O menino nasceu oito meses depois do enterro de Conceição (o médico atestou ataque do coração). Pardinho e Sandro enterram-na com uma oração católica. Como sempre acontecia na fazenda do D’ouro, não se tocou mais no assunto. Por outro lado, Pedro fez festa quando do nascimento do filho, os peões também. Parecia uma criança comum, com as feições do pai. Sarah o recebia nos braços, lhe dava o peito e depois o colocava no berço. Não mostrava interesse pela criança, e muito menos, disposição para criá-lo.

_ Diacho, mulher! Quis tanto um filho, agora que o tem, faz questão de renegá-lo.

Há muito Pedro deixou de procurá-la na cama. Passava suas noites com as negras da senzala, se deleitando nos corpos açucarados do engenho. Não tinha tempo para a mulher. Talvez a colocasse num dos Sanatórios do Rio de Janeiro quando o menino pegasse mais idade, como recomendara Dr. Olegário.

 _ Sua mulher precisa de internação. Assim que a criança crescer um bocadinho, providencio um hospital adequado. Encontre uma mãe de leite na região. A criança vai precisar.

O filho tornara a vida de Pedro difícil. A única certeza que tinha era da loucura da esposa. Sarah passava a maior parte do tempo sentada na cabeceira da cama, olhando o berço do amaldiçoado. Ele recebeu o nome de Álvaro. Ela não deu palpites sobre o nome do filho, apenas assentiu com a cabeça. Nas noites em que Pedro passava fora de casa, Ruivo a visitava. Ele a possuía repetidas vezes, para que não se esquecesse que pertencia ao Inferno. Sarah o recebia no leito, porque era da sua natureza servi-lo.

 _ Tome as rédeas da sua vida e vá cuidar do menino – dizia entre uma estocada e outra.

Ela negava os pedidos do Demônio. Vassoura acocorava-se ao lado dela quando não seguia as ordens do mestre.

 _ É uma criança bonita, senhora. Tem o rosto o pai.

 _ Não deixe que o demônio prospere, Sinhá _ Onofre sussurrava ao pé do outro ouvido _ Dê cabo dessa criança.

Sarah rogava aos céus para que os fantasmas sumissem, para que a deixassem em paz. Mas eles vinham todas às noites, assim que os tambores dos negros começavam a tocar.

Na última noite em que recebera a visita do Ruivo, os tambores se recolheram mais cedo. O menino não estava com ela no quarto, mas com sua mãe de leite no andar debaixo. Pedro se enfiara no casebre que fora de Berenice com uma de suas escravas, enquanto Pardinho e Sandro faziam a ronda.

No silêncio sombrio da Casa Grande, Sarah pegou seu roupão no cabideiro, desceu as escadas nas pontas dos pés e se certificou que o menino estava dormindo. Ela trancou a porta sem que a mãe de leite percebesse. Na cozinha, buscou por querosene junto às lamparinas, fósforo e uma faca. Ela empapou a escada com o combustível e ateou fogo nos móveis. As chamas se espalharam rapidamente pela Casa Grande. Ela ficou olhando para o fogo, sabendo que em breve o inferno cobraria sua prenda. Sarah saiu pela varanda, fechando a porta e empunhando uma faca que pegara na cozinha. Pardinho sentiu o golpe nas costas quando pressentiu a presença da mulher atrás dele. 

_ Patroinha …. _  o sangue do peão pingava no capim do quintal.

_ A Senhorinha precisa matar todos eles para agradar o mestre _ Vassoura sussurrava da plantação.

Pedro montava na negra sem pudores. A escrava tentando lhe agradar na cama. Quando na companhia do Senhor de engenho, comia bem e tomava banhos com sabonete. Só que o deleite entre os dois fora interrompido pela fumaça vinda da Casa Grande. Pedro diminuiu suas estocadas na mulata quando sentiu o cheiro de queimado.

_ Aquiete-se! Sente o Cheiro?

Ele vestiu suas roupas largadas no canto. Quando abriu a porta do casebre, recebeu a lufada de fumaça na cara. Procurou por Sandro na nuvem de fuligem, mas viu as chamas na Casa Grande.

_ Meu Deus! Álvaro!

Ele correu para a varanda, sendo agarrado pelo capataz antes que chegasse até lá.

_ O Patrãozinho não pode entrar. É procurar pela morte morrida.

Sarah pegou o que restara do querosene enquanto as chamas consumiam a fazenda. Pedro e Sandro gesticulavam para o vento.

_Por Deus, homem, meu filho está lá dentro com sua ama de leite.

_ Não há nada que o sinhô possa fazê. O fogo tá brabo demais.

Os escravos na senzala arranhavam as paredes de madeira. Sarah arremessou o restante do líquido no teto.

_ Não faça isso, patroinha _ Onofre falava com ela _ Vai condenar essas almas ao fogo do Inferno.

Sarah pediu com o dedo que fizesse silêncio.

_ Nós precisamos ficar para vigiá-lo.

 Ela ateou fogo nos escravos. As chamas começaram pelo chão, espalhando através das paredes até o teto. Enquanto a fazenda sucumbia aos desejos de sua dona, Pedro e Sandro se afastavam da Casa Grande. As colunas de sustentação do teto começaram a romper ameaçando-os de morto. Depois do estrondo da cozinha, escutaram os gritos vindo da senzala. Sarah havia tirado a roupa. Ela esperou que uma das paredes se rompesse para caminhar em direção ao fogo.

_ Não!!!!

A estrutura da senzala desabou pela metade. Pedro chegou a tempo de ver sua mulher murchando. Ela mantinha o olhar fixos na Casa Grande. Seu alheamento assustou o marido. Nunca a vira tão vazia de sentimentos.

Os olhos vazios da herdeira do D’Ouro se voltaram para o marido. Ele fez o sinal da cruz três vezes enquanto sua mulher ardia nas chamas do Inferno.

***

 A fumaça bruxuleante envolvia as terras do D’Ouro desde a Casa Grande aos campos de cana de açúcar. A senzala se desfazia em chamas. O cheiro de carne queimada era insuportável. Pedro não conseguia distinguir o corpo da mulher em meio aos escravos. Estavam todos num canto, amontoados e desfigurados. Não se lembrado de quando deixou de amá-la. Nunca lhe deu assunto, não quis ouvi-la ou saber quais eram os seus medos. Simplesmente deu de ombros para aquela que lhe dera um filho. Uma criança querida? Pedro não sabia. Vira o menino poucas vezes depois do nascimento, delegara os cuidados dele aos negros. Fora egoísta e intransigente. Por isso perdera tudo: a fazenda do D’Ouro, os escravos e a família.

Sandro olhava para o pobre do Pardinho. Como uma mulher tão franzina causara tanto estrago? Ele apenas coçou a cabeça e fez o sinal da cruz. Um barulho vindo sabe-se lá de onde chamou a atenção dos dois. No começo pensaram que fosse de um animal, talvez um gato. Mas não havia gatos na fazenda do D’Ouro. Ele se levantou com cuidado, pedindo para que Sandro ficasse calado. O barulho ficou mais intenso, vindo da carcaça da Casa Grande. Os dois homens correram pela fumaça, abrindo caminho entre os escombros do incêndio. O grunhido fino vinha dos fundos, do quarto da ama de leite. Quando conseguiram afastar os pedaços das vigas do teto, encontraram Álvaro enrolado nos panos e sugando o dedo.

_ Deus do Céu .. _ Sandro acelerou seu processo de fazer o sinal da cruz _ É um milagre, Patrãozinho, um milagre!

Pedro pegou-o no colo. Sua ama de leite fora queimada até os ossos.

_ Não sei se mereço tamanha benção.

_ Todos nois merecemô, Senhozinho. Nois tudo merecemô uma graça de vez em quando.

***

Falta de sorte. Foi o que disseram os Senhores de Engenho quando ficaram sabendo do acontecido nas terras dos Servatos. A má sorte do D’Ouro levou Pedro à falência. As histórias sobre o fogo correram os quatro cantos da Caatinga, mesmo com os esforços de Sandro em mantê-las em segredo. A fazenda foi colocada à venda, mas não houve compradores. Para alguns, o Demônio que enlouquecera Sarah ainda morava naquelas glebas, assim como os espíritos dos escravos mortos por ela naquela noite. Alguns diziam vê-los vagando pela plantação, outros debruçados na carniça junto com os carcarás. Corria à boca pequena, que a Senhorinha do D’ouro aparecia em noites de lua cheia, assustando os homens que viajavam pelas trilhas de sua fazenda. Pedro mantinha os curiosos afastados, para que não chegassem perto de Álvaro. Os boatos de que fora gerado pelo Demônio atraía curiosos e fanáticos religiosos.  O menino que sobrevivera ao incêndio tornara-se uma lenda no Vale do Açúcar.

Reconstruir a casa grande exigia dinheiro, coisa que Pedro não tinha. Os bancos negaram o empréstimo e seu pai também. Não restou outra alternativa para o Patrãozinho que não fosse de criar gado. Ele não tinha escravos, mas o suficiente para manter dois peões e algumas cabeças de vacas leiteiras. Uma utopia que se tornou realidade com muito trabalho e algumas falcatruas que lhe custaram o olho esquerdo. Muitos diziam que as glebas do D’Ouro continuavam sobre a tutela do Inferno, por isso Pedro prosperava com suas vacas; algo tão improvável quanto o cultivo de arroz. O Senhor da Fazenda do D’Ouro dava de ombros para a conversa fiada sobre seus negócios. Se continuasse prosperando, seu menino continuaria em segurança sobre a proteção de seus homens.

_ Leve-o na escola e fique de olho nele. Não deixe que aquele padre abelhudo se aproxime.

_ O sinhô que manda, patrão.

 Somente quando matriculou Álvaro na faculdade de Direito na cidade do Rio de Janeiro, sentiu-se aliviado. Finalmente cumprira com sua missão. O menino não precisava mais dele. Tornara-se um homem, dono do seu próprio nariz. Olhando para ele agora, lembrou-se de Sarah e do jeito como cuidava das coisas.

_ Dr. Advogado Álvaro Dias de Souza Servato _ Pedro o observava com os olhos generosos de um pai _ Sua mãe teria muito orgulho de ti, filho.

_ Ela era uma louca e o senhor sabes disso _ ele olhou para os sapatos. Estavam lustrados e bem alinhados _ O senhor acha que os Braganças estarão na festa? _ Perguntou mudando de assunto.

_É bem provável _ Pedro não quis voltar na prosa.

_ O Senhor meu pai não deseja mesmo me acompanhar até o baile?

_ Estou cansado. Essa noite quero dormir um sono justos.

_ Não é todo dia que se forma um filho na faculdade do Largo de São Francisco _ Álvaro tocou-o nos ombros.

_ Eu sei, mas não tenho ânimo para mais uma festa.

_ O senhor é que sabe, pai _ Álvaro beijou-o no rosto _ Mas eu preciso ir. Já estou atrasado. Preciso chegar mais cedo, tenho que fazer alguns contatos.

_ Ainda não tirou aquelas ideias sobre política da cabeça?

_ Claro que não. A monarquia precisa de homens como eu. Quem sabe não consigo um cargo na diplomacia do País? Opções não me faltarão.

Pedro não se lembrava de ter sido tão ambicioso um dia. Mas era de outra geração, uma época em que a terra significava às raízes de uma família.

Depois que encontrara Álvaro no que sobrara do incêndio, sua vida mudou. Viveu para aquele menino, dando-lhe amor e estudo. Evitara se casar de novo. As mulheres não combinavam com seu novo estilo de vida.

_ Pretendo dormir cedo. Quando chegar não faça muito barulho.

_ Não prometo nada, pai.

Álvaro desceu para o rol do hotel. Pretendia caminhar até a Faculdade de Direito. Ficava há poucas quadras de onde estava hospedado, e não fazia sentido esperar por uma charrete.

Uma mulher de rosto queimado espreitava na noite. Ela caminhava com a ajuda de um cajado, carregando um saco de estopa e algumas folhas velhas de jornal. Ela forrou o chão com eles, esticando as mãos deformadas para que depositassem alguns contos de Réis. Os estudantes do Largo do São Francisco davam de ombros para a velha aleijada que se arrastava entre eles. Importava apenas os trajes e não as mazelas humanas. Indiferente ao mundo, Álvaro seguia seu rumo, sem perceber que a mulher o chamara pelo nome.

_ O que disse, senhora? _ perguntou sem perceber a lâmina na mão da velha. Os olhos tristes da mulher eram iluminados pela lua que abrandava à noite escura.

_ Álvaro _ ela se aproximou com os passos de uma idosa. _ Tornou-se um homem bonito, filho.

_ O que?

_ Parecido com seu pai.

A velha tocou seu rosto. A mão enrugada tinha marcas de sangue. A mulher que gerou o filho do diabo enfiou a faca no abdome do seu herdeiro. Ele tentou afastá-la, mas a lâmina se afundara no ventre, envenenando suas entranhas.

_ Eu venci você, Demônio, eu venci.

A velha beijou a face da besta.

Álvaro sangrava no chão do Largo do São Francisco. Os transeuntes o cercaram, tentando estancar o sangue que regurgitava no chão do Largo do São Francisco.

_ Chamem uma ambulância! Chamem uma ambulância!

Sarah se ajoelhou ao lado dele.  Onofre ficou de pé, Pardinho à frente. Os escravos do D’Ouro se acocoravam junto a Patroinha.

_ A Sinhá fez o certo. O diabo não pode próspera entre os homens _ disse Berenice.

A mãe prestimosa dava conforto ao seu único filho.

_ Fostes uma criança muito desejada – o rosto frio de Álvaro padecia sobre as palmas do fantasma. _ Mas não posso deixar que seu pai vença.

A besta sibilava seu gemido irônico através do filho. As mãos de Álvaro envolveram-na pelo pescoço, trazendo-a para perto dele.

_ Criatura de pouca fé. O Demônio sempre vence.

O riso do Diabo do D’Ouro misturava-se ao barulho das rodas da ambulância. Sarah recebeu um beijo do filho no rosto. O Inferno cobrava sua prenda.

“Escreva como uma menina.”

Goiânia, 16 de fevereiro de 2020

Sylvana Camello

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