Preciso reviver, eu bem sei, mesmo que só na lembrança, voltar à minha antiga casa, rever a minha infância e todos os momentos felizes que lá passei.
Clarice Pacheco
Rapsódia
Desde o instante em que saímos do meu apartamento até atravessarmos o hall do prédio, eu e meu jovem acompanhante mantemos um relativo estado de silencio. O garoto é esperto, percebeu com minhas respostas lacônicas o quanto eu pretendia ficar isolado. Possivelmente já deve conhecer como funciona essa dança pós foda fast food onde não há espaços para expectativas, intimidade e nada de mimimi.
Mesmo sob os olhares de esguelha e até mesmo esquivos de alguns moradores, continuamos o nosso caminho. É incrível a disparidade da natureza humana sobre a hipocrisia. Ao mesmo tempo em que as pessoas fazem de um tudo para saber com quem dividimos a cama, também se acham no direito de ter conflitos sobre se é aceitável ou saudável fazer sexo casual estando ou não fora dos limites de relacionamentos românticos e estáveis, apontando o dedo para aqueles que conseguem encarar essa situação sem dramas, pré-julgamentos ou pós-condenação. Poupe-me! Como disse Jorge Amado em Tieta do Agreste, não ponho a mão no fogo por ninguém, sobretudo porque verdade cada um possui a sua e razão também.
Claro que não sou tão frívolo a ponto de descartar uma pós-trepada como se tivesse empurrando um prato vazio para o lado depois de uma refeição, mesmo essa refeição não tendo passado de um mero pão com ovo, mas não estou com cabeça ou sequer disposição para seguir regras de etiqueta, por mais banais que possam parecer. A notícia que Adoniran jogou sobre mim está me afetando além do permitido. Na verdade eu já havia estipulado que nunca haveria espaço para qualquer tipo de concessão no que diz respeito à Arena além da ajuda financeira que tenho enviado nesses últimos quinze anos. Já gastei tempo demais da minha vida tentando justificar o injustificável, transformando lobos em cordeiros até conseguir alcançar esse patamar aonde venho convivendo veladamente e sem qualquer pesar com os demônios que me perseguem, organizando minhas emoções, sombrias ou não, transformando-as em chamas para iluminar as regiões infernais da minha alma.
Não vou regredir e nem vou me permitir perder o controle da situação. As coisas são como são e ponto. Pessoas adoecem todos os dias nesse mundo e o velho Ezequiel deve agradecer ao “seu deus” por estar lhe permitindo ter a oportunidade de receber um tratamento digno. Estou fazendo além do que eu deveria, portanto não vou carregar essa cruz.
Assim que terminamos de atravessar a porta automática para sair do edifício, eu e o boyzinho avistamos Gustavo parado à beira da calçada como um dois de paus, de braços cruzados e ainda sustentando uma cara de poucos amigos. Ele está ao lado de um Ford Focus, preto, provavelmente o tal carro que a administração da ABL me disponibilizou. Mal conseguimos avançar três passos, inclusive para que possamos liberar o caminho de entrada e saída do hall, e o meu assessor já está a poucos centímetros à nossa frente.
Um tanto indiferente, porém sem deixar a cortesia de lado, Gustavo comunica ao rapaz que o colocará em um táxi ao mesmo tempo em que faz um sinal quase imperceptível para que ele o acompanhe.
– Por favor, não é preciso se incomodar – o garoto pede num tom de súplica enquanto alterna o olhar entre mim e Gustavo – Eu vou de metrô e…
– O táxi já está aguardando, por gentileza – Gustavo comunica com uma expressão sombria no rosto ao mesmo tempo em que se volta para dar início ao trajeto que certamente o levará até o tal táxi.
Eu e o boyzinho nos despedimos num completo mutismo; tão somente um sorriso vago no canto dos lábios e um tímido aceno de cabeça é o que conseguimos trocar antes dele se virar e seguir o meu assessor. Ao passo em que o vejo se afastando, vou mesclando minha atenção entre as pessoas indo e vindo (mergulhadas no caos de uma urbanidade esquizofrênica), no carro estacionado à minha espera com os vidros fumês fechados e no posto de gasolina do outro lado da rua e sua loja de conveniência. De súbito sou invadido pela lembrança prazerosa quase imediata de uma tragada. Já não coloco um cigarro na boca há muitos, muitos anos, graças a Aramis, que descanse em paz, mas vou precisar quebrar a promessa que fiz a ele e a mim mesmo…
Sem titubear e aproveitando o sinal que ainda está vermelho, atravesso a rua tão rápido como uma lebre em fuga, e numa sucessão de gestos beirando o irracional avanço para a loja de conveniência porta adentro e peço em alto e bom som a carteira de cigarros e um isqueiro. Sei muito bem que fumar não ajuda a lidar com o estresse, é mais que comprovado que o cigarro não possui nenhuma substância relaxante e não resolve nenhum problema do dia a dia, mas por Cristo, eu preciso dessa válvula de escape neste momento.
Já do lado de fora, depois de retirar um único cigarro da carteira e em seguida jogá-la na lixeira, vislumbro Gustavo do outro lado da rua me aguardando imperiosamente. Reconheço que é sempre empolgante vê-lo assim irritado, uma drama queen contida. Por vezes tenho a impressão que ele se acha a própria rainha Elizabeth. As duas. Dou de ombros, de modo negligente, e atravesso de volta.
– Precisamos ir – ele informa antes mesmo que eu termine de subir a calçada, como se estivesse prestes a me acompanhar até o cadafalso – A cerimônia está marcada para iniciar dentro de quarenta e cinco minutos…
– Vou fumar um cigarro – respondo desviando o olhar imediatamente enquanto acendo o meu pequeno rolo estreito e comprido de tabaco.
– Eu não acredito que você vai voltar a fumar a essa altura do campeonato – a indignação de Gustavo beira o clichê, fazendo com que se pareça uma diva histriônica declamando seu texto para uma plateia ávida por ouvir sua voz, rastrear seus gestos e embevecer-se de seu talento um tanto duvidoso, porém seria menos patético se não estivéssemos de fraque e em uma calçada onde as pessoas atravessam nosso caminho pouco se importando se existimos sobre a face da Terra.
– Não estou voltando… – consigo enfim dar a primeira tragada e uma rápida sensação de bem-estar, quase como um aconchego, percorre todo o meu corpo – Só estou visitando um velho amigo – retruco, voltando a encarar Gustavo e despejando sobre ele um pouco de fumaça e um balde carregado de cinismo.
Meu assessor dispara uma tosse rápida, sem deixar de me fitar, fuzilando-me. Por alguns segundos consigo me divertir…
– Você realmente precisa se auto boicotar desse jeito, Nicolas? – a repreensão chega acompanhada de ressentimento – Os membros da Academia Brasileira de Letras irão cumprimentar o seu homenageado empesteado com cheiro de nicotina?
Fecho os olhos e dou mais uma tragada, forte, e sinto a fumaça viajando da boca ao pulmão numa velocidade vertiginosa. Já tinha me esquecido da sensação de relaxamento e prazer tão imediatos. Depois de alguns segundos volto a abrir meus olhos e ao mesmo tempo em que afronto Gustavo, atiro o cigarro no chão e piso em cima, colocando todo o peso do meu corpo sobre sua carcaça. Arrogância e insensibilidade, mas também amarga resistência e aversão pontuam as palavras que preparo para arremessar antes que minha garganta trave e essas mesmas palavras se tornem concretos impossíveis de serem movidos.
– Depois que você saiu do apartamento recebi uma ligação do meu irmão Adoniran me contando que o nosso pai está com câncer.
De alvoroçado a agitado como um coelho, Gustavo se torna imóvel, parecendo ter sido empalhado em pedra. Um velho ator com uma expressão atônita estampada no rosto, esperando pelas deixas mesmo com as luzes da ribalta já apagadas.
– Meu Deus, Nicolas, sinto muito…
– Não sinta – minha respiração, funda, é seguida por um estremecimento – Segundo Adoniran, a doença ainda está no começo – esclareço e subitamente sinto vergonha de mim mesmo.
Levanto a cabeça e olho para o céu e a imobilidade natural do crepúsculo apodera-se de mim.
– Vamos – sugiro, evitando fitar Gustavo enquanto tomo a direção do carro que nos espera.
– Escuta Nicolas – sinto a mão do meu assessor pesar sobre o meu ombro esquerdo, me obrigando a parar – Não será nenhum problema se quiser que eu te represente…
– De maneira nenhuma – respondo sem me voltar – Agora vamos. Acho que um pouco de diversão vai me fazer bem.
Cumprimento o motorista do Ford Focus ao passo em que me acomodo no banco de trás do carro. Não demora muito e Gustavo entra e senta ao meu lado, batendo a porta com um pouco de força ao fechá-la. Pelo retrovisor percebo os olhares do homem que está ao volante. Ele me lança um sorriso e pergunta se eu poderia fazer a gentileza de autografar um dos meus livros para Maria, sua filha. Obviamente não me recuso e me inclino para frente, apanho a caneta que me é oferecida, escrevo uma breve dedicatória na folha de rosto do meu último título lançado e retorno para o encosto da poltrona, trocando rapidamente um olhar de cumplicidade com Gustavo antes de me virar por completo na direção da minha janela.
– O senhor deseja escutar alguma coisa em especial durante o trajeto? – o motorista interroga, dessa vez voltando metade do corpo para trás e retornando de pronto para sua posição depois que lhe peço para seguirmos em total silêncio.
O que eu não daria para esvaziar minha mente… Dê-me senhor um minuto de paz, um segundo que seja sem que a imagem do velho Ezequiel tome conta de todos os espaços dentro do meu cérebro. Eu não posso estar sentindo isso, essa comiseração. As pessoas colhem o que plantam, e meu pai não merece um décimo da minha indulgência. Não consigo me lembrar de um instante sequer em que eu tenha enxergado em seus olhos um brilho de alegria por minha existência. Quantos abraços desperdiçados, quantas conversas, quanto carinho e cuidado jogados fora… Nunca signifiquei nada para ele, é a mais pura das verdades, e isso foi deixado bem claro naquela tarde de fim de mundo quando esbravejava que se sentia arrependido por ter me adotado…
Sinto um toque leve e rápido sobre a minha perna. É Gustavo demonstrando sua solidariedade, não há dúvidas. Inspiro forte e depois deixo o ar escapar sem pressa dos pulmões para então me virar na sua direção e lhe ofertar um obrigado, quase inaudível, mas o suficiente para deixá-lo, ao menos, um pouco aliviado. Moto contínuo eu retorno o rosto para a janela e de súbito a imagem de Lauro, meu irmão postiço, filho do primeiro casamento da minha madrasta, começa a vaguear pela minha mente.
Lauro… Há quanto tempo não pensava em você. Peço desculpas se está parecendo que te esqueci, mas saiba que nunca, jamais o esquecerei. Seria impossível. Você e vó Teresa foram os únicos daquela maldita cidade que fizeram com que eu sentisse a real definição do que é ser amado e certamente você, Lauro, não teria me rejeitado como todos os outros após o velho Ezequiel ter me expulsado de casa. Você teria me amparado, lutado com unhas e dentes, teria me dado forças que infelizmente vó Teresa não pôde me dar…
Baixo os olhos e fixo o chão do carro enquanto busco remontar o rosto de Lauro, seu olhar forte, seu carisma, as covinhas que sempre se formavam em suas bochechas quando sorria aquele sorriso que parecia não caber em seu rosto… Meu cérebro parece se recusar a atender minha vontade. Ele luta, luta muito, como se o que eu estivesse tentando encontrar fosse algo que já não me pertencesse, como se eu fosse uma mariposa em torno de uma lâmpada que se iluminou aguardando indefinidamente que ela volte a acender.
De súbito sinto minha mente ser puxada para trás e então ouço ao longe a voz de Lauro, suas gargalhas, assim como a voz sempre pausada de vó Teresa, e essas sensações, de forma inevitável, começam a descerrar portas que eu havia trancado para sempre. Fecho os olhos, pois não consigo resistir ao me deparar com o poço que a triste saudade abre dentro de mim.
Por mais que eu busque e rebusque em minha mente a respeito da primeira lembrança da minha infância, nunca consigo encontrar qualquer outro ponto de partida que não seja aquele, perto de completar cinco anos de idade, no quarto de minha vó Teresa, em pé sobre a cama, olhando, incrédulo, para minha imagem refletida em um comprido espelho salpicado de manchas cinzentas, me perguntando quem seria aquele menino à minha frente, fantasiado de índio, seminu, com um cocar e uma tanga totalmente cobertos por penas amarelas (de um amarelo ouro-brilhante) e duas tiras paralelas e horizontais, feitas de esparadrapo, atravessando cada lado de seu rosto.
Claro que não esperei qualquer manifestação por parte daquele outro menino, daquele outro Nicolas. Estava assustado. Ponto. Era óbvio que ele, aquela figura prostrada diante de mim, definitivamente não podia ser eu. Reagi, então, como toda criança naturalmente reagiria: abri o berreiro como se estivesse recebendo a mais dura das punições, não demorando muito para que minha avó e meu irmão Lauro invadissem o quarto, aflitos, preocupados, indo me socorrer…
Não cheguei a conhecer minha mãe. Após alguns meses do meu nascimento ela precisou me entregar. Julgada e condenada por homicídio, não tivera outra opção e então coube ao meu tio, Ezequiel, a decência de me criar. Sim. A decência! Ezequiel fazia questão de frisar o quão íntegro e caridoso ele havia sido ante a irresponsabilidade de sua irmã, uma ordinária imoral que não teve qualquer respeito por nossa família, acabando onde era de se esperar, era o que repetia nas raríssimas vezes em que se referia a Eva (esse é o nome de minha mãe), deixando vó Teresa sempre arrasada e com o coração dividido.
Um dia Nicóla (minha avó sempre me chamou dessa maneira), quando você tiver idade suficiente, vai poder entender o que houve com a sua mãe. Não a julgue da forma como o seu pai faz. Essa era a única explicação que minha avó me dava nas poucas vezes em que se propunha a responder meus questionamentos sobre aquela mulher que eu jamais conhecera.
Uma vez. Somente uma vez mantive contato com Eva e posteriormente, nas raras ocasiões em que busquei pela memória remontar o instante daquele encontro, sua figura sempre se apresentou um tanto embaciada.
Como você é lindo. Seu pai teria orgulho de ter te conhecido, ela me disse pausadamente, com um tom de voz que parecia estar afogado em remorso e melancolia.
A mulher que surgira atrás de mim, enquanto eu brincava sentado no portão de casa, não se identificou. Decerto fiquei assustado com aquela aproximação e ainda mais atemorizado quando vi meu pai, Ezequiel, irromper do nada, gritando com aquela pessoa enquanto lhe puxava o braço com extrema violência, afastando-a de mim… Eu tinha oito anos de idade e na mesma noite minha avó me contou, em prantos, de quem se tratava. Eva tinha cumprido sua pena em uma prisão em Belo Horizonte e teria ido até Arena para me conhecer. Depois disso, nem minha avó ou qualquer outro que fosse teve notícias suas.
Descartando esse incidente, a única referência concreta que consegui ter de Eva foi através de uma foto que minha avó guardava, ou melhor, escondia para que meu pai não descobrisse, caso contrário ele a queimaria, assim como fez com todas as outras fotos e também com todos os pertences que minha mãe deixou para trás, assim como ele faria com os rascunhos dos meus textos, minhas anotações, minhas pequenas histórias, transformando-os em cinzas na sua fogueira da purificação depois de ter me expulsado de casa.
Na foto de Eva, um pedaço de papel em preto e branco, estava uma linda menininha dentro de um vestidinho que quase lhe cobria os pés, ornado de alguns babados e um laçarote que ficava amarrado no lado esquerdo de sua cintura. Eva aparecia sentada em uma cadeira bem maior do que ela, olhando para frente com uma carinha bastante aborrecida. Vó Teresa dizia, sem falsa modéstia e com um sorriso de satisfação e orgulho nascendo no canto dos lábios, que Evinha desde pequena já demonstrava do que era feita: teimosa como uma mula e corajosa como um cavalo selvagem.
Com o passar dos anos acabei me acostumando com a ausência de Eva, tratada em toda a cidade, por respeito ou temor à figura imponente do Pastor Ezequiel, como um ser etéreo, inatingível, uma entidade, assim como também dentro de nossa casa, cuja invocação de seu nome era terminantemente proibida por meu pai. Minhas perguntas, claro, e qualquer curiosidade a seu respeito foram minguando até desaparecerem por completo. Decididamente não tinha muito mais para tentar descobrir além das referências que existiam sobre ela: uma jovem persistente, atrevida, corajosa e assassina. O motivo de seu julgamento e condenação? Tirou a vida de um homem, o meu pai biológico. Infelizmente acabei indo embora de Arena sem ter tomado conhecimento da versão extraoficial da história de Eva que minha avó me prometera um dia me contar.
A casa em que morei desde pequeno até o dia em que dela fui expulso, tinha sido comprada por meu avô, Antônio, logo após seu casamento com vó Teresa. Não cheguei a conhecê-lo, já que sofrera um enfarto fulminante meses antes do meu nascimento, causado pelo desgosto e vergonha da gravidez de sua filha, minha mãe, ainda solteira. Alguns poucos moradores da cidade, talvez corajosos, vingativos ou mentirosos, afirmavam que a morte de meu avô não havia sido natural. O idôneo pastor Antônio Coutinho, arrebatador de tantas ovelhas para sua congregação, teria sucumbido ao ato hediondo do suicídio, contrariando uma das leis de Divinas, leis estas que imperiosamente ele evocava em suas hipnóticas pregações.
Não é preciso dizer que minha avó, meu pai e os fiéis da igreja que meu avô comandava renegaram piamente essa versão, taxando-a como infame e covarde, afinal, a verdadeira imagem que o pastor Antônio havia deixado, e que deveria ser respeitada, era a de que ele tinha sido um bom homem e um pai de família exemplar além de um cristão temente a Deus, qualidades que metade dos arenenses, sequer, conseguia reunir, por mais que tentassem.
Com a morte de meu avô, vó Teresa e meu pai herdaram a casa, assim como o armazém que ficava na rua principal de Arena e duas casas de aluguel em uma vila, permitindo que nossa família continuasse a levar uma vida sem grandes preocupações financeiras, infelizmente uma condição que mudaria com o passar dos anos, não pela administração exercida por meu tio/pai, Ezequiel, que aos 24 anos precisou abraçar para si, da noite para o dia, todas as responsabilidades antes praticadas por meu avô, inclusive o papel de liderança dentro da igreja que comandava, mas devido ao declínio que a própria cidade enfrentaria, atingindo até mesmo os Cotta, a família mais rica e tradicional de Arena.
A Arena onde passei minha infância, a 780 km da capital, Belo Horizonte, em Minas Gerais, era, e certamente ainda o é, um lugar pequeno e de difícil acesso, cuja única estrada de rodagem, que ligava a cidade a Águas Vermelhas, ficava quase sempre intransitável, com pontilhões arrastados pelas águas, trechos transformados em verdadeiros lamaçais, e quando as chuvas estavam no auge, o caminho ficava em petição de miséria. Não à toa, todo esse transtorno somado ao descaso das autoridades locais impediu que a cidade fosse desvirginada pelo progresso e pela modernidade industrial.
O carnaval arenense era o acontecimento mais aguardado de todos os outros. A ansiedade chegava a pesar no ar, já que praticamente toda a cidade, disposta e disponível, se entregava aos blocos caricatos, aos concursos de fantasia, aos espetáculos musicais e às serestas que aconteciam na Praça da Matriz, onde soltar a voz cantando as antigas marchinhas carnavalescas não intimidava nem o mais acanhado dos humanos. Era impossível não se contagiar pela animação que trasbordava durante aqueles quatros dias de folia.
No decorrer do ano as celebrações continuavam: a Semana Santa, o Corpus Christi; as festas juninas, coloridas, com apresentações de quadrilha, cada uma mais pomposa que a outra, recheadas de espetáculos musicais e barraquinhas com comidas típicas (canjica, quentão, pamonha, angu de milho verde, arroz doce, milho cozido, paçoca de carne seca, pão de queijo), entre outras guloseimas que só deixavam a festa mais deliciosa ainda.
Em outubro aconteciam as comemorações do aniversário da emancipação política da cidade, onde um estrado de madeira era armado para a cerimônia acompanhada por banda de música, cheia de engravatados e mulheres emperiquitadas assistindo e aplaudindo os discursos inflamados e grandiosos do prefeito, do delegado, do benemérito munícipe Dr. Francisco Cotta, do padre e algumas outras figuras ilustres, ou nem tanto. E finalmente chegava dezembro com suas festas de fim de ano e as comemorações disputadíssimas que aconteciam dentro dos limites do clube Bittencourt, nem tão disputadas quanto às que ocorriam no bairro do Bico Doce, após a diversão oficial, onde o estabelecimento de Sallomé Esperanza fervilhava com o arraiá promovido por suas meninas, tornando imemoráveis o natal e a passagem de ano de seus convidados.
Moleque ainda, eu não podia participar de todas as festanças, mas as que aconteciam nas ruas, liberadas para o povo, lá estava eu, e não foram poucas as vezes que saí de casa, escondido e até de pés no chão (na maioria delas contando com a ajuda de meu irmão Lauro, e até mesmo de vó Teresa) para me divertir, mesmo diante das proibições bastante severas e ameaças de surras de meu pai, que enxergava em quase tudo aquilo a manifestação do diabo, onde um bando de gente que não temia a Deus, degenerados, entregavam suas almas, há muito sem salvação. Quando acontecia de ele descobrir algumas de minhas fugas, sermão era o preço que eu pagava e depois sua mão pesada, agarrando com firmeza o chinelo de couro ou o cinto, baixava sem dó nem piedade sobre mim enquanto rugia e depois esbravejava o quão endemoninhado eu era, como a minha mãe, e que ainda bem que havia nascido menino assim não corria o risco de emprenhar, como ela, que pulava janela pra abrir as pernas pro primeiro delinquente que aparecia no caminho.
Comecei a me interessar muito cedo pela leitura. Tinha cincos anos de idade quando isso aconteceu. As revistas em quadrinhos que meu irmão Lauro comprava na banca do Sr. Marcondes sempre acabavam em minhas mãos. Inicialmente acredito que tenham sido as figuras que chamaram minha atenção, mas não demorou muito para que eu começasse a querer entender aqueles sinais que apareciam dentro dos balões brancos, direcionados para uma personagem, modificando sua expressão e movimentos e Lauro, sempre um incentivador, me ajudou a conhecer e reconhecer todas aquelas letras, me introduzindo dentro de um universo do qual eu nunca mais me libertaria, apaixonado como estava e de uma maneira tão arrebatadora.
Devido ao meu rápido aprendizado na leitura, pude ser matriculado diretamente na classe da 1ª série do curso primário com seis anos de idade, sem a necessidade de passar pela turma da alfabetização. Minha vó Teresa e Lauro não couberam em si de tanto orgulho, chegando até mesmo a planejar uma pequena comemoração dentro de casa, preparando uma quitanda com bolos, pão de queijo e biscoitos…
-Daqui a pouco vamos solenizar até mesmo um espirro que esse menino der – minha madrasta, Maria Luzia, disse ríspida, sem titubear, enquanto se levantava do sofá, as costas eretas, o semblante inalterado, carrancudo, alisando a saia negra que se entendia até abaixo dos seus joelhos ao mesmo tempo em que me olhava de soslaio – Ele não faz mais do que obrigação – ela continuou ao passo em que direcionava um olhar desafiador para o meu pai – Agora o nosso filho, Adoniran, que já trabalha no armazém te ajudando, ao invés de aproveitar a infância, acaba pagando o preço e se prejudicando.
Evidente que aquela não era a causa do problema de Adoniran. Simplesmente ele não simpatizava com os estudos e provou isso durante a via crucis para conseguir terminar o curso ginasial sob a pressão de sua mãe, que graças aos céus se deu por vencida, mesmo com o orgulho ferido, conformando-se com a realidade de que não teria na família um doutor, sangue do seu sangue, já que Lauro viria a falecer precocemente.
A pequena comemoração da quitanda com bolos, pão de queijo e biscoitos não chegou a acontecer, claro, pois meu pai hasteou mais uma vez a sua bandeira da proibição, reforçando o argumento de minha madrasta de que não existiam motivos para aquela extravagância. Não seria a primeira vez que ele demonstraria total indiferença às minhas conquistas. Como prêmio, eu passaria a revezar com Adoniran as horas de trabalho no armazém, diminuindo o meu tempo para se dedicar aos estudos. Maria Luzia, com ares de triunfo estampado no rosto, abandonou a sala carregando sua magreza e altivez, puxando pela mão o meu meio irmão Adoniran e tendo o meu pai praticamente escoltada-a, com passos firmes, deixando-me, por fim, a sós com Lauro e vó Teresa.
– Essa daí já nasceu velha e seca de sentimentos – minha avó deixou escapar com demasiado desprezo, mas logo se lamentou ao se deparar com a figura entristecida e cabisbaixa de Lauro, que ela considerava como a um neto, mesmo ele sendo fruto do primeiro casamento de minha madrasta, cujo marido a deixou viúva aos 20 anos de idade após morrer afogado no rio que corria atrás do bairro do Bico Doce.
Motivo ou não de orgulho para o meu pai, segui me destacando nos estudos. Quando vó Teresa chegava a casa, após participar das reuniões de pais com meu boletim recheado de notas azuis, fazia questão de reproduzir os elogios que a professora despejava em cima dela, quase sempre destacando minha inclinação para a leitura, minha desenvoltura com as palavras e minha criatividade (ainda bastante crua, mas visível) para histórias que descrevia cheias de entusiasmo nas redações. Nesses dias Lauro sempre dava um jeito de escapar das ocupações mais pesadas que meu pai o obrigava fazer no armazém para me levar à sorveteria do seu Inácio, onde comemorávamos nossas pequenas vitórias.
-Um dia ainda vou-me embora desse fim de mundo e levo você comigo, pirralho.
– Eu não sou mais pirralho – respondi mergulhado no meu sorvete de morango – Já fiz treze anos, esqueceu? Agora sou um adolescente.
– Sei… – Lauro retrucou me dando uns tapas de leve no ombro e com um sorriso cínico no canto dos lábios – Tenho quatro anos a mais que você, então eu vou chamá-lo de pirralho até mesmo quando estivermos velhinhos caducos, bem longe dessa terra de ninguém.
Caímos os dois na gargalhada. Era impossível não se sentir magnetizado pelo carisma de Lauro e também pelas covinhas que se formavam nas suas bochechas. Eu admirava aquele meu irmão, mesmo não tendo o mesmo sangue, como minha madrasta fazia questão de lembrar sempre que podia.
– Você vive dizendo que quer sair de Arena, Lauro…
– E vou. Tenha certeza disso – ele bufou, inclinando-se para trás com sua cadeira até se apoiar na parede – Arena é terra de gente sem ambição, que se contenta com pouco. Acham que conseguir um emprego na fábrica de tecidos do velho Cotta é o maior dos prêmios…
– A madrasta nunca que ia deixar – interrompi, arqueando minha sobrancelha direita, ensaiando um sorriso debochado e desafiador.
– Ela só vai saber quando eu estiver bem longe daqui – Lauro retrucou, dando de ombros, e depois se virando na direção do balcão onde seu Inácio atendia alguns moleques para pedir mais duas bolas de sorvete para cada um de nós, voltando em seguida a me olhar, mas com um olhar firme, penetrante, ao mesmo tempo em que se aproximava quase se debruçando sobre a mesa – E espero que isso continue sendo um segredo entre a gente, ouviu pirralho? Assim como aquele que já temos… – sussurrou, acariciando rapidamente minha mão direita que estava sobre a mesa, deixando-me completamente ruborizado.
Lauro jamais conseguiu sair de Arena. O destino foi irônico e também cruel ao tirar-lhe a vida da mesma forma, e no mesmo local, como tirou a do seu pai biológico. Aconteceu por volta de 1988, e mesmo depois de todos esses anos passados, jamais pude esquecer o seu olhar triste antes de entrar naquele lago, dando a impressão de que não desejava seguir adiante e também as palavras que proferiu, afirmando que eu não poderia e nem conseguiria jamais controlar todos os fatos da minha vida, mas poderia evitar que me arrastassem para o fundo do poço.
Em retrospectiva, até hoje não consigo compreender o que suas palavras de fato significaram. Que bagagem Lauro possuía para entender sobre as complexidades da vida tendo passado toda a sua existência, 20 anos sobre a Terra, numa cidade pequena e provinciana, trabalhando em um armazém e tendo apenas revistas e gibis como referência do mundo exterior?… Infelizmente não pude salvá-lo, até porque não percebi que estava de fato se afogando… Lauro dava gargalhadas para mim enquanto subia e descia nas águas do lago até que sorriu pela última vez antes de submergir para não mais voltar.
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