– EU E SUA PrIMa BEAtriz somos noivos.

Thiago repete uma, duas, três vezes sem deixar de rodopiar a aliança no dedo, até sua voz começar a falhar, e ainda assim, como se buscando fortalecer suas palavras insólitas, mal ditas, seu despropósito, insiste, igual a um condenado diante da forca, segundos antes do cumprimento de sua sentença, balbuciar outro tanto de absurdos:

– Noivos… nos comprometemos… ela me ajudou…

O que está acontecendo? Do que ele está falando? Isso tudo é uma brincadeira, é isso? Uma dessas pegadinhas sem graça que só servem para deixar o outro completamente deslocado, sentindo-se o mais idiota dos seres humanos?… 

Meneio a cabeça enquanto fito a destra de Thiago suspensa no ar, depois a aliança e enfim o seu olhar e o seu semblante notória e explicitamente desorientados, ao passo que sinto minha mente se descolando em várias direções, mas num ritmo acelerado, como se estivesse dirigindo um carro em alta velocidade, tendo plena consciência de que se tentar puxar o freio de mão vou rodopiar e capotar até parar aonde só o Criador sabe…

Inspiro e expiro, fundo, e daí fecho os olhos por um instante, o suficiente até poder me sentir seguro para voltar a encarar Thiago e finalmente compreender o que, de fato, ele está tentando dizer, pois cada uma de suas palavras, nesses últimos minutos, ainda parecem, para mim, delírios, frases completamente sem nexo, despejadas umas sobre as outras como uma criança se confessando diante da autoridade materna após ter sido flagrada em uma travessura que de antemão lhe havia sido proibida.

Ouço a respiração pesada de Thiago…

Abro os olhos um tanto receoso do que possa encontrar à minha frente e acabo por me deparar com o seu olhar trazendo uma estranha expressão morta, não permitindo alcançar nada além do que ele está me deixando enxergar até que, por fim, o vejo baixar a mão que ostenta a aliança de noivado para, em seguida, curvar os ombros, dando a impressão de que está sendo consumido por um cansaço extremo. Assim, desse jeito, não se parece nem um pouco com aquele Thiago afável, aprumado e confiante que instigara minhas fantasias desde o final dessa tarde. Pelo contrário. Mais se assemelha a um jovem, ou melhor, a um homem corroído por uma dor mal tolerada.

– Eu não devia ter te trazido para esse apartamento…

Os olhos de Thiago continuam irradiando um lampejo que desafia análises. Ele me observa com a mesma atenção com que um gato observa uma toca de rato e sua ostensiva, mas suspeitável calma, inevitavelmente me obriga recuar, fazendo-me deslocar um pouco para o lado, enquanto sondo com as pontas dos dedos a porta do apartamento fechada atrás de mim, até sentir a maçaneta e forçá-la, em vão, e depois sentir o relevo do miolo da fechadura… claro, SEM A CHAVE. 

– Não precisa ter medo… Estou sendo sincero. Por favor, Lucas, acredite.

Ele dá um passo em minha direção e então um suor frio começa a brotar de minha fronte ao mesmo tempo que recordo diversas histórias lidas na internet em que adolescentes gays foram vítimas de parceiros sexuais, que os havia atraído para um apartamento onde diziam morar, enredando-os num véu de mentiras e histórias mal contadas, até conseguir tirar-lhes a vida e daí rapidamente corro os olhos sobre o meu entorno, sobre os poucos móveis desse apartamento e percebo que não há nada de pessoal que demonstre que ele pertença a Thiago ou a qualquer outra pessoa. Nenhum porta retrato que seja. Nada parece estar fora do lugar. Tão somente uma invejável organização, um tanto fria até, premeditada, exatamente como já havia notado lá no quarto, de madrugada…  

É isso, Thiago está seguindo à risca o roteiro desses psicopatas homofóbicos e o próximo passo é este, o de confessar que nossos encontros foram premeditados… É claro que ele deve ser um desses maníacos que fuçam a vida alheia, buscando possíveis vítimas para descontar suas frustrações por não se assumirem… Sim. Sim. A exposição de informações demasiadas de nossas vidas nas redes sociais é um prato cheio pra esse tipo de psicopatas e a primeira coisa que eu vou fazer ao sair daqui vai ser acabar com as minhas contas em todos esses canais…

Bem feito pra mim. A partir deste instante talvez passe a acreditar que essa merda toda de que eu vou encontrar A ALMA GÊMEA desapareça de vez da minha cabeça.

Inspiro e expiro forte, de novo, só que agora a ponto de sentir dores no meu peito, mas por fim decido que não tenho alternativa a não ser afrontar Thiago e dar um jeito de fugir desse maldito lugar enquanto ajeito os ombros e fixo os pés no chão com demasiada persistência, mantendo-me rijo, deixando claro que vou resistir e lutar contra o que for preciso.

Diante da minha súbita mudança de postura, Thiago se detém, retornando uns dois passos e colocando em seguida as mãos para trás das costas, juntando-as um pouco acima do cóccix; ele ergue a cabeça como um monarca ante um plebeu que deveria inadvertidamente curvar-se pelo simples fato de estar diante de sua nobre presença.

– Eu te devo uma satisfação, Lucas. Eu preciso te dar uma satisfação… 

– Eu não quero ouvir nada, só me deixe ir embora… – procuro interrompê-lo de pronto, porém sou desprezado de maneira veemente.

– Só quero que você entenda Lucas. Apenas isso… – ao passo que sua voz embarga, seus olhos buscam o chão. Esse gesto esquivo, esse teatrinho, sem dúvidas é para amarrar as pontas soltas da narrativa mirabolante que ele vai me oferecer – E se depois não quiser compreender as razões que me trouxeram até aqui… Até você… – Thiago meneia a cabeça bem devagar. Anseio e tristeza realmente pontuam sua voz. Aonde ele quer chegar? 

– Por tudo que é mais sagrado, Thiago, só quero vazar daqui – apelo, insisto, enquanto procuro parecer sereno, o mais sereno possível que um ser humano possa conseguir. 

– Vou lhe contar algo que nunca contei a ninguém… Nem mesmo perante um tribunal… Nem mesmo sua prima Beatriz ouviu de mim essa história da forma como vou dizer… Crua, intimista… Pois é dolorosa demais e só de relembrá-la, em voltar no tempo, naqueles malditos anos, sinto os demônios a ela ligados abrindo todas as portas nas quais eu os havia conseguido, a duras penas, trancafiá-los…

Realmente não quero ouvir nada. Não preciso. Bia, Thiago… Isso tudo é insano demais. Tenho que sumir deste maldito apartamento o mais rápido possível!

– Lucas, desde o instante em que a Beatriz mostrou suas fotos do facebook para todos da família, anunciando, como de maneira oficial, que tu irias para Laranjeiras, passar um tempo por lá, te apresentando como se vocês se conhecessem à longa data…

Thiago refreia as palavras antes de continuar e em seguida ergue seus olhos, descruzando as mãos de trás das costas para então deixá-las cair ao lado do corpo. A expressão tesa e noturna que carrega em seu semblante dá a impressão que está zombando de si mesmo, se permitindo, sabe lá por quê, magoar-se.

– Desde esse aquele instante, Lucas, não consegui mais apagar sua imagem da minha mente. Não consegui mais te esquecer. 

Oi? Minha respiração se acelera mais e mais e meus batimentos cardíacos, sinto, vão me levar a um infarto. Thiago tá falando sério? Ele é louco. Sem sombra de dúvidas esse cara é maluco. Eu tenho que sair daqui, e agora mais que nunca!

– Eu não acredito que exista uma pessoa mágica – ele prossegue – Alguém que irá despertar na gente uma paixão instantânea e com a qual jamais nos desentenderemos. “Nenhuma pessoa é lugar de repouso”, afirmou Nei Duclós, em seu poema Salvação… Pois bem. Acredito, sim, que possamos conhecer uma pessoa com quem nos conectemos a um nível mais profundo… – sua fisionomia, agora, parece a de um homem embriagado tomado por uma raiva impotente – E pude sentir isso ao ver você, Lucas, na tela daquele computador…

Então foi por isso que esse lunático disse que me achava mais bonito pessoalmente? Controle. Preciso e devo manter o controle se eu quiser sair vivo daqui. 

– Posso apanhar o meu celular? – a voz impassível de Thiago invade sobremaneira os meus ouvidos.

– É claro que não! – respondo firme, sem pestanejar.

– Calma. Ele está ali, no sofá – Thiago aponta para o móvel sem braços, não muito longe de onde estamos – Eu o joguei ali depois que chamei o táxi para vir te buscar, que, aliás, pelo tempo decorrido e o interfone em silencio, já deve ter ido embora…

Ele não espera qualquer manifestação de minha parte e se volta rapidamente na direção do telefone e em menos de poucos minutos está de volta, prostrando-se diante de mim enquanto sua mão direita e seus olhos se movem num vai e vem frenético sobre o aparelho.

– Toma – ele me oferece o telefone – Veja.

Recuso-me, parecendo um gato escaldado diante da água fria, mas Thiago insiste, quase atirando o celular sobre o meu rosto  e então, sem alternativa, acabo por acatar essa imposição. A contragosto, nitidamente a contragosto, retiro o aparelho com violência de suas mãos e alternando o meu olhar entre ele e o telefone, me surpreendo com o arquivo exposto à minha frente: uma sucessão de fotos de minha prima Bia ao seu lado, em diversas ocasiões e lugares. Ela sempre sorridente, encantadora, os olhos bondosos, inteligentes e uma empatia singular marcando o seu semblante enquanto os olhos de Thiago surgem como duas velas protegidas de todos os ventos, duas luzes suaves brilhando de alegria como se estivessem resguardadas em um porto seguro…

Logo a sequência de imagens dá lugar a um vídeo, não muito longo, onde ele, Bia e várias outras pessoas estão em uma sala, comemorando alguma coisa. Não demoro a descobrir: é a festa de noivado dos dois.

Mas que merda.Talvez ele esteja dizendo a verdade. Ouso conjecturar ao mesmo tempo que perscruto o seu rosto, encontrando-o cheio de pesar e daí passo a lutar contra o instinto de sobrevivência que está tentando sobressair à razão, contudo, é impossível não sentir pena do quadro pintado carregado de tristeza e arrependimento sobre a face de Thiago.

Mas se todas essas fotos e esse vídeo não passarem de montagens bem feitas?

Não… Não… Se eu parar, deixar um pouco de lado essa paranoia, apenas um pouco, e tentar juntar as peças espalhadas desse quebra cabeça, talvez algo faça sentido… Se levar em consideração a mais ínfima possibilidade de que exista um fundo de realidade no receio, nas meias palavras de Thiago enquanto íamos conhecendo-nos mais e mais lá naquele quiosque… E depois aqui, nesse apartamento… Seu desespero, sua aflição segundos antes de me revelar quem é a sua noiva, como se soubesse que ao colocar em palavras essa questão, o mundo inteiro desmoronaria e um muro absurdamente alto, inalcançável, seria construído entre nós dois.

Por que eu não aceitei o contive que a Bia me fez no facebook? Por que eu não tive a curiosidade de visitá-lo, vasculhá-lo? Teria evitado toda essa confusão.Teria reconhecido Thiago, que certamente está lá, com ela, nessas mesmas fotos do celular e até em outras…

– Se isso tudo for verdade – inicio, devolvendo com cautela o celular para Thiago ao tempo que busco manter-me impassível – Por quê? Você não disse que me deve uma satisfação? Então… Preciso entender esse jogo que você decidiu jogar. Onde ela, a Bia… a Beatriz… fica nessa história toda?

Com gestos contidos, ele recebe o aparelho de volta e o coloca no bolso do roupão que está vestindo, retornando à postura enrijecida de antes, com as mãos para trás das costas.

– Passei toda a minha adolescência me perguntando que mal havia em ser bem nascido… Que demérito eu teria em aproveitar a benção de ter pais abastados financeiramente… Usufruir de uma situação da qual eu não havia escolhido, mas que o destino quis me presentear…

Oi? Do que essa pessoa tá falando? 

Em silêncio, Thiago retira as mãos de trás das costas e caminha até o pequeno console disposto ao lado esquerdo da porta e de dentro de uma gaveta apanha um molho de chaves e logo depois retorna para o mesmo lugar onde estava e me entrega, indicando qual das cinco é a que abre a porta atrás de mim ao mesmo tempo que pede, encarecidamente, que eu escute o que ele tem para dizer e depois, se preferir, poderei deixar o apartamento sem qualquer tipo de promessa ou condição. Com o peito arfando, ergo a cabeça para encará-lo com indisfarçável estranhamento.

– Temos, ou melhor, depois desse nosso encontro, acredito que tínhamos um almoço hoje… – ele informa pausadamente, arqueando as duas sobrancelhas, deixando claro, com esse deliberado gesto, que aguardava o momento certo para conquistar um voto de confiança.

É óbvio que minha resistência cai por terra diante dessa inquestionável declaração enquanto sou tomado por um atordoamento imobilizante. 

Só liguei, querido, para pedir que você não assuma nenhum compromisso amanhã durante a tarde, pois vamos almoçar com o noivo da sua prima. Aliás, a Beatriz me enviou uma foto dele e o número do celular. Falamos-nos e é um príncipe esse rapaz… Quer que eu te mande a foto, querido? Assim ele não será tão estranho quando nos conhecermos ao vivo e a cores…

Puta que pariu. Eu não estaria aqui se não tivesse sido tão prepotente, tão infantil.

– Continuando… – Thiago pigarreia, chamando de volta a minha atenção – Atravessei a fase da adolescência junto de uma galera que se divertia em festinhas em boates classe “A”, em reuniões regadas a uísque, viagens para Búzios, Angra, Punta del Leste… Nada menos que passatempos caríssimos, mas quem vai se preocupar com dinheiro sendo bancados pelo papai e vestindo Diesel, Lacoste ou dirigindo um Toyota? Ser playboy é e sempre será um estilo de vida que envolve moda, cultura, viagens, amigos, gostar da noite e das baladas, ter um carro específico e curtir jantar fora. Bem diferente de ser um mauricinho, que é um cara chato e engomadinho.

Enxergo perpassar nos olhos de Thiago certo brilho de autoridade e orgulho atrelados à calma aparente que busca ostentar em sua fisionomia.

– Depois de quatro anos mergulhado no meio desse redemoinho de prazeres sem limites, alguma coisa começou a me incomodar. Uma sensação de descontentamento que eu não sabia ao certo explicar e que me fez refletir, questionar se realmente estava feliz e se aquela felicidade calcada num bem-estar material, em uma vida sem problemas e preocupações, era o que eu realmente queria…

Thiago se cala de repente e permanece assim, quieto, por um bom tempo vislumbrando o nada à medida que seus olhos parecem distantes, viajando num espaço de tempo e espaço só por ele alcançado…

– De início preferi não me manifestar, não compartilhar nada com ninguém, preservando a estabilidade das minhas amizades, ou o que eu acreditava poder chamar de amizade… Nesse ínterim acabei sendo surpreendido ao ver-me envolvido com o filho de um dos empregados da casa de um desses meus amigos. Não sei ao certo explicar até hoje como aconteceu tudo aquilo, mas posso garantir que resisti ao máximo à aproximação que foi acontecendo entre nós dois, até porque eu tinha tido algumas namoradas e nunca havia me interessado por um cara…

Porque razão ele está me contando tudo isso? 

– É claro que fomos descobertos – a voz de Thiago, entristecida, parece, enfim, retornar de um lugar longínquo – E os meus amigos trataram de demonstrar seu desconforto e intolerância diante da situação. Primeiro me ridicularizando e em seguida tratando de humilhar o pobre rapaz a ponto do pai dele pedir demissão… Mas eles, os meus amigos, acharam que isso foi pouco e então armaram uma cilada para estuprarem o garoto… E conseguiram!

Como assim? Balanço a cabeça instintivamente a fim de assimilar o que acabo de ouvir. As lágrimas que começam a correr pelo rosto de Thiago, somadas à expressão lancinante que arrebata todo o seu semblante, não deixam dúvidas da dor de uma ferida que, pelo jeito, não foi cicatrizada.

– Eles tentaram me fazer participar daquele ato absurdo, daquela violência sem precedente, como se pudesse existir justificativa para agredir alguém, mas me recusei e então fui forçado a testemunhar, obrigado a ver o sofrimento dele… – percebo que Thiago hesita em dizer o nome do tal rapaz ao mesmo tempo que aperta os olhos com força e repetidamente – Um garoto de 17 anos sendo sodomizado e humilhado por quatro feras ensandecidas. Bestas carregadas de ódio, incompreensão… 

– Acho melhor… – não consigo terminar a frase, pois sou interrompido. 

– Os quatro… – Thiago balbucia para logo em seguida continuar, entre os dentes – Os quatro bandidos saíram impunes, devidamente protegidos pela indulgência dos pais poderosos e influentes, comprovando o quão intocáveis poderiam ser. Inclusive pela Justiça, como se o ato de maldade que cometeram fosse um direito de senhor feudal.

Com um dos punhos fechado, Thiago soca a palma da outra mão, puxando o ar com toda força para dentro dos pulmões enquanto, com o cenho cerrado, consegue estancar, sem grandes esforços, as lágrimas que ainda teimam escorrer de seus olhos.

– Eu fui um covarde… – ele reinicia com uma expressão chocada no rosto – Fui um covarde por não ter me rebelado diante do silêncio que me impuseram. Fui um covarde ter me recusado em depor contra aqueles monstros que chamei de amigos por muito tempo…

Cansaço e decepção figuram em seu rosto. Em seus olhos não consigo enxergar nada mais que um sentimento de derrota e miséria sentimental.

– Uma fase de depressão me assolou a partir de então, e passei a abusar ainda mais do álcool, na esperança de me ver livre dos pensamentos e lembranças terríveis que iam e vinham na minha mente; lutando de portas fechadas contra os meus demônios, sofrendo, chorando, lamentando e vegetando diante de uma longa confusão crescente e indomável dentro da minha cabeça… Sim… Implorei a Deus, em alguns momentos, que me fizesse reencontrar um sentido pra minha vida, em outros questionava se valeria à pena lutar para conseguir alcançar qualquer objetivo. Eu já não sabia em quem confiar ou em quem acreditar realmente. Nem mesmo nos meus pais, no meu irmão, que se consumiam a cada dia diante da muralha de um silêncio mordaz que levantei ao meu redor…

Um silêncio recai sobre nós dois e eu sinceramente não sei o que dizer diante desse desabafo sem precedentes…

– Dormir era a minha única saída… – Thiago retoma seu relato num só fôlego – Só assim conseguia esquecer tudo que me atormentava, pois já não tinha mais forças para fingir o mínimo que fosse diante do excesso de dor, inclusive física, pela somatização de toda aquela angústia e daí tentei o suicídio.

Ele revela com uma voz mortalmente calma, despejado de qualquer expressão e eu estremeço dos pés a cabeça enquanto sinto minha boca ressecar.

– Por dois dias permaneci desacordado na clínica psiquiátrica onde fui internado por meus pais, despertando muito sonolento e confuso, sem ter conhecimento, inicialmente, do que havia feito, mas não demorei a recuperar a consciência e logo fui informado do risco que eu apresentava para mim mesmo… Fui assolado por uma sensação atroz de vergonha e desespero ao encarar o rosto dos meus pais, do meu irmão e enxergar o sofrimento que tinha lhes causado. Pareciam ter envelhecido dez anos… Depois disso decidi que precisava me recuperar e arrumar a minha bagunça e parti para alcançar uma provável recuperação e uma redenção que eu sabia que não iria obter facilmente.

Mais uma cota de um silêncio perturbador…

– Seis longos meses naquela clínica para conseguir vencer minha batalha interior, confrontando a guerra surda e covarde que quase tinha me derrotado…

– Mas e o seu… amigo? – não consigo conter a curiosidade – O que houve com ele? 

Thiago me dá as costas e caminha até o sofá sem braços, onde se deixa cair, permanecendo imóvel, olhando para o teto.

– Se matou dois dias depois do estupro.

Engulo em seco e sinto uma dor fria no coração como se um pingente de gelo o tivesse trespassado ao passo que olho para a imagem estatelada de Thiago sobre o sofá e faço um esforço imenso para não ir até lá e puxar sua cabeça para o meu ombro, afagar-lhe os cabelos… De súbito ele se ergue e caminha de volta até onde estou e se prostra à minha frente com um olhar pálido, frio e uma fisionomia enrugada denotando cólera e apreensão.

– Não quero que pense que te contei essa parte da minha vida para barganhar, pedir que sinta pena de mim e não conte nada para sua prima. Faça o que você achar que deve fazer. Não estou mais preocupado com isso. Mas quero que saiba que me aproximei de você porque ao lhe ver na tela daquele computador reconheci “ele”…

– Do que você está falando? – pergunto enquanto um caos de pensamentos e dúvidas volta a me assolar.

A semelhança entre vocês dois é assustadora…

Thiago mal termina sua frase e puxa o celular do bolso do roupão e depois de uns instantes me mostra uma foto onde ele e o tal rapaz…

Pelo Criador, seu eu soubesse que não sou eu nessa imagem, poderia jurar…

Levanto os olhos para Thiago, interrogando-o em silêncio, tentando entender que tipo de brincadeira é essa… Sua fisionomia está impassível.

– Você me fez matar as saudades que sentia dele… – Thiago dispara sem qualquer remorso – Claro que sua prima não soube disso, contei apenas ao meu irmão, até para que ele me ajudasse, mesmo contra a vontade, a me aproximar de ti depois que te encontrasse… Algo não tão difícil com todos os rastros que você deixa pelas redes sociais… Como acha que consegui com que nos esbarrássemos na praia? E foi mais fácil do que eu imaginei, pois você não me reconheceu. A Beatriz estava certa quando disse que tu tinha se recusado a aceitá-la no facebook, porem deduzi que até a minha chegada ao Rio você já teria mudado de ideia, teria vasculhado as redes sociais da sua prima e daí eu iria apenas me contentar em me apresentar, olhar nos seus olhos… Mas tive a certeza que você continuava na escuridão da própria teimosia quando nos reencontramos no quiosque… 

Minha respiração começa a ficar entrecortada e então sem nem pensar duas vezes me viro de súbito para a porta e com certa dificuldade consigo abri-la para logo depois me voltar para Thiago, encontrando-o com os olhos marejados. Por um breve instante, por incrível que possa parecer, tento achar alguma pista de que ele esteja zuando, tentando quebrar o clima pesado que se instaurou, porém o espectro de um sorriso velhaco, debochado, surge no canto dos seus lábios deixando-me completamente coberto de indignação.

– Filho de uma puta. Isso tudo que você me contou deve ser uma mentira deslavada…

– Acredite no que quiser…

– E o que você disse quase agora sobre conhecermos uma pessoa com quem nos conectemos a um nível mais profundo… Sobre você ter vindo até aqui… A frase do Gabriel Garcia Marquéz sobre sorrir mesmo quando estiver triste…

– Pelo amor de Deus, Lucas – Thiago grita, impaciente, ao mesmo tempo que dá um giro em torno de si mesmo, voltando a me encarar, firme – Decisões baseadas em emoções não são decisões, são instintos…

– Não – eu berro de volta, pouco me importando com a porta aberta do apartamento – Tudo isso que aconteceu, ontem, na sua cama, ontem, quando estivemos lá, no quiosque, ontem, ali, sobre aquele sofá…

– Que lindo a maneira como você enxerga a vida, cheia de mimimi, sonhos, fantasias, esperanças, desejos e alegrias… Realmente cativantes. Portas fáceis para te atingir sem qualquer dificuldade… – o escárnio em seu rosto me derruba. Não posso acreditar nessa súbita mudança de comportamento. Tem algo de errado… – Mas seria uma pena se alguém fizesse você enxergar a realidade não é mesmo?

– Por que me contou essa história de seu passado se tudo isso foi um jogo?

Thiago, por fim, se aproxima rapidamente e me sacode, mas sacode de tal maneira como se sentisse uma raiva insana de mim, ou quem sabe até dele mesmo. Contudo, e com certo esforço, consigo me livrar de suas mãos e fugir para o corredor, onde estaco depois de assegurar que estou suficientemente distante e daí o fito. Não sei o motivo para ainda querer fazer isso, mas faço. Talvez para tentar encontrar um resquício de hesitação em seu olhar, um vestígio de arrependimento em seu semblante… 

Ficamos quietos, nos encarando, mergulhados dentro da distância perpetrada entre nós dois.

– Vá embora, por favor – Thiago ordena, sussurrando e em seguida baixando os olhos.

Respiro profundamente e relaxo por um instante, tentando reunir toda raiva possível a meu favor, tentando recobrar a força, mas por incrível que possa parecer me sinto cansado demais para odiar ou me importar com qualquer coisa. A derrota pesa em meu espírito como chumbo. Apostei tudo e perdi… 

– Que parte você não entendeu dessa porra, Lucas? – Thiago me questiona num tom de voz beirando o descontrole, depois que volta a me encarar

– Eu não consigo… Eu não consigo acreditar… Você… Eu…

– Eu precisava ter a certeza de que você não era “ele” – a crueldade e o desdém direcionados a mim é sufocante – E não resta dúvidas, Lucas, que perto dele você não passa de uma pintura de rodapé.

Respiro com dificuldade diante dessa humilhação. O orgulho… O orgulho… Preciso manter ao menos o orgulho depois de tudo isso… 

Girando nos calcanhares, me afasto do raio de visão de Thiago e a passos largos alcanço a escada de incêndio, onde, depois de fechar a pesada porta atrás de mim, começo a correr, pouco me importando quantos andares terei que descer para me ver longe dessa merda toda. Em cada degrau, um solavanco reflete diretamente na minha cabeça, como se minha coluna quisesse sair do crânio até que alcanço, por fim, a portaria do prédio e a atravesso, ofegante e rápido, sem olhar para os lados, à medida que me volto para trás para ter a certeza de que não estou sendo seguido.

Sentindo o corpo enrijecido e dolorido, atravesso a porta do hall e saio pela rua, caminhando sem destino, refletindo e constatando o quão imbecil me permiti ser por causa da minha ingênua capacidade de acreditar em ilusões, acreditar que posso ter uma vida normal, como a maioria dos seres humanos, independente de qualquer coisa, principalmente da orientação sexual…

Pelo Criador, será que existe escapatória desse beco sem saída? Por que não tive forças para protestar contra o Thiago?

Merdaaaaaaaaaaa.

Ele é só mais um idiota insatisfeito com a própria condição, enganando a si e a outra idiota que vive ao seu lado…

Não consigo dar mais nenhum passo. Sinto-me cansado até os ossos, fraco, confuso… Olho o meu entorno e retiro o celular do bolso da calça e de pronto me deparo com ligações perdidas de dona Lúcia e Gabriela… Respiro fundo e daí teclo os números à minha frente e do outro lado da linha Rômulo não demora a atender.

– Por favor, meu amigo, você pode vir me buscar?

 

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O mundo é um moinho

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