_ Ele parece morto há mais de duas semanas _ disse Januário.

_ Diacho, Sinhozinho! Isso não pode ser. Eu falei com o cabra ontem _ Sandro fez o sinal da Cruz três vezes.

Pardinho levara Conceição e Sarah para a casa grande. As duas precisaram tomar um copo de água com açúcar.

_ Acho que a Fazendo do D’Ouro precisa de um padre _ Januário mantinha o lenço no nariz.

_ Não diga besteira, homem _ Pedro balançava o chapéu para espantar as varejeiras _ O calor acelera a podridão. Deve ter morrido de madrugada, como acontece com as vacas paridas.

_ Já vi carne podre antes, mas nunca desse jeito, não mesmo.

_ Misericórdia! _ Sandro ficou prostrado diante do corpo _ O que vamu fazê, Patrãozinho?

_ Quero que apronte a carroça e vá até o Recife. Chame o delegado aqui. Fale sobre o Ruivo e o desaparecimento de Onofre.

Sandro coçou a cabeça.

_ Eu preciso anotar, Patrãozinho, senão esqueço.

_ Você entende de letras, homem? _ A pergunta de Januário deixou o peão desgostoso.

_ Claro que entendo, moço. Sei ler, escrever e fazer conta de cabeça.

_ Então anote e vá, Cabra. Pegue a estrada depois do Almoço. Com sorte, chega ao Recife em três dia.

_ Sim Sinhô.

Pedro tirou o lenço do bolso para tapar o nariz.

_ Meu Deus! Que cheiro é esse? Vou ter que enterrá-lo no D’Ouro.

 _ Creio que não tenha outra opção. Isso não aguenta esperar por três dias.

_ Vou buscar dois negros bons de lida. Fazemô a cova no morro. Quando o delegado chegar a gente desenterra e manda pra família – disse Sandro.

_ Enrole-o em vários sacos de estopa. Vamos ver se aguenta até lá.

Sandro assentiu com a cabeça. Januário cobriu o corpo com um cobertor.

 _ Melhor seria se colocássemos fogo nele.

Pedro devolveu o lenço para o bolso. Melhor seria se pudesse tirar umas férias no Porto com Sarah.

***

Sandro trouxe o delegado cinco dias depois de ter deixado a Fazenda do D’ouro. Pedro explicou o que aconteceu com o Ruivo e do Sumiço de Onofre. O policial fez uma busca na redondeza com alguns peões das fazendas vizinhas. Não encontraram rastros do Capataz. Ele fez um relatório janota, dizendo que o homem desaparecera na caatinga, atacado por um animal selvagem. Ninguém contestou o relatório janota. Também não sabiam o que dizer, ou fazer em relação a Onofre. O melhor era dar de ombros para a história. Para o que não

Depois de muita conversa, decidiram desenterrar o Ruivo para levá-lo embora. A esposa do Capitão do Mato não demonstrou interesse em receber o corpo. No entanto, nem Pedro, e muito menos Sarah, queriam que o homem ficasse no D’Ouro. Se a polícia não o entregasse para a família, o enterrariam na caatinga.

 _ Não quero um caçador de negros enterrado nas minhas terras. É responsabilidade do Estado cuidar dele _ Sarah argumentou para o Delegado.

_ Não se preocupe, Senhora. Vamos dar um jeito.

Uma carroça veio do Porto trazendo um caixão. Os peões acompanharam Pedro até o desenterro. Três negros abriram a cova, enquanto os policiais preparavam o translado. Januário quis ver pela última vez o cadáver. Nunca vira decomposição tão rápida em um corpo, nem quando da morte de seu avô no alto da caatinga.

Assim que os negros fincaram a última pá no chão, uma nuvem de insetos voou da cova, derrubando o delegado no capim e os escravos no barro. O corpo de Josué sopitou, arrotou e estremeceu. Eles saltaram do buraco para perto de pardinho.

_ Jesus, Maria e José!

O zumbido das varejeiras era ensurdecedor, assustando os cavalos da carroça. Pedro correu para segurá-los; para que não quebrassem as pernas. Os insetos sobrevoavam o D’Ouro em ondas cadenciadas, em investidas sobre a cabeça dos homens.

_ Elas estão voltando, estão voltando!

Como que sugadas por um imã, sumiram atrás de um juazeiro. Por alguns minutos os zumbidos cessaram. Quando os homens levantaram suas cabeças, as moscas reapareceram entre as folhas do juazeiro para subir aos céus num voo sorvedouro.

_ Meu Deus do Céu! _ O delegado limpava a roupa _ O que foi aquilo?

No buraco havia apenas o corpo do Ruivo enrolado nos sacos de estopa.

_ Para onde elas foram? Para onde elas foram? _ Perguntou Pardinho.

_ Preciso que alguém cuide disso. 

_ Moscas varejeiras não são pragas, Pedro. São carniceiras _ disse Januário.

_ Isso é coisa do demo, do demo _ gritou um dos escravos tentando acalmar os cavalos. _ O Diabo fez moradia na Fazenda do D’Ouro.

_ Cala a boca! _ Pediu Pedro _ Tirem o corpo daí e o coloquem na carroça.

Os homens fizeram contrariados. O corpo de Josué estava seco, sem as vísceras. O odor de podre era tão forte que chegava até a Casa Grande.

_ Leve-o daqui Delegado. Que a família cuide dele.

Não houve reza para o morto. O mais velho dos escravos rogou por Nossa Senhora (era homem católico, de fazendas antigas). Januário piscou ressabiado. Os dois fizeram o sinal da cruz.

O Delegado do Porto não entregou o corpo de Josué para a viúva. Logo que deixaram a Fazenda do D’Ouro, jogaram-no numa cova rasa na caatinga. Ninguém ficaria sabendo, nem mesmo os carcarás.

***

Ninguém se atreveu a tocar no assunto do Ruivo. Quando um dos negros invocava o Coisa Ruim na fala, Sandro tratava de repreendê-lo com seu chicote. Pedro não gostava do jeito truculento do novo capataz, mas não quis lhe colocar freios. Os pretos precisavam aprender a manter suas bocas fechadas. O próprio Senhorzinho do D’Ouro mantinha-se avesso sobre o assunto. Não era religioso, mas tinha apreço pelas crenças dos outros. Somente Conceição lhe tirava do sério.

_ O Demônio tava dentro do corpo daquele homem, Patrãozinho. Ele veio através dos olhos leitosos daquele escravo.

Ela sempre fazia o sinal da cruz quando falava do Ruivo. Pedro pedia para que não tocasse no assunto perto de Sarah. Percebia-se que a mulher não se sentia bem quando falavam das coisas estranhas dos últimos dias. Todos obedeciam, menos Conceição.

_ Ele ainda tá aqui, Sinhozinho, nessas glebas malditas. O sinhô precisa benze nois, a plantação e a terra. Livrar a Fazenda do D’Ouro do Coisa ruim.

_ Aquiete-se, mulher! Não vou chamar nenhum padre, vá cuidar do seu serviço.

Conceição murmurava sua reza para depois deixá-lo em paz.

Os dias seguiram ensolarados, com sequidão e umidade baixa. Os boatos correram até as outras fazendas, assustando os senhores de engenho. Mesmo com a produção de um açúcar de qualidade, Pedro teve dificuldade em vender suas sacas. Diziam à boca pequena que o Demônio se alojou no D’Ouro, que a plantação fora amaldiçoada. Pedro procurou outros mercados, gastou com o transporte, mas conseguiu escoar seu açúcar. Teve pouco lucro, apenas o suficiente para começar um novo plantio.

_ Maldita hora que demos abrigo para aquele homem _ praguejou Sarah.

_ Dê tempo ao tempo. Logo vão esquecer. Não há maldição que perpetue a vida toda.

Sarah sentia-se cansada, sem apetite. Sempre que tentava comer, o estômago regurgita a comida, fazendo-a colocar tudo para fora.

_ A Dona não tá bem não _ disse Conceição. _ Tá muito magra. O Patrãozinho precisa trazer um médico aqui.

A Senhora do D’Ouro ficou doente dias depois. Não conseguia comer e nem se levantar da cama. Seu rosto encovado preocupou Pedro, que pediu para Pardinho buscar um médico no Porto.

_ Volte o mais rápido possível. Não fique de conversa nos bares. Não é uma viagem de passeio

_ Pode deixar, Patrãozinho. Trago o médico num piscar de olhos.

No outro dia, o Dr. Olegário chegou enfastiado na Fazenda do D’Ouro. Ele examinou Sarah com um sorriso capenga, meio sem graça.

_ A Senhora vai ter um filho. Parabéns!

_ O quê?

 _ A senhora carrega uma criança no ventre.

Sarah desmaiou antes de receber o abraço do marido.

***

Conceição segurava os pés da grávida tentando mantê-la presa na cama. Dr. Olegário prendia seus braços na cabeceira para que Pedro tentasse acalmá-la.

_ Tira isso de dentro de mim! Tira! Tira! _ Sarah se retorcia como uma cobra.

_ Calma, Sinhazinha _ Conceição fazia força com as mãos, marcando o tornozelo da patroa _ A Senhora tem que se acalmar.

_ Eu não quero isso dentro de mim! Não! Não!

Pedro segurou-a pelos cabelos, para que não batesse a cabeça na parede.

_ Me solta! Me solta!

Sarah mordeu o braço do médico.

_ Ahhhhhh! Meu Deus do Céu!

Com os braços, jogou Conceição no chão, para depois pular sobre ela e correr pelo quarto. Pedro tentou alcançá-la, mas esbarrou no pé da penteadeira. Ela desceu pelas escadas, saindo pela varanda.

_ Ela parece possuída, Patrãozinho!

Sarah corria de um lado para o outro na fazenda, esmurrando a barriga, gritando para que abrissem seu ventre.

_ Tirem isso de dentro de mim! _ Pedia para os escravos.

Alguns deles trabalhavam à terra, preparando-a para o replantio. Pardinho viu a patroa se aproximando, mas não se atentou para o fato dela procurar por uma enxada. Quando viu que um dos negros olhava para seu vestido rasgado, puxou-a das suas mãos.

_ Sarah! Sarah!

Pedro corria com o médico. Conceição buscou por Sandro, que trabalhava nos campos aos fundos da Casa Grande.

_ A Patroinha maluqueceu _ disse com os bofes para fora _ Ocê precisa alcançar ela, senão vai fazer besteira.

_ Do que cê tá falando, mulher?

O capataz viu Pedro levar um golpe de enxada na barriga.

_ Meu Deus do Céu!

Pedro foi ao chão, sentindo apenas um puxão no tórax.

_ Você tem que tirar isso de dentro de mim! _ O machado mirava a cabeça dele.

_ Calma, amor _ O sangue escorria pelas roupas _ Vamos dar um jeito.

_ Você tem que tirar isso de dentro de mim! _ O machado balançava com o empuxo do vento.

Conceição chegou com Sandro.

_ A Senhorinha precisa descansar _ disse tentando acalmá-la _ O dia tá muito quente, precisa de uma boa limonada.

_ Me ajuda Ceiça, me ajuda.

Sandro aproveitou o descuido da patroa para rendê-la por trás.

_ Não! Não!

Ela não parava de tremer. Sandro imobilizou-a com o joelho, para que parasse de se mexer. Quando a viu quieta, segurou-a com cuidado.

_ O Sinhô tá sangrando, patrãozinho _ observou Conceição.

_ Não tem importância. Eu estou bem.

Sarah não se mexia mais. Avistava-se seus olhos assombrados entre os braços de Sandro

***

O médico receitou calmantes naturais e vitaminas. Disse que fora um surto nervoso, nada mais que isso. Fez um exame rápido em Sarah e constatou que o bebê estava bem. Quis ir embora antes do anoitecer, mesmo correndo riscos pelas estradas bravias da caatinga. Pardinho o levou, para se afastar da Casa Grande. Pedro ficou ao lado da esposa, preocupado com sua situação. O golpe que levara no abdômen causou apenas um arranhão. Teve sorte, disse Dr. Olegário.

_ Com um pouco mais de força no cabo ela teria …

Pedro manteve as mãos de Sarah presas às suas.

_ Tem que tirar isso de dentro de mim, tem que tirar isso de dentro de mim _ murmurava durante o sono.

Conceição fez o sinal da cruz quando a escutou falando daquele jeito. Sentia apreço pela menina que ajudou a criar, mas o diabo vigiava seus passos, fazendo-a sucumbir diante daquela gravidez.

_ Eu me deitei com ele, Ceiça, eu dormi com o Demônio … e eu gostei, eu gostei! Deus vai me castigar. Todos vão me castigar.

A loucura da Senhorinha do D’ouro durou semanas. A escrava segurava suas mãos quando seus delírios se tornavam mais intensos. Com o terço na outra mão, fazia suas orações. O menino no ventre precisava de ajuda, assim como a mãe que padecia naquela cama.

_ A Patroinha não deve se preocupar. Deus é maior que tudo nesse mundo. Ele há de lhe ajuda.

Duas semanas depois do destempero da sinhá, Conceição se sentou na cadeira perto da porta para vigiá-la. Estava cansada e não era mais uma menina. Precisava de uma boa noite de sono. Sarah dormia tranquila, com a cabeça fora do travesseiro A escrava se permitiu fechar os olhos, para alongar suas pernas e se refestelar na beirada da cama. O coaxar de um sapo embalou o cochilo da escrava. Sarah acordou com fome, os olhos grudados no teto e a criança pulando no ventre. Ela cravou as unhas na barriga para que parasse de afrontá-la.

Ela levantou da cama arrastando os pés. Sentia-se faminta. Precisava comer para alimentar a criatura que crescia dentro dela. Pensou em rezar, pedir para que o menino fosse filho de Pedro. Mas achava isso muito improvável. O que habitara o corpo do Ruivo à engravidara. O Demônio que rondava as terras do D’ouro plantara sua semente nela.

Vassoura estava acabrunhado na escada. Ele não a assustava mais. Assim que a viu, ofertou seu sorriso de dentes perfeitos.

_ A Senhora precisa se alimentar _ ele apontou o bucho de Sarah _ O menino tem fome.

Sarah foi para à cozinha. A porta da despensa estava aberta. Havia a carcaça de um porco pendurada no teto. Ela arrancou-a, jogando-a no chão. A Senhora do D’Ouro começou a comê-la. Não sentia o gosto da carne crua, apenas mastigava aquilo que seu ventre mandava.

Conceição acordou com o barulho. Ela não viu a patroa na cama. Preocupada, desceu apressada as escadas com medo de que a menina tivesse tido outro surto de loucura. Quando entrou na cozinha, se assustou ao ver a moça debruçada sobre a carne.

_ Pela glória de Deus!

Ceiça fez o sinal da cruz. Sarah rosnou para ela com os olhos da besta. A escrava correu para o quarto esfregando o peito. As mãos que um dia embalaram aquela menina alcançaram a maçaneta com dificuldade. Um bater de asas fez com que fosse até a janela. Ceiça viu as moscas no juazeiro.

_ Bendito seja o Espírito Santo! _ Elas voaram para dentro da casa com seu movimento sorvedouro.

_ O Mestre não gosta da sua Reza _ Vassoura estava atrás dela, apertando seu pescoço _ Tá assustando o menino.

Conceição chegou até o corredor. O sibilo dos insetos atrás dela. O mal sorria através do cego.

_ Pelo poder do Espírito Santo. Eu rogo por ….

A besta voou para cima de Ceiça.

_ Eu já disse que o mestre não gosta da sua reza.

A escrava rolou pela escada, batendo a cabeça no último degrau. O movimento sorvedouro das varejeiras estrangulando seu pescoço com a força descomunal do diabo.

Sarah ainda se alimentava quando ouviu o barulho de Ceiça caindo. Precisava saciar a fome da criança. Caso contrário, ele devoraria suas entranhas.

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