Uma sensação de alívio percorre cada fibra do meu corpo e então, de uma só vez, deixo o ar fugir dos pulmões, seguido de um assobio displicente pelo canto dos lábios, ao mesmo tempo que me permito encostar sobre os dormentes de madeira, dessa vez com cautela, não deixando de olhar para trás rapidamente a fim de poupar o que resta das pobres azaleias e vasos de suculentas. Nessa sequência célere de movimentos, inevitavelmente acabo por me deparar com David, ofegante, estacionado um degrau abaixo de onde estou. Seu rosto está corado e suado; o cenho franzido promove rugas demasiadamente precoces para alguém com 21 anos de idade e seus olhos, completamente concentrados em mim, brilham carregados de pesar e debilidade e raiva, misturadas em uma forma de fúria potente e letal, transformando seu semblante em uma máscara grotesca.

Um medo irracional ousa atravessar o meu cérebro.

Sem sombras de dúvidas, a chegada de Rômulo e seus três mosqueteiros, devem abrandar os ânimos de David, ou pelo menos fazê-lo recuar.

Num único gesto, praticamente girando nos calcanhares, dou as costas para ele e avanço um degrau acima, me afastando dos dormentes de madeira e companhia, recusando-me a continuar encarando-o. Há batalhas que não devem, ou não precisam ser travadas, principalmente depois que nos certificamos que não há mais objetivos a serem conquistados ou inimigos a serem combatidos.

Como o amor ou que quer que fosse que eu sentia por David pôde se transformar em apatia de um minuto para o outro? Questiono-me, endireitando os ombros, um tanto lastimoso, ainda incrédulo diante da epifania que me acometeu ao revê-lo após essas três semanas que se passaram desde o fora que levei.

Mas pode. E se transformou!

Diante dessa irrevogável constatação, olho para trás, de soslaio, por cima do ombro esquerdo e percebo que parte do tal medo irracional que eu vinha experimentando se afastou, restando tão somente uma sensação cristalizada em meu peito a qual não consigo identificar…

– Isso é muito feio, sabia?

Ouço a voz de Rômulo e retorno a colocá-lo no meu raio de visão.

Depois de cruzar os braços, ele despeja sobre mim um olhar carregado de indignação enquanto meneia a cabeça, assumindo ares de um professor que reprova a conduta de um aluno após flagrá-lo colando na prova. Contudo, em seguida, esse mesmo olhar aguçado passa por cima dos meus ombros, certamente para alcançar e também repreender David, cuja respiração pesada eu posso sentir de maneira tão perceptível, como se os centímetros que nos separassem não fossem nada mais que meras polegadas.

Um silêncio involuntário recai sobre cada um dos doze degraus da escadaria à medida que Rômulo volta a perscrutar, com o cenho cerrado, as fisionomias dispostas sobre ele, cobrando, por trás desse mutismo absoluto, uma satisfação para o circo montado defronte à sua casa.

Não bastasse esse direito adquirido, deve-se levar também em consideração que Rômulo, no alto dos seus 17 anos, é uma das raras pessoas que tem o dom de influenciar as outras, infundindo ordem, dignidade, amainando situações, discrepâncias… Uma das diversas vertentes sobre a arte da Liderança defende que muitas vezes ela é uma aura que acompanha algumas poucas pessoas escolhidas, uma qualidade inata, e, portanto, uma característica quase genética. Então, seguindo a linha de raciocínio dessa tal vertente, provavelmente Rômulo tenha herdado essa habilidade de seus pais, e a desenvolveu sob o olhar enérgico de sua mãe, dona Elizabeth, uma mulher pragmática e sem qualquer acanhamento.

Não é a toa que no colégio Rômulo sempre está à frente dos eventos, interessado e aberto para o que é novo e envolvido em debates sobre a natureza do certo e do errado, a exploração da fé em comparação ao conhecimento, discutindo temas para trabalhos, convencendo os mais arredios dos colegas a fazer alguma coisa. Dando suporte até mesmo para os grupos os quais não faz parte… E ouvindo sempre. Com uma esmerada atenção. O que os outros têm a dizer. E expressando sua opinião, quando solicitada, dentro de uma eloquência e capacidade de síntese impressionante para um jovem que ainda não alcançou os seus vinte anos.

– Admiro você, Lucas, permitir isso… – Rômulo se volta por completo na minha direção; o semblante impassível – Estamos comemorando a sua despedida, mas da porta da minha casa para dentro, ok?

Engulo em seco. A reprimenda é mais que válida, afinal, sou o responsável por David estar aqui, criando esse tumulto. Não posso e não tenho o direito de contestar, tão somente obedecer, mas o Rômulo acabou de sacrificar de uma maneira tão negligente o fator surpresa da festa que ele estava reservando para mim.

E agora?

Não terão fitas e serpentinas?

Balões?

Glitter?

Um cartão enorme com dedicatórias da nossa galerinha?

E as clássicas luzes apagadas com todo mundo escondido atrás de um sofá? 

Tomando o cuidado de trespassar David como se ele fosse um fantasma, evitando a todo custo encará-lo, volto-me para trás, num gesto desesperado, em busca de Gabriela, que está terminando de se levantar de cima dos dormentes de madeira, das azaleias e dos vasos de suculentas onde havia sido jogada.

Nossos olhares não demoram a se cruzar.

Minha amiga, que deve ter detectado o viés de urgência após ter ouvido as últimas palavras de Rômulo, arqueia a sobrancelha numa expressão intrigada, arregalando os olhos e compartilhando comigo a mesma sensação de espanto.

Agora não sei como reagir. Que tipo de semblante eu devo ostentar… Merda! O Rômulo acabou de descobrir um santo para cobrir outro…

Retorno para frente e fechos os olhos de modo rápido antes de abri-los para fitar o meu amigo e sou surpreendido, de pronto, ao vê-lo substituir até então sua imperturbável fisionomia por um riso furtivo enquanto descruza os braços e usa uma das mãos livres para coçar o queixo.

Baixo o rosto rapidamente a fim de conter o riso que me vem aos lábios.

Ainda bem que meu amigo está com esse espírito leve; talvez assim consiga dizimar esse climão que se instaurou aqui, em frente à sua casa, sem grandes desgastes e principalmente convencendo David de que ele está fazendo uma tempestade num copo d’água.

Subitamente sou inundado de uma ternura absurda por Rômulo, como nunca antes havia sentido, e também por um arrependimento atroz, causando-me alegria e dor em igual medida… Talvez Gabriela esteja certa. Rômulo é um grande amigo e está mais do que na hora de considerá-lo da mesma forma que ele me considera…

– Só porque está no seu território acha que pode ficar dando uma de reizinho?

Pronto. Ouço a voz de David “incendiando” atrás de mim e daí ergo a cabeça, buscando o semblante de Rômulo, certo de que vou encontrá-lo exprimindo seu peculiar senso de prudência, entretanto, por incrível que possa parecer, eu me deparo com um riso largo rasgando os seus lábios, confirmando o que ele já havia me permitido perceber a segundos atrás: está se divertindo.

– Você tá achando que eu sou idiota?

A voz de David se eleva e cada vez mais embriagada de raiva, indignação. Ato contínuo, eu me viro para olhá-lo, mas sequer tenho tempo de encará-lo, já que ele se volta para Gabriela, que surge ao seu lado, com as mãos na cintura e gritando tão alto quanto pode.

– Você me machucou sabia?

– Eu avisei que o meu problema era com o seu amiguinho… – ele responde com um tom de desprezo pontuando cada uma de suas palavras.

– Seu cretino…

– David. Por favor. Vamos embora.

Todos se voltam na direção da voz que emerge dos degraus abaixo de onde estão Gabriela e também David. É o tal homem, que surgira do nada há alguns minutos tentando persuadir meu ex a deixar para trás a balbúrdia que vem fazendo. Dessa vez o som possante transbordando autoconfiança que sai de sua garganta, rematado por um olhar carregado de resolução e uma postura ereta, distinta, dá lugar ao clamor tímido de sua súplica de instantes atrás.

Eu e Gabriela nos entreolhamos, cúmplices. Não há dúvidas que esse deve ser o NOVO NAMORADO… Augusto? Foi esse o nome pelo qual David o chamou?

Incentivado por uma estranha sensação de despeito, refreada, mas presente, porém nada que seja relativo ao David, tão somente uma constatação sopesada, quase como que saciando um instinto sádico de me deparar com o “meu sucessor”, inclino um pouco o pescoço para a direita a fim de poder medir Augusto de cima a baixo.

Augusto…

Realmente ele parece um legítimo balzaquiano. Não deve ter mais do que uns 35 anos… E é bonito, preciso reconhecer. Um nariz aquilino sobre os lábios vermelhos, uma testa alta, olhos bem separados, além de alto, ombros largos, musculoso… Uma constituição poderosa e gritante se comparada ao meu biótipo magro, à minha silhueta timidamente definida…

– David, por favor, poupe-nos dessa situação vexatória… – Augusto continua…

“Poupe-nos?”

Eu e Gabriela voltamos a trocar olhares de conveniência. Não resta dúvida. Ele é o NOVO NAMORADO!

– Eu não estou pedindo sua opinião – David se vira para trás, cuspindo maribondos – Eu te disse para não vir até aqui. Esse assunto é meu.

David finaliza sua repreensão elevando o punho esquerdo na direção do próprio peito, não demorando a baixá-lo para desferir contra si um, dois, três socos antes de retornar para frente, alternando o olhar perscrutador entre mim e Rômulo.

– Já que você faz tanta questão desta sua festinha de merda – ele aponta para o portão de aço com um gesto exagerado de uma das mãos, como se estivesse espalmando para longe algo que lhe causasse repugnância, ao mesmo tempo que toma o cuidado de não deixar Rômulo escapar do seu raio de visão – Volta lá pra dentro e nos deixe aqui fora.

Rômulo permanece emudecido. Cada vez mais seu sorriso vai se tornando desdenhoso, meio insinuante. Aonde ele pretende chegar agindo dessa maneira, cutucando uma onça com vara curta? Os três amigos, estacionados no seu entorno, estão alerta e parecendo aguardar somente um gesto que considerem indevido por parte do David para agir. Preciso acabar com isso antes que essa confusão tome proporções absurdas e alguém se machuque seriamente.

– Quer saber de uma coisa David? Em minha opinião você deveria aceitar a sugestão do seu amigo – Rômulo, por fim, se manifesta, movendo levemente o queixo para frente.

– Ou então o quê? – David ameaça dar um passo para alcançar o próximo degrau, anterior ao que estou, mas se retém diante da movimentação nada sutil acompanhada da cara de poucos amigos que fazem os três mosqueteiros.

– Cara, na boa – Rômulo continua, mas dessa vez recolhendo o riso solto – Eu te respeitava enquanto você namorava o meu amigo, e você sabe disso… – ele move a cabeça de um lado para o outro, parecendo tentar encontrar as palavras certas antes de prosseguir: uma resposta calma desvia a fúria – E quem sabe até continuaria te respeitando, apesar de priorizar a minha amizade com o Lucas. Mas essa sua reação primitiva, tentando arranjar a todo custo uma briga com alguém, além de se achar no direito de fazer isso aqui, na frente da minha casa, e me criticar por estar tentando preservar o ambiente onde moro com meus pais, jogou por terra toda e qualquer chance de continuar a considerá-lo…

– Como se eu fizesse questão – David replica, aos berros, parecendo um animal encarcerado – Enfia essa sua pose de mauricinho de merda no meio do seu cu…

– David – Augusto grita o seu nome certamente na tentativa de repreendê-lo à medida que ensaia um movimento para começar a subir os degraus que os separam – Definitivamente já chega…

– Vá se fuder você também, Augusto – ele dispara sem sequer olhar para trás, desprezando completamente a opinião do namorado – Você devia perguntar o que seu amiguinho fez – David aponta o indicativo na minha direção e o mantém em riste, lançando-me um rápido olhar carregado de cólera para logo em seguida se voltar para Rômulo, recolhendo o dedo acusador – Esse viadinho postou um monte de merda a meu respeito na internet e nada mais justo que eu venha tirar satisfação…

Não consigo me mexer. Minha cabeça volta a latejar e daí fecho os olhos por alguns rápidos instantes rogando ao Criador que tudo isso termine logo… Nesse momento sinto alguém tocando o meu braço e abro os olhos num sobressalto. É Gabriela se postando ao meu lado. Respiro, fundo, e então retorno meu olhar para Rômulo, temeroso na expectativa de sua reação diante das ofensas de David, suplicando para que ele as ignore. Meu amigo permanece em silêncio por alguns instantes. É notório que ele quer se mover e deixar todo esse pandemônio para trás, mas faz um esforço para não sair do lugar, assumindo uma postura extremamente rígida ao passo que deixa uma grande quantidade de ar fugir de seu peito para logo depois inalá-lo, sôfrego.

– Seja lá o que o Lucas tenha feito, cabe a vocês dois resolverem isso da forma mais adequada, lavando a roupa suja em casa. Ninguém é obrigado a ficar assistindo esse festival de palavrões e insultos. E além do mais, aprenda a respeitar o próximo. Ofender alguém é baixar sua própria dignidade.

Rômulo inala mais um grande hausto de ar após deixar as palavras escaparem de seus lábios em um só fôlego enquanto uma onda de náusea me sobe pela garganta em golpes atordoantes. Não me resta alternativa: aperto com força o braço de Gabriela.

– É isso… – a voz de David quebra o momento de silêncio que se instaurara – Agora você deve estar feliz por ter o caminho livre, né? – ele inclina um pouco a cabeça na minha direção, mas sem deixar de continuar afrontando Rômulo enquanto escancara sua boca com um sorriso bastante afetado – Quem sabe já não tenha se tornado o macho desse boiolinha… Era tudo o que você queria, Rômulo.

David se apruma como se quisesse parecer ainda mais alto após destilar seu veneno em contraponto a Rômulo, que não reage. Nenhuma palavra. Apenas o encara de volta com um olhar resoluto. A indiferença é a maneira mais polida de desprezar alguém e com toda certeza que possa existir entre o céu e a terra, o meu amigo não agiria de outra maneira.

Rômulo meneia a cabeça e então se vira, fazendo menção em atravessar o portão de aço, decerto a fim de retornar para dentro dos limites de sua casa, mas é impedido por David, que praticamente atropelando a mim e Gabriela, parte para cima dele, atirando-o no chão, causando surpresa a todos, e até mesmo aos três mosqueteiros, por sua celeridade ímpar para chegar às vias de fato.

Uma confusão de gritos e empurrões tem início.

Augusto passa por mim e por Gabriela no afã de alcançar o patamar do alto da escada ao passo que minha amiga me abraça e me força, junto com ela, a recostarmos o máximo que pudermos sobre os dormentes de madeira, porém, imbuído por um principio de dívida e solidariedade em relação a Rômulo, me desvencilho sem grandes esforços e tento chegar até o “olho do furacão”, mas acabo levando uma cotovelada no lado esquerdo do rosto ao tentar me aproximar.

Uma dor aguda, instantânea, toma conta da minha bochecha e do meu ouvido enquanto sinto o mundo virar de cabeça para baixo, aterrissando com violência, por fim, nos degraus próximos a Gabriela, num baque suficiente forte para me deixar atordoado.

 

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Engenheiros do Hawaii – Toda Forma de Poder, fonte: https://www.youtube.com/watch?v=yWca00y9ckI

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