto, menino, quer me matar do coração? — pegou um pano e bateu nele.
Dario deu uma risada.
— O que é isso na panela?
— Baião de dois, mas pode tirar os zóios porque não é pra você e sim para os patrões.
— Me dê um pouquinho só? Eu tô com uma fome danada. O dia todo no sol quente sem fazer nada nesta fazenda.
— Tá, só pra você não achar que sou mesquinha porque não gosto de fazer questão por comida.
Ele abriu um sorriso largo vitorioso.
Alguns minutos depois Dario estava sentado à mesa e comia com as mãos enquanto Eugênia o observava sentada.
— Você não tem costume de usar faca, colher e gafo?
Dario mastigava de boca aberta e comia rapidamente como se tivesse lutando com a comida.
— Não. Lá em casa a gente se criou assim sem se precisar disso. — fazia um bolo de comida com as mãos e jogava dentro da boca.
— Você mora com quem?
— Em casa só restou eu e meus pais. Tenho três irmãs: Tereza, a minha irmã mais vêia que casou com um cachaceiro, Manuela que virou rapariga e Ester que está em Maceió e nunca deu as caras por aqui. Eu tinha um outro irmão o mais vêio o Francisco, eu não lembro dele porque quando morreu eu era menino de braço.
— Morreu de quê?
— De fome. Me passa aí a pimenta.
Eugênia passou o frasco de pimenta para Dario e compreendeu o motivo daquele comportamento em relação à comida.
— Sinto por seu irmão. Se quiser mais comida pode pegar. Aqui tem o bastante. — o olhou com pena.
— Eugênia, você é gente fina, o que precisar é só me procurar. — bebeu o copo de cachaça.
— Agradeço, mas espero que eu nunca precise dos seus serviços.
— Nunca se sabe.
Os dois riram.
— Me fale de Maria Rita.
— Já disse que tire a menina Maria Rita dos seus pensamentos e se afaste dela enquanto pode.
— A gente se gosta. Vou tirar ela dessa fazenda e levar comigo.
— Você tá doido? O Seu Félix é capaz de te matar caso tire a filha dele daqui.
— É mais fácil eu matar ele do que ele me matar.
— Você acha que se matar o Seu Félix, a menina vai querer você ainda?
Ele ficou em silêncio por alguns segundos.
— Você é muito enxerido e atrevido por demais, aliás nem devia estar dentro de casa.
— Foi você mesma que me convidou pra comer e me ofereceu mais comida, agora se arrependeu do que disse foi? Probrema teu! Você é que começou com a mentira de dizer a Rita que eu era seu sobrinho padre.
— Noviço, meu sobrinho ainda não é padre. Assumo que a culpa é toda minha, se foi eu que comecei, então, será eu que vou terminar.
— Não, senhora. — balançou o dedo indicador negando e se levantou. — já foi tarde.
— Valei-me por Nossa Senhora! o que você tá querendo dizer, Dario?
— Veja com seus próprio zóios. — afastou da mesa e saiu.
— Isso tá cheirando desgraça, meu Deus!
Amanheceu e Dario estava em frente ao casarão e encostado em uma árvore quando de repente seu pai se aproxima.
— Fio, eu vou na cidade acompanhar Seu Félix.
— Vão demorar?
— Não sei, o caba tá nervoso e soando mais do que tampa de chaleira. Por que você quer saber se vamo demorar?
— Por querer saber, painho.
Iago surgiu.
— Vamo, tio, o Seu Félix tá aperreado só esperando o senhor lá na caminhonete.
— Te cuida, Dario. Vamo, Iago. — saiu junto com o sobrinho.
Se passaram alguns minutos, Dario e Maria Rita estavam no açude. Ela acarinhava a crina do cavalo.
— Os pelos dele são tão macios como cabelo de gente.
— Catamarã, é o meu único amigo fiel. Não confio em ninguém somente nele.
— Em mim você também confia?
Ele não a respondeu e isso entristeceu Maria Rita.
— Você não confia em mim, não é? Como vamos viver juntos como marido e mulher sem ter confiança?
— Confiança não é uma coisa qualquer que se pega e se leva, Rita.
— Se não confia em mim, então, me dá o cabimento de não confiar em você também. — cruzou os braços e demonstrou afeição aborrecida.
— Vai ficar emburrada comigo, é?
— Vou! Você confia mais neste cavalo do que mim, é um absurdo, Dario, difícil de engolir, difícil de aceitar.
— Rita. — segurou o rosto dela. — te quero, não sabe?
— Não sei se me quer de verdade ou é conversa fiada tua.
— Conversa minha? Como assim?
— Eu confio em você, Dario, quando subo neste cavalo não sei pra onde tá me levando. Eu te doou a confiança. Tu é meus olhos pra essa vida aqui fora. — tocou no rosto dele. — eu confio em você, mas é uma pena que não confie em mim.
— Quem faz o que faço não pode confiar em ninguém.
Logo no meio da vegetação, Iago os observam discretamente.
— É alguma regra?
— Talvez…
— Não somos tão bons em seguir as regras. Olha nós dois no açude. — riu.
— É, sim, quer saber? Que vá pra de baixo da égua essa regra também, oxe. — a pegou nos braços e a levou para o açude.
— Pra onde você tá me levando, Dario? — riu.
O casal entrou no açude e se amaram enquanto Iago continuava os observa.
Na cidade, Seu Félix e Seu Romão estavam na sala da casa do vereador JP Andrade, uma figura popular da região.
— Eita demora da boba da peste! — o fazendeiro olhou para o relógio e enxugou o suor da testa com um lenço.
De repente adentrou na sala o JP Andrade, um homem por volta dos quarenta e tantos anos, franzino, cabelos negros e lisos, pele branca, olhos castanhos e estatura mediana. Ele vestia um terno branco, uma blusa azul social, um lenço de cor salmão dentro do bolso e vários broches do seu partido político que estavam pendurados no paletó e usava sapatos pretos sociais envernizados.
— Seu Félix, que honra ter o senhor aqui na minha humilde residência! — abriu os braços e falou em tom alto.
— Honra é a minha de ser recebido pelo ilustríssimo, digníssimo e queridíssimo vereador JP Andrade.
Os dois dão as mãos se cumprimentando e se abraçam dando aquele típico tapinha nas costas.
— Na próxima eleição não se esqueça, hein, volte no JP Andrade, o homem que faz de verdade. — levantou a mão direita fechada e deu uma risada. — Por favor, se sente.
— Pode ter certeza que o meu voto e os votos dos meus empregados serão sempre para o JP Andrade, o homem que faz! — levantou a mão direita fechada, riu e sentou no sofá.
— Eu sei que posso contar sempre como senhor como também o senhor pode contar sempre comigo. Quer alguma coisa pra beber? Uma cachacinha, um café ou um refrigerante?
— Vou querer um café.
— Madá! Madá!
Rapidamente entrou Madá, a empregada da casa, uma mulher franzina, pele parda, vestia um vestido de chita, cabelo preto amarrado no coque e olhava para baixo demonstrando submissão.
— Traga um café para o meu amigo Félix.
— Sim, patrão. Vai querer alguma coisa também, patrão?
— Vou querer um café com açúcar e o senhor quer com açúcar ou sem?
— Sem açúcar tenho que controlar a diabetes.
— É pra já, patrão.
— Espere, Madá! E esse aí quem é? — perguntou olhando para Seu Romão.
— Romão, trabalha comigo. É de minha total confiança.
— Pode ir, Madá, rápido!
— Sim, patrão. — saiu correndo.
— Eu sei o quanto o vereador é uma pessoa ocupada, mas eu estou numa situação calamitosa e desesperadora
— O que houve?
— Perdi minha fazenda na vaquejada.
— Não acredito, Seu Félix. — expôs uma expressão de surpresa.
— É a mais pura verdade infelizmente pelo meu azar. Aquele padreco miserável do Jarbas ganhou a aposta e só tenho um dia contando com hoje para sair da minha fazenda. JP, preciso que reconheça a ajudazinha que te dei na eleição passada e posso te ajudar ainda mais porque sei do seu interesse de ser prefeito de Vila de São Cristóvão.
— Reconheço sua ajudazinha, Seu Félix, mas como eu posso te ajudar?
— Me empreste um milhão e quinhentos.
— O quê? É muito dinheiro. Como vou tirar tanto em tão pouco tempo?
— JP, JP, você sabe que a prefeitura é uma mãe bondosa, atenta e que nunca nega uma teta para um filho com fome.
— Sei não, Seu Félix, eu tenho muita estima e respeito pelo senhor, mas é muito dinheiro para conseguir em um dia. Se tivesse mais dias talvez pudesse conseguir, já tentou falar com o Jarbas e pedi mais um prazo?
— Já, mas o padreco é irredutível, chato, esnobe com aquele jeitinho dele de santinho do pau oco. Ele tá com a ideia de construir uma escola na minha fazenda. Você tem que me ajudar, o amigo JP tem que me ajudar.
— As ordenhas produziram muito leite esses meses na prefeitura acho que o senhor me entende, não é?
— Eu suplico! — ajoelhou e juntou as mãos. — por tudo que é mais sagrado. Aquela fazenda é a única coisa que tenho. Onde eu vou morar com a minha filha cega? De baixo de uma ponte?
— Levanta, por favor, Seu Félix. — o ajudou a se levantar. — Eu vou ver o que posso fazer pelo senhor. Te dou a resposta amanhã pela manhã.
— Amanhã? É o último dia.
— É o que posso fazer, Seu Félix, entenda.
Madá chegou com a bandeja de café.
— Finalmente o café. — o fazendeiro pegou a xícara. — obrigado, fia, quem sabe esse café me levanta os ânimos. — bebeu o café de uma vez.
Após algum tempo no lado de fora da casa do vereador, Seu Félix e Seu Romão caminhavam em direção a caminhonete.
— Nenhum pio do que ouviu aqui, entendesse caba?
— Quanto a isso não se preocupe, patrão, sou fiel a quem me paga.
— Assim espero.
Os dois entram na caminhonete, Seu Romão dirigia e Seu Félix sentado ao lado no banco do passageiro e seguiram pela estrada.
No final da tarde na fazenda Sertaneja, Dario e Rita entraram na sala do casarão e encontraram Eugênia.
— Onde estavam os dois? — perguntou séria.
— Eugênia, a gente estava no açude…
— Menina, se Seu Félix descobrir ele é capaz de matar os dois.
— Ele vai ter que ser muito caba macho de doido pra me enfrentar.
— Não, Dario, não quero que faça mal ao painho.
De repente se escutou na sala o barulho da caminhonete.
— É o patrão! Corre, Dario! Corre! — gritou Eugênia.
— Não vou correr, não sou covarde.
— Por favor, Dario, vá embora! O painho volta aperreado toda vez que vem da cidade e não quero que aconteça uma desgraça.
— Eu vou porque você tá me pedindo. — a beijou.
— Ah! Meu Deus! Por Nossa Senhora! — explanou Eugênia ao ver os dois se beijando.
— Vá, depois a gente se fala depois.
Dario saiu pelos fundos.
— Menina, o que você fez?
— Eu te disse que o amo.
— Que besteira tu fez da tua vida, menina!
Seu Félix entrou na sala.
— O que Rita, fez?
As duas demonstram tensão.
— Vamos, falem! Ficaram mudas de vez por qual motivo? — se aproximou da filha. — Porque seu cabelo e sua roupa estão molhadas, Rita?
— É que a menina…
— Eu perguntei a Rita e não há você, Eugênia.
— Eu cair, painho, cair numa poça e Eugênia me ajudou a levantar por isso que ela me pediu que tivesse mais cuidado porque poderia ter me machucado.
— Suba e coloque uma roupa seca pra não pegar um resfriado.
— Deixa que eu te ajudo, Rita.
Às duas subiram as escadas enquanto Seu Félix sentou no sofá.
— Rita?
— Sim, painho? — parou na escada.
— Tome mais cuidado.
— Sim, painho.
No lado de fora do casarão, Dario dava comida para o Catamarã até que Iago se aproximou.
— O primo Dario é esperto, hein, não demorou muito já tá de rala-e-rola com fia do patrão.
— Quer que tu tá dizendo, peste?
— A verdade. Eu vi os dois no açude.
— Tu não devia tá com painho na cidade?
— Eu devia, é que o Seu Félix me pediu pra voltar no meio do caminho. Quando passei vi os dois na maior esfregação no açude. Dario, tu não tem medo de morrer não, caba? — riu. — se o patrão souber…
— Ele vai saber e será por mim.
— Endoidou, caba? Se o patrão souber, tu é homi morto.
— Seu Félix vai ter que aceitar que vou levar a Rita comigo, ela é minha mulé.
Em seu quarto, Maria Rita estava sentada à penteadeira e Eugênia enxugava seus cabelos com uma toalha branca.
— Menina, sinto cheiro de tragédia e isso vai acabar mal. Se teu pai descobrir que tu tá de chamego com esse pistoleiro…
— Eu o amo e vou me bora com ele.
— Tem certeza? — pegou um pente em cima da penteadeira. — É esse o futuro que você quer, menina? Se mulé de bandido? Vivendo com medo e se escondendo de quem queira vingança? Rita, pense bem, fia, pense antes de você pegar um bucho desse caba e ficar amarrada com ele pra sempre.
— O que mais queria é que Dario largasse essa vida da pistolagem. Ele não quer e até parece que gosta dessa vida miserável. Eu tenho medo sim, Eugênia, e o pior é que o amo e se quero ficar com ele, eu vou ter que aceitar calada.
— Aceitar calada? Menina, tu ainda precisa aprender e muito com a vida. Uma mulher precisa ser caprichosa, saber bem amarrar o homi e não o contrário. O caba tem que tá aqui, oh! — abriu uma das mãos e colocou um dedo sob a palma. — nas nossas mãos e fazer que ele faça tudo que a gente queira sem reclamar. — retornou a pentear os cabelos da jovem.
— É impossível que eu consiga fazer o Dario sair dessa vida de pistolagem. Acredita que ele me disse que confia mais no cavalo dele do que em mim?
— Acredito. Caba igual o Dario não acredita nem na própria sombra, porém como todo boi brabo e teimoso há um vaqueiro que saiba laçar e o domar, entendeu fia? — tocou nos ombros dela.
— Entendi, Eugênia, e como entendi.
Às duas começaram a rir e já articulando como fazer Dario deixar a vida da pistolagem, e será que vão conseguir? O leitor faça sua aposta.
Anoiteceu e Seu Félix se encontrava no escritório e sentado à mesa com afeição de desespero e uma garrafa de pinga ao lado.
— Eu tô morto! Sou um lascado! Minha fazenda! Meus bens! Perdi tudo! Tudo! — deu um soco na mesa e deu um gole na pinga.
Dario à espreita atrás da porta em seguida entrou discretamente.
— Seu Félix.
— Ai! Que susto, peste! — botou a mão sob o peito. — Que me matar do coração? O que quer?
— Quero ter uma conversa de caba macho com o senhor.
— Conversa? Sobre o quê?
— A Rita é minha mulé.
— Como é que é, caba? — levantou da mesa.