A água quente do chuveiro cai sobre mim enquanto fecho os olhos para enxergar com perfeição “Thiago” parado à minha frente com seus cabelos curtos e lisos, E CLARO, seu corpo escultural sem exageros… Respiro forte, meu peito arfa e então me viro de frente para a ducha e deixo a água escorrer sobre as costas ao mesmo tempo que apoio minhas mãos na parede…

Não consigo ouvir nada a meu redor. Nenhum som alcança o meu cérebro…

De repente eu e “Thiago” estamos subindo uma enorme escadaria onde uma iluminação bastante precária nos rodeia. Eu na frente, ele seguindo meus passos e um silêncio absurdo tomando conta de tudo, assim como um clima de uma pretensa tensão sexual, que a cada minuto vai se tornando menos e menos latente…

Sinto um suor frio escorrer pelo meu rosto apesar da temperatura quente da água do chuveiro. Como se todo o meu corpo estivesse levando choques… Meneio a cabeça, respiro de uma só vez e por fim desço minha destra até a virilha…

Quem é você?, eu pergunto, o que você quiser que eu seja “Thiago” responde de pronto, entre sussurros, ao mesmo tempo que os movimentos de minha mão se aceleram vertiginosamente, assim como minha respiração, enquanto mantenho os olhos fechados, apertando-os com muita, muita força a fim de não perder a concentração até que uma sensação de prazer intenso atinge cada um dos meus músculos, meus batimentos cardíacos aceleram, o suor jorra da minha pele como um motor prestes a fundir e o meu fôlego, não podendo se manter num ritmo diferente, cada vez mais entrecortado…

Medo, raiva e prazer se misturam até um espasmo tomar conta de todo o meu corpo, fazendo-o se contorcer involuntariamente, me forçando apoiar, num gesto violento, as costas sobre a parede…

 

Iiiinspiiiiiro…

                          Expiiiiiroooo…

 

Desligo o chuveiro e algumas gotas de água ainda caem sobre mim ao passo em que minha respiração, aos poucos, vai retomando o seu ritmo natural. Imóvel, abro os olhos e fixo o chão por alguns instantes. Uma sensação de relaxamento começa a me invadir e logo ergo a cabeça para apanhar a toalha que está descansando, pendurada, sobre a porta do boxe; meus braços e pernas parecem estar em câmera lenta, mas ainda assim não demoro tanto para me enxugar, colocando, em seguida, a toalha em volta do pescoço e abrindo a porta do boxe para caminhar até a frente do espelho, onde com a mão esquerda tento limpar um pouco do vapor (que também tomou conta de todo o banheiro), conseguindo apenas fazer uma pequena trilha sobre a sua superfície, divisando, assim, parte do reflexo embaçado do meu rosto.

Arrependimento, decepção e frustração são o que encontro, mas dou de ombros à medida que vejo meus lábios se curvarem para baixo enquanto trato de estampar em meu semblante uma expressão de notória rispidez, de orgulho até. 

Como bem disse Oscar Wilde, os loucos às vezes se curam, mas os imbecis, nunca – balbucio, tentando limpar um pouco mais do vapor de sobre o espelho.

 

*  *  *

 

Pronto. Banho tomado e cheirosinho. Aguardem-me pessoas, pois irei zoar muito na minha festa de despedida. Tô merecendo depois desse dia. Na verdade depois dessas últimas semanas. Vou esquecer tudo enquanto estiver lá, no meio da pista, me esbaldando, gritando, expurgando todos os meus demônios.

Dou dois tapas no meu rosto e arqueio uma das sobrancelhas enquanto encaro meu reflexo no espelho do armário do meu quarto.

Até que não sou feio, poxa. Posso não me enquadrar no padrão Disney de qualidade dos príncipes encantados, mas sou um filezinho bem passado com esse meu rostinho triangular, sobrancelhas e pestanas escuras, meu cabelo castanho claro…

Atiro a toalha que está em volta da minha cintura sobre a cama e passeio bem devagar os olhos sobre o meu corpo. Meu biótipo pode até ser magro, mas graças à natação, à academia e ao judô tenho uma silhueta timidamente definida, com nada fora do lugar. Tento pegar um pouco de pele na minha barriga, mas não consigo encontrar nada para agarrar e então deixo escapar um sorriso silencioso e debochado no canto dos lábios, presumindo, vaidoso, que o idiota do David jogou tudo isso fora pra mergulhar no corpo humano de um balzaquiano, que por mais inteiraço que possa estar, duvido que já não tenha algumas (muitas) gordurinhas aparecendo na barriga e pés de galinha ciscando ao redor dos olhos.

Apanho o meu roupão preto dentro do armário (graças ao Criador minha mãe não o encaixotou ou o enfiou dentro de alguns desses sacos semeados pelo chão) e o visto como se estivesse colocando um fraque, sem pressa e com prazer, e com ele aberto dou um giro em torno de mim mesmo, assim como Madonna fez em uma cena do filme Evita enquanto experimentava vários casacos de pele.

Apesar de fazer parte de uma geração que idolatra Beyoncé, Kate Perry, Selena Gomez, Demi Lovato, Shawn Mendes, Ed Sheeran, Sia, Justin Bieber, Taylor Swift e Miley Cyrus, AMO MADONNA! Assim como também sou a-pai-xo-na-do pelos anos 80…

 

as séries,

       as músicas,

             os filmes…

Kid Abelha,

Roupa Nova,

Legião,Biquini Cavadão, R.E.M.,

Elton John, Pet Shop Boys,

os Goonies.

 

E o ABBA!!!

           E o A-HA!!!

 

… Pelo amor do Criador!

Meu sonho de consumo: um dia ainda vou tomar coragem e encarar uma festa ploc!

Dou outro giro em torno de mim mesmo e canto um trecho da música Dancing Queen com direito à coreografia igual (ou quase) ao filme Mamma Mia, porém batidas repentinas na porta (que está trancada, lógico) dão cabo do meu show particular. Um Oscar para quem adivinhar a pessoa que está do outro lado girando a maçaneta como um serial killer, num filme de suspense/terror, disposto a invadir o quarto do protagonista a qualquer preço.

– Lucas, querido, só para lembrar, a Gabriela está te aguardando.

Grito que já vou.

– Tudo bem, mas não se esqueça de que você não está indo para um casamento…

Reviro os olhos e conto até dez e deixo os ombros caírem. Meus pais deveriam ter tido mais um filho, concluo enquanto respiro fundo e volto a encarar o meu reflexo no espelho, contudo, dessa vez, virando-me de lado para obter uma visão de perfil, constatando, orgulhoso, que realmente nada está fora do lugar. Mas, por incrível que possa parecer, numa questão de segundos, a sensação de prazer e vitória que essa visão me proporciona, se transforma. Não consegue manter-se reconfortante, ao contrário, me devolve um reflexo austero, frio, ao mesmo tempo que um estranho pesar e uma infelicidade mordaz crescem dentro do meu peito, abrindo caminho para que um vazio absurdo se aloje…

Resisto. Seja lá o que for, não vai estragar minha noite. Não cheguei até aqui, enfrentando todo esse Deus nos acuda nessas últimas semanas, para, agora, fraquejar. 

Estufo o peito. Ao máximo. A soberba, a vaidade, e principalmente a resiliência, me ajudam a reunir forças para erguer a cabeça num gesto um tanto afetado, que me faz parecer um rei buscando convencer a si mesmo de sua majestade há muito perdida, com o rosto tenso e as sobrancelhas assustadas como asas de um pássaro agarrando-se à pele.

Um, dois, três. Um, dois, três.

Deixo um ar pesado escapar dos pulmões e então me volto para a direção da cama, onde a roupa nova que vou vestir para a festa de despedida está disposta, aguardando desesperadamente para ser usada.

– Será que devo contar para Gabriela sobre o Thiago com aspas?  🤔 🤔 🤔 🤔

 

*  *  *

Chego à sala e encontro Gabriela e minha mãe sentadas no sofá (todo coberto pelo lençol bege) conversando tranquilamente como se estivessem saboreando um tradicional chá das cinco, com toda pompa e circunstância, nem parecendo que estão no meio de um pandemônio de caixas de papelão, fitas adesivas, plástico bolha, pincéis atômicos e otras cositas mas.

Minha amiga está segurando um copo com sua mão direita enquanto sorri, notoriamente sendo gentil em retribuição à hospitalidade de dona Lúcia, já que para minha mãe é inadmissível uma visita não aceitar, sequer, uma bebida, seja um suco, um café ou um copo com água, mesmo com a casa de pernas para o ar como está. E isso se aplica até mesmo para Gabriela, afinal, já se vão oito anos desde que eu e minha amiga nos conhecemos, quando os pais dela se mudaram para esse prédio, e de lá para cá nunca mais nos separamos, transitando, naturalmente, no apartamento um do outro.

– Vamos? 🤨 🧐 – lanço a pergunta para Gabriela, que está sentada de frente para mim, ao tempo que reviro os olhos para o lado da porta denotando a máxima urgência que estou para sair desse apartamento.  A propósito, tomando cuidado em não ser flagrado por dona Lúcia, caso ela se vire do nada na minha direção, 

Minha mãe demora um pouco para se voltar, mas assim que o faz nossos olhos se encontram e por um segundo tenho a impressão de identificar em sua fisionomia um brilho de triste orgulho, porém a alegria feroz de seu sorriso dissipa de imediato essa sensação certamente equivocada de minha parte.

Bom, acho que para alguém egoísta, até que fui bem perceptivo.

– Você está lindo, querido, com essa blusa social xadrez… – dona Lúcia me examina de cima a baixo, fazendo um sinal com um leve aceno de cabeça para que eu me aproxime – Com esse colete cinza chumbo e essa calça jeans com lavagem básica.

É assim que minha mãe tece os seus elogios. Os adjetivos nunca vêm sozinhos. Estão sempre acompanhados da descrição das peças dos vestuários que estamos usando. Será que ela sempre agiu assim ou somente depois que virou “colega de profissão” do Dr. Sigmund Freud? Mesmo a contragosto, alcanço a parte detrás do encosto do sofá, e assumindo uma postura rígida, parecendo um daqueles guardas da realeza britânica, paro com as mãos entrelaçadas às costas.

– Espero que se divirtam bastante – dona Lúcia volta a encarar Gabriela que lhe responde com um sorriso daqueles que nove entre cada dez dentistas desejam para os seus pacientes.

– Iremos, com toda certeza, apesar de ser uma festa de despedida para mim por estar sendo deportado, ALONE, 😬😬😬😬 depois de amanhã, para um lugar tão, tão distante – respondo, sorrindo ao melhor estilo Coringa de ser, enquanto minha amiga me encara, os olhos piscando fogo.

– Acho melhor irmos… – Gabriela não demora a sugerir, já se levantando, ao mesmo tempo que deposita sobre a mesinha de centro o copo que vinha segurando.

Minha mãe também se levanta e é a minha chance de dar um passo para trás.

– Então à meia noite o Príncipe Encantado estará em casa, não é mesmo? – dona Lúcia se vira lentamente e com os olhos semicerrados me entrega um sorriso irônico.

– Como assim? – não titubeio em questionar enquanto jogo minhas mãos para o alto – Pelo Criador, mãe, desse jeito a senhora quebra a corrente.

– Não estou quebrando corrente alguma, Lucas Fabiano…

Sim! Eu tenho um nome composto, como todo personagem digno de uma novela mexicana. Eu não sei onde meus pais estavam com a cabeça, na verdade não sei onde meu pai estava com a cabeça ao aceitar me registrar com essa combinação medonha sabendo que eu carregaria essa cruz para o resto da minha vida.

Depois de uma boa argumentação de Gabriela, dona Lúcia aborta a ideia da “missão Cinderela” e me deixa retornar as duas da madrugada, com a promessa/condição de que eu ligarei quando estiver saindo da casa do Rômulo, aonde, oficialmente para ela, e, acho, para os outros pais também, vai acontecer a minha festa de despedida.

É claro que minha mãe não sabe sobre a boate. E muito menos sobre minha identidade falsa.

 

H E L L O O O O O !!!!!

 

Mentir é uma estratégia comum entre os adolescentes para conseguir fazer coisas que sabem que não serão aprovadas pelos pais, e eu não estou disposto, a essa altura do campeonato, ouvir um monólogo apontando justificativas, ressaltando que mentir é errado, apesar de fazer parte do processo de amadurecimento, e ainda correndo o risco de ficar em casa, de castigo, ainda mais depois da batalha épica que eu travei para blindar dona Lúcia de todo e qualquer resquício de notícia que remetesse aos preparativos da minha festa de despedida na Rainbow.

Aliás, uma verdadeira cruzada suicida, considerando toda a tecnologia que temos à nossa volta. Uma odisseia só superada pela invasão de privacidade esporádica que sofro ao ter minhas gavetas, armários, bolsos e mochilas vasculhados (ok. Já falei sobre isso, porém não custa repetir). Ainda não sei como ela até hoje não teve a brilhante ideia de revistar meu note ou a agenda do meu celular…  Ou será que realmente faz isso e de maneira profissional? Pelo Criador. Será que minha mãe é uma espécie de Jennifer Garner, em Homens, Mulheres e Filhos, que vigia todos os passos da filha nas redes sociais para impedir que ela seja vítima de algum pervertido? 

Era só o que me faltava. 

É algo controverso, não? Nossos pais nos ensinam a mentir, por exemplo, ao mandar dizer ao telefone que não estão ou elogiar a comida de outra pessoa, mesmo não tendo gostado e depois se questionam o porquê do filho não contar todas as verdades para eles. E isso sem falar nos exageros, nos esquecimentos mais que providenciais…

– Qual é o teu problema? – Gabriela pergunta entre os dentes, já dentro do elevador, depois de nos despedirmos com um aceno simpático de “até logo” para minha mãe, que estava parada à porta do apartamento.

– Qual deles? – devolvo com sarcasmo.

Ela me lança um olhar fulminante.

– Preciso expressar toda minha insatisfação. A própria dona Lúcia me incentivou a isso – respondo num tom de voz diabolicamente carregado de candura.

– Ok. Mas da próxima vez que decidir dar uma de Ché Guevara, tente não fazê-lo momentos antes que estivermos de saída.

Encosto-me ao espelho que toma conta da parede às minhas costas, repetindo o mesmo gesto de minha amiga, e cruzo os braços.

– A senhora está super bem nesse tubinho preto acima do joelho, mas acredito que já deva ter ouvido isso de dona Lúcia… – comento, não fazendo o mínimo esforço em abrandar meu tom de pura provocação.

Gabriela se afasta do espelho e joga a cabeça para trás num gesto de total impaciência, e em seguida passa a me encarar com o rosto mais que flamejante.

– Acho que você devia enxergar, ao menos uma vez, toda essa situação com o olhar da dona Lúcia, sabia?

– Oi?

– É isso mesmo. A sua mãe está estressada com toda essa história da mudança de vocês, a separação… – a tolerância começa, aos poucos, tomar conta do semblante da minha amiga – Ela está tão esgotada que esqueceu meu nome por duas vezes enquanto estávamos conversando…

– E daí? – presumo com pouca importância.

– Não deve ser nada demais, porém o esforço que fez para lembrar me deixou extremamente incomodada… Tive pena dela.

– E o meu estresse? Esqueceu do que te contei hoje cedo, que domingo eu vou entrar naquele avião sozinho? Que vou ter de enfrentar àquelas feras sertanejas com a cara e a coragem devido a mais uma despótica decisão tomada por dona Lúcia? – reivindico sem pestanejar.

Gabriela volta a cabeça para o outro lado na tentativa óbvia de me ignorar veementemente.

– Já te falei sobre a desconfiança que tenho de que meus pais e eu nos encontramos na época da Inquisição?… – questiono ao passo em que descruzo os braços e me afasto da parede de espelho.

– Sim – ela retorna na minha direção e retruca enquanto revira os olhos – Essa e também todas as outras nas quais seus pais foram vítimas indefesas em suas mãos, um tirano impiedoso.

Por incrível que possa parecer, conseguimos descer, sem escalas, os doze andares até o hall de entrada do elevador e Gabriela é a primeira a sair. Eu a sigo, de pronto, pelo curto corredor em forma de “L”, passando pelo aparador de madeira e pela luminária de luz baixa, que ocupam de frente um para o outro, a parede pintada com um tom de cinza embaciado, que vai sendo substituído por tons mais claros na medida em que o hall de entrada da portaria se aproxima com seu clima clean, móveis de traços retos, cores claras e sem estampas.

– Onde é o incêndio? – pergunto tentando alcançar Gabriela, que mesmo com seus 1,68m consegue ser tão veloz como uma lebre.

– Se o senhor não tivesse demorado tanto para se arrumar, já estaríamos chegando à sua festa – ela dispara enquanto atravessa o saguão a passos largos – E a propósito, o Uber que a sua mãe chamou não vai ficar nos esperando a noite toda.

Não respondo nada, apenas aproveito a posição privilegiada de estar às suas costas para fazer uma careta; o porteiro é testemunha da minha reação um tanto, digamos, peculiar, mas se mantém na dele depois que lhe entrego um sorriso forçadamente simpático.

Amo minha amiga, ainda mais com essa sua personalidade forte, sempre dominando as situações que acontecem em torno de si, não precisando da validação de ninguém para ser quem é, e algumas das vezes até mesmo passando a impressão de ser rude. Porém, quem a conhece, tão bem como eu, sabe que sob esse exterior colérico, Gabriela tem o mais terno dos corações, apesar do verdadeiro pavor de que essa sua fraqueza venha a ser descoberta.

❤️  💞  💏

Tão logo cruzamos a portaria, visualizamos um Corolla prata, quatro portas, estacionado no final da calçada, em frente ao prédio. Possivelmente é o Uber que dona Lúcia chamou, Gabriela informa, sem se virar, continuando sua trajetória como se fosse salvar a pátria enquanto sinto o celular vibrar no bolso da calça jeans. Minha mãe não é tão rápida assim, concluo sem demora, como também sem demora deduzo com todas as probabilidades desfavoráveis contra minha persona que o CRETINO DO SÉCULO é o ser humano do outro lado da linha. Decido ignorar a ligação, mas a curiosidade mórbida fala mais alto e daí, depois de mais alguns passos, sucumbo e praticamente arranco o telefone do meu bolso e torço para não encontrar o número do David no visor. O que não acontece, claro. imediatamente disparo um MERDA e um PUTA QUE O PARIU em alto e bom som ao mesmo tempo que estaco, lançando um rápido olhar na direção da minha amiga, que já um pouco afastada, se vira, me flagrando inerte segundos antes de eu voltar a mirar o aparelho.

– Está tudo bem? – ela pergunta enquanto ouço o som da sua voz se aproximando.

– É o David – comunico um tanto claudicante, erguendo a cabeça e me deparando com Gabriela parada à minha frente – Não sei se quero atendê-lo.

– Então não atenda – ela devolve sem titubear, girando nos calcanhares.

– Ele tá insistindo.

Minha amiga se volta e praticamente toma o celular da minha mão, quase o derrubando no chão e eu não tenho tempo de impedi-la de fazer o que eu tenho certeza de que vai fazer.

– O que você quer David?

Eu a encaro, possesso, e ela, como era de se esperar, me ignora completamente.

– Jura que ele postou isso?… Não… Não sabia… Mesmo?… Como pode ter certeza de que foi o Lucas?

Minha amiga é a personificação do cinismo. Tenho certeza de que o David está lhe perguntando sobre a minha postagem no Secrets.

– Ele foi ofensivo?… Jogou sua masculinidade no ralo?… Bom, se você tá dizendo, quem sou eu pra contestar…

Algumas pessoas passam a nossa volta enquanto faço sinal para que ela desligue o telefone, mas Gabriela dá de ombros e continua.

– David, você já ouviu falar no Cazuza?… Isso… Um cantor… Já. Já morreu… Então, segundo ele, e eu concordo, veado é aquele animal que salta pelas florestas e bicha é aquilo que dá na barriga das pessoas que comem merda…

Eu vou matar a Gabriela e demonstro isso com o meu semblante totalmente transtornado. Ela está colocando fogo em uma fogueira que ainda nem sequer foi acesa…

💣  💣  💣

– Ah, vai se fuder você David. Quer saber de uma coisa? Se realmente o Lucas escreveu isso não mentiu, não é?… E quer saber do que mais? Ele já arranjou um namorado.

Ela desliga o celular e me devolve como se nada tivesse acontecido.

Sinto o ar me faltar.

– Qual é o seu problema? – pergunto resfolegante – Com certeza o infeliz agora vai aparecer lá na Rainbow querendo tomar satisfações, e que papo é esse de que arranjei um namorado?

– Para Lucas com esse ataque de viadagem, pelo amor de Deus. Se componha – Gabriela volta a caminhar retomando a direção do Uber – Eu não tô te entendendo. Você mesmo me disse que queria ver a cara do seu ex antes de ir embora…

– Não tenho mais certeza disso…

– Pensasse antes de postar aquela merda toda, meu amigo.

– Eu acho que não vou mais nessa festa…

Gabriela para e demora alguns instantes até iniciar um movimento de rotação, de 180 graus, em câmera lenta, completando-o no instante exato em que estou sob o seu campo de visão para em seguida colocar as mãos na cintura enquanto me encara, incisiva, dando a entender que vai me engolir vivo.

– Deixa de ser cretino e infantil…

– Ótimo. Todos tiraram o dia para me chamar de imaturo…

– É o que você está sendo. Eu te disse para ser superior ao David, mas o que você fez?

– Agi por impulso – respondo meio que cabisbaixo, mas minha amiga, com a voz firme, me obriga a manter a cabeça erguida.

– Então o senhor trate de pagar essa conta e sozinho, e nem pense em faltar na festa que todos os seus amigos se esforçaram para que ela acontecesse porque te consideram pra caralho – ela desce as mãos da cintura e coloca o dedo da mão direita em riste bem na minha direção e eu passo a fitá-la com um olhar esquivo – Não é justo que paguemos o pato só porque o senhor vacilou, e muito menos o Rômulo. Você não imagina as negociações que ele precisou fazer com os pais para conseguir tirá-los de casa…

– Oi?

Demoro alguns segundos para assimilar o que acabei de ouvir enquanto deposito toda minha atenção sobre Gabriela, que recolhe o dedo indicador pausadamente ao mesmo tempo que seu semblante começa a exibir sinais de tensão, seus olhos correm de um lado para o outro, as sobrancelhas se elevam e algumas rugas horizontais surgem no meio da sua testa, e sua boca, tensa, acaba por relaxar, ficando semiaberta…

Raramente eu já a vi assim, desarmada, e quando isso acontece é porque tem alguma coisa errada que não está certa.

– Por que razão o Rômulo precisou tirar os pais de casa? – mal termino minha pergunta e já começo a me aproximar de Gabriela até que apenas alguns poucos centímetros nos separe – Eu entendi certo?

– Podemos falar disso mais tarde? – ela questiona mal conseguindo esconder a inquietação e o nervosismo – O motorista já deve estar nos xingando…

– Eu não vou arredar o pé daqui – comunico incisivo. 

– Ok – Gabriela puxa o ar com uma força absurda para dentro do peito e em seguida o deixa escapar sem pressa depois de um longo instante de silêncio – Você ia acabar desconfiando mesmo, Lucas, quando eu pedisse ao motorista do Uber para que não fosse para o Centro, na direção da Rainbow, e sim para o lado oposto, na Gávea, rumo à casa do Rômulo, mesmo com a desculpa esfarrapada de que estaríamos passando lá para buscá-lo.

– Você consegue ser mais direta do que isso – retruco sem titubear – Até onde eu sei, e até onde conheço o Rômulo, ele já deve estar lá na Rainbow azucrinando a vida de tudo e de todos, orquestrando para que nada esteja fora do lugar. Assim sendo, realmente eu não ia entender as razões desse seu pedido.

– Então… – Gabriela engole em seco antes de ir adiante, mas dessa vez assumindo sua habitual postura carregada de segurança – O Rômulo, apesar do martelo batido pela dona Elizabeth, continuou fazendo de um tudo para que a sua festa de despedida acontecesse na casa dele e por fim, ontem à noite, conseguiu.

Meneio a cabeça devagar, incrédulo com o que acabei de ouvir.

– Como assim? Por que ele não me disse? – eu consigo, enfim, me expressar enquanto deixo os ombros caírem e minhas mãos penderem ao lado do meu corpo – Conversamos sobre isso hoje mesmo, no final da tarde, e em nenhum momento ele sequer deu a entender que a festa seria em outro local senão…

– Acorda Lucas. Você consegue ser mais inteligente do que isso. Ele quis te fazer uma surpresa, aliás, o Rômulo é um grande amigo e está mais do que na hora de você considerá-lo da mesma forma que ele o considera.

Esforço-me para ser racional e até mesmo comedido ao passo que fecho os olhos na tentativa de acalmar meus pensamentos. De pronto sou invadido pelas palavras ríspidas e ingratas que eu disse a Rômulo, e que agora, diante da confissão de Gabriela, pesam ainda mais sobre os meus ombros. Sinto uma raiva absurda subir do fundo do meu estômago e então abro os olhos e encaro o chão, depois ergo a cabeça para o alto, para a lua, não demorando a retornar para o meu entorno, buscando fitar qualquer outro lugar que não seja o rosto da minha amiga.

– Eu acho que não fui muito legal… – balbucio. Parece que vou engasgar – Talvez seja melhor ligar pra ele… 

-Não mesmo – Gabriela responde sem pestanejar num tom de voz selvagem, indomado, me forçando, por fim, a confrontá-la – O senhor não vai jogar por terra todo o sacrifico que o Rômulo fez. Vai assumir a Fernanda Montenegro que existe dentro de cada um de nós e colocar nessa sua carinha linda um ar sobressaltado ao se deparar com toda a parafernália montada a toque de caixa para o seu bel prazer – ela estreita os olhos e mede cada centímetro do meu rosto como se estivesse me desafiando.

– Eu não sei se irei conseguir…

– Mas é claro que vai. Se até a Emma Stone conseguiu abocanhar um Oscar com aquela atuação sofrível em La La Land

Mais um instante de silêncio e então começamos a gargalhar.

– Desde quando você está sabendo? – questiono à medida que endireito os ombros.

– Ontem a noite mesmo – Gabriela gira o pescoço sobre a cabeça como se estivesse praticando algum exercício de relaxamento até que, enfim, volta a me encarar – O Rômulo precisou de ajuda para supervisionar a transferência dos preparativos da Rainbow para a casa dele e não quis pedir para mais ninguém com medo que vazasse a informação antes do tempo. Tanto que o restante da nossa turma só ficou sabendo da mudança, hoje, no finalzinho da tarde, depois que tudo estava no seu devido lugar, e a dona Elizabeth não podia mais voltar atrás.

Ela se vira e reinicia o trajeto em direção ao Uber.

– Irônico, não? O Rômulo vai querer me matar por eu ter te contado, mas sei que vai entender quando eu lhe explicar que não tive escolha diante do ataque divônico que você deu, não é mesmo? – Gabriela termina sua frase não sem antes se voltar na minha direção, me dispensando uma piscadela – No frigir dos ovos iremos nos divertir, Lucas, imaginando a situação constrangedora do prego do David te esperando igual a um dois de paus na frente da Rainbow até perceber que nem você e nem ninguém vai estar por lá, isso se ele realmente se prestar a esse papel,

– Não sei não…

– Sinto lhe dizer, mas agora é tarde, meu amigo… E se isso vai servir de consolo, tecnicamente você não mentiu para a dona Lúcia, afinal, a sua festa agora vai acontecer aonde você disse que ia acontecer…

Gabriela volta a percorrer o trajeto que resta até o carro em total silêncio e eu a sigo enquanto fico matutando sobre a postura do Rômulo, na sua determinação em enfrentar os pais… A bem da verdade, em enfrentar a dona Elizabeth, insistindo para que ela voltasse atrás na decisão que já havia tomado… Como será que ele a convenceu e ainda mais agora, nos 45 minutos do segundo tempo?

Já próxima do Uber, Gabriela confere a placa do carro e em seguida caminha como se estivesse pisando em ovos até estacar ao lado de uma das portas traseiras, passando a me encarar, sorridente, fazendo um biquinho ridículo com os lábios. Deixo claro que não estou entendo nada (e realmente não estou).

– Como você é lento, Lucas – ela comunica refreando a sua impaciência – O senhor poderia abrir a porta para mim? Acabei de ser acometida pela síndrome da donzela da idade média – completa com um sorriso cínico enfeitando o rosto.

Deixo os ombros caírem, junto os lábios e jogo um beijo silencioso e carregado de deboche em sua direção ao passo em que abro a porta do carro. Ela sorri, balançando a cabeça para depois apertar minhas bochechas como se fossem as de um bebê recém-nascido.

– Uma pena você ser gay, Lucas – Gabriela lamenta em tom de galhofa -Acredito que daríamos um ótimo casal, sabia?

– Deixa pra próxima encarnação, senhora – respondo endireitando os ombros e simulando um arrepio para logo em seguida curvar um pouco do corpo para frente e esticar o braço direito na mesma direção, fazendo uma mesura, como um cavalheiro medieval oferecendo passagem a uma dama da corte – Por favor, senhorita – eu remato a reverência com uma inclinação sutil de cabeça e um semblante representando com esmerada perfeição o modo blasé de um aristocrata completamente entediado – Nossa carruagem nos espera.

Gabriela agradece de maneira sarcástica e se joga sobre o estofado de couro do Uber enquanto fecho a porta e sorrio despretensiosamente, já me preparando para ficar de pé e dar a volta no carro e assumir meu lugar ao seu lado. Porém, contudo e entretanto, ouço a canção Take on Me, do meu querido A-HA, começando a tocar no rádio, que por sinal não demora a ser desligado pelo motorista.

A-HA. Anos 80. Uma das minhas canções preferidas. Pelo Criador!

É inevitável que a lembrança de “Thiago” chegue à minha mente (HELP!) e com ela uma intuição, uma certeza, uma admiração que não faço a mínima ideia de onde venha, e junto uma sensação de urgência, uma ira sem sentido, um ciúme sem qualquer precedente agravado por uma sensação de vazio assinalando de que algo especial deveria ter acontecido lá na praia, antes de ele sumir do mapa para sempre…

MERDA!

Fico de pé, respiro fundo e balanço a cabeça, tendo plena consciência do quão tolo estou sendo, mas não posso deixar de me perguntar se também consegui deixar em “Thiago” essa mesma impressão, por mais efêmera que ela possa vir a ser e que certamente vai ser!

Eu sei que irei pastar, e muito, mas também sei que no final de alguns dias, de uma semana, tudo isso será abrandado até se tornar poeira e o Sr. Thiago com aspas desaparecerá como os outros. Não passará de um mero fantasma a vagar, sem nome, sem registros, dentro do oceano raso da minha miséria sentimental…

– Lucas, você pretende chegar hoje na sua festa, não é?

A voz de Gabriela me traz de volta à realidade e então dou a volta para alcançar o outro lado do automóvel e, antes que eu assuma meu lugar, não consigo deixar de presumir o quão cretino o destino está sendo comigo, pois se minha alma gêmea for algum daqueles matutos que moram lá no Sítio do Pica-pau Amarelo, eu juro que viro padre.

 

a-ha – Take On Me

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*  *  *  fotos: Banco de dados PIXABAY (imagens livres de direitos autorais)

*  *  * gif “sobre seu pulso” extraídos de https://aminoapps.com/c/okegom-brasil/amp/blog/participacao-1-evento-de-halloween/GGBp_qJUnuJ2o0XGm3ZBkRgRgVBL4z6RMN

*  *  * gif  “na banheira” extraído de https://www.wattpad.com/501180164-pantera-%E2%96%AB-pjm%2Bmyg-24-d%C3%AA-o-poder-a-quem-pode-cuidar

*  *  * gifs dos anos 80 extraídos de https://www.buzzfeed.com/br/justinabarca/41-gifs-que-mostram-perfeitamente-porque-os-anos-8

*  *  * gif “YES” extraído de https://gfycat.com/massivewelldocumentedkingsnake

*  *  *  vídeo “Take on me”,A-ha: FONTE YOTUBE.com.br

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