– Gabriela, definitivamente não tô entendendo nada. Que papo é esse agora?
– Lucas, eu não tô brincando! – há indignação em sua voz, mas também uma nota de persuasão – Você é um privilegiado por poder ter esses rompantes de ira enquanto alguém padece em silêncio, contando os dias, os minutos, os segundos para te dar o inevitável adeus. Desejando que alguma coisa aconteça, qualquer coisa, só para que você não vá embora. Torcendo para que tudo isso não passe de um pesadelo.
Olho para minha amiga e estremeço. Seu semblante guarda tantos mistérios quanto suas palavras…
– Eu sei que vou queimar no fogo do inferno por estar quebrando uma promessa, ainda mais uma promessa feita para um grande amigo…
O tom de voz de Gabriela soa como uma confissão e um pedido de desculpas enquanto olha corajosamente para o nada ao mesmo tempo que um frenesi proporcionado pela curiosidade me consome a alma para logo em seguida se transformar em assombro e desespero diante do vislumbre do que acredito que Gabriela esteja prestes a me confidenciar. Engulo em seco. Ela não pode estar apaixonada por mim.
De pronto, antes que se declare, tento lhe comunicar apenas com o olhar que sinto muito. Não quero vê-la se expor desnecessariamente. Gabriela sabe muito bem que nada entre nós dois, além da nossa amizade fraternal, poderá existir…
– Eu já te disse… Você devia ser mais legal com o Rômulo sabia? – minha amiga finalmente arremessa suas palavras.
– O que você quer dizer com isso? – questiono completamente confuso, afinal de contas, o que o tratamento que dispenso ao Rômulo tem a ver com a paixão platônica de Gabriela?
– O óbvio meu amigo.
Ela caminha na direção da porta do cômodo que estamos ocupando. Só neste instante percebo que nenhum som está reverberando pelas paredes. Nenhum resquício de alvoroço de vozes… Cadê a minha festa de despedida que deveria estar acontecendo?
– Eu já desconfiava e o Rômulo acabou me confessando que tem sentimentos fortes por você, Lucas… Precisava ver a cara dele quando te viu desmaiado… Foi de cortar o coração… Seu semblante era a própria definição de uma pessoa completamente dilacerada.
Meus joelhos me traem. Sou forçado a voltar para a cama, onde me sento, respirando fundo, forte, e sentindo uma dormência tomar conta do meu corpo e um formigamento desagradável se instalando nas pontas dos dedos dos pés e das mãos enquanto movo a cabeça totalmente incrédulo. O Rômulo? O Rômulo? Impossível. A Gabriela está equivocada. É Claro que tem alguma coisa errada nessa história que não está certa. Nós dois sempre nos orgulhamos por conseguir manter uma amizade acima do desejo carnal… Meu Deus, isso chega a ser um sacrilégio…
– Na boa, Gabriela, você tá me zuando, não é? – indago carregado de esperanças, chegando mesmo a ensaiar um sorriso no canto dos lábios.
Minha amiga não responde nada, tão somente me dirige um olhar breve, repleto de amargura e indignação.
– Se isso realmente for verdade… – recolho o riso antes mesmo de torná-lo evidente enquanto alongo minha coluna e corro os olhos de um lado para o outro, tomando coragem para seguir adiante – Por que eu não percebi nada?- confronto Gabriela – Você mesma acabou de afirmar o quão óbvio é o que o Rômulo supostamente sente por mim…
– As pessoas podem viver em um lugar durante muito, muito tempo e ainda assim desconhecer o que existia debaixo dos seus pés, Lucas – ela me interrompe sem titubear ao passo que dispensa um sorriso conspiratório e em seguida inclina o corpo para abrir a porta atrás de si.
– Desde quando você sabe? – me atrevo a perguntar à medida que o formigamento desagradável vai se instalando mais e mais nas pontas dos dedos dos meus pés e das minhas mãos.
– Que diferença faz? – Gabriela dá de ombros – Estou indo buscar um pouco de gelo, ok? E também avisar ao Rômulo que você já acordou… – ela informa ao mesmo tempo em que trespassa o batente, fechando a porta sem demora.
Uma tontura começa a me dominar. Vejo o rosto de Rômulo, uma sequência de imagens desde quando nos conhecemos até hoje, até o instante em que ele surgiu na escadaria em frente à sua casa… Elas vão se tornando difusas, rodopiando à minha frente em uma névoa enjoativa cada vez mais densa ao passo que sinto dificuldade para respirar…
Preciso sair daqui. Agora.
Como se quisesse ter a certeza de que realmente estou sozinho neste cômodo, corro o olhar à minha volta, num giro de 360 graus, e então me deparo com uma porta, sem ser aquela que Gabriela usou para sair, descansando fechada atrás de mim. Num salto, como se toda minha vida dependesse disso, corro até essa outra porta e a abro de supetão, ignorando a dormência, o formigamento, o diabo a quatro, pouco me importando com quem ou o quê vou encontrar do outro lado Surpreendentemente não me deparo com nenhum outro cômodo e nem com ninguém, mas sim com a estrada de pedra e cascalhos ladeada pelo jardim estilo mediterrânea, que fica à entrada da casa do Rômulo.
O que está acontecendo? Onde é que eu estou?
Um tanto reticente, dou um passo para fora, não sem antes conferir se há alguém por perto para dai cerrar a porta atrás de mim. Assim que coloco os pés sobre a estrada de pedra e cascalhos, me viro para verificar a estrutura do lugar em que eu estava até agora. À minha frente, uma meia água cuja parede é decorada por cerâmica que imita pedras decorativas, numa cor clara, e uma janela com detalhes em vidro ostentando atrás de si a bendita persiana bege plissada. Da última vez que estive aqui, há uns quatro, cinco meses, essa mini casa não existia…
Dou de ombros e me volto, avançando de imediato mais alguns passos, o suficiente para poder enxergar em grande escala o meu entorno e encontrar, enfim, a alguns metros de distância, o senhor duplex dos pais do meu amigo, onde Gabriela está terminando de cruzar a porta de entrada e a voz de Paulinha Toller entoa em alto e bom som o refrão de Fixação.
Rômulo apaixonado por mim? Merda. Por que a Gabriela foi me contar isso? Pelo menos estou indo embora para Laranjeiras e não vou precisar encarar o Rômulo, lidar com essa verdade, mesmo ele supostamente não tendo a menor ideia de que eu sei do seu segredo… Quer dizer, eu espero que a Gabriela tenha o bom senso de não lhe contar nada…
Balanço a cabeça com força de um lado para o outro. Não vou pensar nisso agora. Não vou. Vou sair daqui, pois não estou com ânimo para encarar essa festa de despedida, ainda mais depois de tudo isso, do vexame do David, dos meus desmaios e dessa revelação no pior estilo novela mexicana…
Visualizo o portão de aço fechado não muito distante e então começo a correr, em linha reta, sem pestanejar, pisando nos cascalhos espalhados pelo chão. Uma dor surge na lateral da minha barriga, um pouco acima do meu quadril, mas eu não desisto do meu objetivo até que por fim, um tanto ofegante, alcanço a saída.
Lucas, aonde é que você está indo?
É a voz do Rômulo. Olho para trás rapidamente e o vejo caminhando a passos largos, um pouco à frente da porta de entrada do duplex, mas já se preparando para correr. Viro-me e de pronto aperto o pequeno botão preto, à minha direita, e depois de um breve zumbido o portão de aço começa a se abrir.
* * *
Termino de pagar a corrida ao motorista e desço do seu táxi de imediato, bem em frente ao calçadão de Copacabana, onde começo a caminhar sem rumo certo, decidido a esvaziar minha mente, não pensar em nada do que tem me acontecido, mas é difícil, quase impossível. Estou me sentindo muito velho. Os acontecimentos de hoje me drenaram todo o sentimento. Primeiro a notícia aterradora de que irei sozinho para a Terra do Nunca, depois aquela minha postagem no Secrets, e, claro, a raiva assassina do David… E o encontro com o Thiago… Nossa, parece que eu o vi há um século, aqui, nessa praia, nesse calçadão, citando Gabriel Garcia Márquez…
E agora…
Realmente não me sobrou nenhuma emoção suficiente para lidar com a surpresa, a bomba que Gabriela acabou de soltar covardemente em cima de mim… Não. De verdade, ela não deveria ter feito isso…
Respiro fundo e decido aportar em um quiosque a poucos metros à minha frente.
As pessoas vão e vem, passando por mim…
Necessito beber alguma coisa.
Tiro a carteira de trás do bolso da calça jeans e confiro se trouxe minha identidade falsa… Tudo certo.
Chego à entrada do estabelecimento e visualizo um espaço amplo, coberto, onde uma fileira de bancos, lado a lado, e um balcão, rodeiam uma “pequena ilha” onde estão três jovens barmans servindo à clientela enquanto outro grupo de bancos se estende numa fileira de mesas pequenas, altas, indo em direção à praia e terminando onde começa a areia, onde poucas pessoas estão sentadas. Escolho um dos bancos que fica nessa ponta, próxima à areia, no lado oposto à entrada. Logo um dos barmans, um rapaz bonito, cabelo curto e um rosto bem barbeado, se aproxima, perguntando o que eu desejo ao mesmo tempo que estampa em seu rosto um sorriso maravilhoso, iluminado. Depois que ele se afasta, retiro o celular do bolso da calça jeans para conferir se realmente o desliguei quando entrei naquele táxi. Não quero ninguém me enchendo o saco. Vou me despedir dessa merda toda em grande estilo.
Devolvo o aparelho para dentro do bolso e me volto para o mar, por alguns instantes, enquanto aguardo pela minha Smirnoff Ice .
Uma fisgada leve atravessa o lado esquerdo do meu rosto, onde levei a cotovelada, e então o apalpo, sutilmente, conferindo se alguma “montanha” surgiu nesse meio tempo. Nada até o momento… Quanto à dor, bem, vai ser mais um dentre tantos padecimentos que o Criador decidiu me reservar, mas esse, ao menos, está suportável.
Logo me volto quando ouço o chamado do barman, que não demora a entregar minha bebida, se afastando depois que me desfere um sorriso aconchegante.
Carência. Carência. Carência. A pior inimiga do ser humano. Concluo, entornado num só gole minha Smirnoff e já me preparando para pedir outra, porém quando faço menção em levantar a mão na direção da ilha dos barmans, me surpreendo ao enxergar a figura de Thiago atravessando a entrada do quiosque. Mesmo no deserto, sob um sol escaldante, no meio de um bando de nômades, eu o reconheceria, apesar de tê-lo visto somente uma vez…
Meneio a cabeça.
Uma única Ice já está fazendo efeito?
Arregalo, então, os meus olhos para ter certeza do que estou avistando. É uma miragem. Certamente é uma miragem. Que seja. Miragem ou não, Thiago é o ser da suprema beleza dentro de um blazer azul marinho, camisa branca lisa, calça jeans reta e tênis iate…
Com passos firmes, ombros naturalmente relaxados, robusto, ele toma a direção das pequenas mesas, ignorando os bancos ao redor da ilha do quiosque, e, sem presa, atravessa cada uma delas…
Merda! Ele está olhando para cá e certamente me viu olhando pra ele igual a um pateta… Puta que pariu.
Viro-me para os lados para ter a certeza de que não existem outras pessoas próximas. Não há e Thiago, de fato, está vindo em minha direção.
Como assim?
Meu corpo estremece da cabeça aos pés. Eu vou ter uma síncope…
-Boa noite!
Ele para, por fim, ereto, a poucos centímetros de onde estou sentado e me cumprimenta com uma voz grave e sorridente ao mesmo tempo que estende sua mão direita.
– Mas que mundo pequeno, não?
Thiago completa com um ar brincalhão.
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Peter Cetera (Feat Cher) – After All
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