Capítulo Quatro – O louco sempre enxerga aquilo que ele diz ver

Floresta na região de Alcatraz

A noite fria de outono traz consigo um vento gelado de cortar até a alma. O seu uivo mistura-se ao som de pássaros e animais silvestres e a escuridão toma conta do lugar. João Acácio perambula entre aquelas grandes árvores, sem muita noção de onde está e nem do que está acontecendo. Ele tropeça, cai, levanta-se, se agarra aos grossos troncos das árvores e chora. Chora porque não consegue comandar os seus sentidos. Chora por não saber diferenciar o que é real daquilo que não é.

João Acácio
– Rebeca! Volta aqui! Rebeca…

João se escora no tronco de uma árvore e chora copiosamente. Ele se agarra ao medalhão pendurado no pescoço e suas lágrimas caem sobre o retrato de uma menina, de + ou – dois anos de idade, naquele medalhão.

João Acácio
– Rebeca…não se esconde…não faz assim com o papai!

Penitenciária Araújo Sardinha

Uma plaquinha de metal no alto da grade de ferro indica que ali é a cela 23. Os seis detentos presos ali estão deitados distribuídos em três beliches. Na cama debaixo da beliche do lado direito está Frajola, de olhos arregalados olhando para cima e mãos cruzadas sobre o peito sem camisa. Ele encontra-se um pouco agitado, não consegue achar uma posição para dormir. Se vira para um lado. Se vira para o outro lado.

Detento da cama de cima
– Aí Frajola, a gente tá querendo dormir!

Frajola não responde, apenas se vira de lado na cama com o rosto pro lado da parede.

Há alguns metros dali, na…

Sala da Guarda

O agente penitenciário Perez, responsável pelo turno da noite, está sentado assistindo um filme na tv de tubo de 14 polegadas. O sinal fraco cai e a tela fica toda chuviscada.

Perez
– Droga!

Ele mexe na antena. Bate uma, duas, três vezes, na lateral da tv, mas nada da imagem voltar. Ele desiste e desliga-a. Levanta-se, dá uma olhada pela janela de vidro para o pavilhão de celas à sua frente. Tudo parece sereno. “Uma noite atípica pra uma prisão”, pensou ele, uma vez que sempre tem alguma emergência, alguma briga ou algum desentendimento. Mas já passava da meia noite e estava tudo calmo. Perez volta para sua cadeira e senta-se. Dá uma olhada para o relógio grande na parede já marcando 00:45 horas. Perez se debruça na mesa e adormece. Os ponteiros do relógio giram rapidamente e param às 02:00 quando Perez desperta assustado. Imagina ter ouvido algo no pavilhão de celas. Levanta e verifica pela janela, checa as câmeras. Está tudo normal. Apenas aquele silêncio assustador dá ares dramáticos ao ambiente.

O dia amanhece…

…e um sol tímido típico da estação dá o ar de sua graça lançando seus raios através das grades das janelas das celas. Na cela 23 os detentos já se levantam se preparando para o café da manhã. Frajola permanece deitado de lado para a parede. Um agente penitenciário bate com o cacetete na grade.

Agente Penitenciário
– Vamo acordar que já tá na hora. Fila aqui!

Escuta-se o barulho da chave abrindo a grade da cela. Frajola, com cara de sono, desperta, se vira e dá de frente com o agente penitenciário parado na porta.

Agente Penitenciário
– Bora lá detento. Levanta que tá na hora do café. Boneco tá preso, mas não pensa que pode ficar na cama até a hora que quer.

Os outros cinco já estão enfileirados para sair.

Agente Penitenciário
– Vamo, vamo! Teus “parceiro” já levantaram e tu vai atrasar o café deles porque quer ficar dormindo?

O som de um rap vindo de alguma cela é ouvido enquanto Frajola se levanta e se junta na fila com os companheiros de cela.

Quando começam à se retirar da cela, Frajola se pára perto do agente penitenciário.

Frajola
– Posso pedir um favor?

O agente penitenciário olha de cima à baixo para Frajola.

Agente Penitenciário
– Hummmmm…diga bandido!

Frajola olha para os lados. Averigua se não há ninguém por perto e aproxima-se um pouco mais.

Frajola
– Eu preciso falar com a detetive Carmen Sanchez…pode avisar o diretor pra mim?

O agente penitenciário também dá uma olhada ao redor.

Agente Penitenciário
– Vou quebrar esse teu galho. Vou dar o papo pro diretor. Mas tu me deve uma. Sabe que o pessoal não vai muito com tua cara aqui, principalmente porque sabem que tu abandona os “parceiro”.

O agente penitenciário faz sinal para Frajola se juntar aos companheiros de cela e seguir para o refeitório.

Mais tarde…

Na sala de interrogatório Frajola está sentado com as mãos algemadas sobre a mesa e olhar compenetrado no nada. Parece estar em transe. Olhos arregalados e o suor escorrendo pela sua testa.

Ouve-se o estrondo de uma porta sendo aberta que parece livrar Frajola daquele estado de transe. Ele gira a cabeça olhando para trás, na direção de onde pode já se ouvir passos firmes se aproximando. É a detetive Carmen Sanchez, que atendeu o chamado do detento e veio visitá-lo assim que pôde. Ela se pára na frente de Frajola, do outro lado da mesa. Olha firme nos olhos do detento e tira seus óculos largando-os na mesa, sob olhar atento do mesmo.

Frajola
– Bonito os óculos “dotora”.

Carmen sorri, puxa a cadeira e senta.

Carmen
– Sem mais dos teus joguinhos Frajola. Estou sem muito tempo e também sem muita paciência. Então, vamos ao que interessa.

Ela encara Frajola.

Carmen
– Porque você me chamou aqui? Alguma coisa que esqueceu de me falar?

Frajola
– Acho que a “dotora” já sabe dos últimos fatos…

Carmen
– Se está falando da carta que recebeste, sim, estou por dentro…tem ideia de quem mandou Frajola?

Frajola
– Você ainda tem dúvidas “dotora”?

Carmen se recosta na cadeira. Entende onde o detento está querendo chegar.

Carmen
– Você acha que foi ele?

Frajola
– Não tenho dúvidas quanto à isso…”dotora”…e o pior, é que tô preocupado…e tu sabe meus objetivos, sabe porque não fugi.

Carmen
– Eu sei. Eu sei Frajola. Mas te garanto que aqui dentro você está seguro.

Frajola fica em silêncio. Parece denovo entrar em transe.

Carmen
– Frajola?

Carmen se inclina sobre a mesa, abana com a mão na frente dos olhos arregalados do detento.

Carmen
– Frajola? Frajola?

Carmen levanta-se, vai até o telefone na parede do lado da porta.

Carmen
– Agente, por favor. Venha até aqui.

Carmen encara o detento. Nota o suor que volta escorrer pela sua testa. Se aproxima da mesa devagar. Abana com a mão novamente, sem sucesso. Assusta-se com o barulho da porta sendo aberta. Se vira.

O agente penitenciário entra já indo na direção de Frajola.

Carmen
– Leva ele pra cela, mas deixa alguém pra lhe observar.

O agente penitenciário levanta o detento com cuidado e o dirige para a porta. Ao passar pela detetive, Frajola parece estar voltando ao seu estado normal e fica lhe encarando e sorrindo.

Frajola
– Espero ter te ajudado em algum momento “dotora”. Mas não se preocupe, tudo vai acabar. Cedo ou tarde tudo chega ao fim.

Floresta na região de Alcatraz

Jairo, Tino, Renê e Jucá estão sentados em frente à duas barracas ao redor de uma fogueira e rodeados de garrafas de bebidas.

Tino agarrado em seu violão ensaia começar tocar e cantar alguma coisa.

Renê, muito concentrado, sentado mais à frente dos amigos segurando uma garrafa de whisky, observa os três cantarem e beberem se divertindo.

Renê
– Viemos aqui buscar inspiração e acabo de encontrar a minha.

Jucá toma um grande gole de uma garrafa de cerveja.

Jucá
– Vai nos pintar aqui é?

Jucá olha para Tino e Jairo sorrindo.

Jucá
– Com estes três modelos o quadro vai ser um sucesso…

Jairo
– Boa Renê! Um sucesso e muito caro! Vai ter que dividir a grana com nós!

Os quatro dão gargalhadas enquanto continuam à beber e cantar. Tino arrisca a introdução de “Sweet child on Mine” e recebe aplausos dos amigos.

No céu escuro de outono um trovão estoura indicando que não tarda para chover. Os amigos se encaram sobre efeitos das bebidas e riem alto da situação.

Tino
– Vem chuva. Já tô até imaginando as pinturas abstratas que sairão das nossas mentes…

Renê
– Não começa com tuas teorias e filosofias Tino.

Jucá se levanta e faz sinal com as mãos como se emoldurasse um quadro.

Jucá
– Uma floresta densa e assustadora. A chuva começando à cair. Nota-se os pingos d’água sobre as folhas verdes pálidas das árvores. Quatro amigos todos molhados sem se importarem com aquela chuva gelada cantam e riem felizes, como se àquele fosse o último momento de suas vidas…

Jucá pára imóvel com as mãos formando a figura de um quadro emoldurado observando o céu escuro entre o topo das grandes árvores.

Jairo, um pouco tonto de tanto beber, levanta.

Jairo
– Bom, parece que todos já estão com suas ideias bem encaminhadas…

Tino levanta a mão.

Tino
– A minha ainda não veio. Mas vou beber mais uma garrafa, tocar mais umas músicas e logo ela vem.

Jairo sorri para o amigo. Pega a garrafa de whisky das mãos de Renê.

Jairo
– Eu vou dar uma volta…ver se encontro minha inspiração.

Jairo sai cambaleando com a garrafa de whisky em mãos, entre as árvores floresta adentro.

Renê
– Se cuida amigo!

Jucá
– Qualquer coisa dá um grito!

Tino ajeita o violão e inicia mais uma canção.

No meio da floresta…

…Jairo anda cambaleando, se escorando pelos troncos das árvores enquanto de vez em quando pára e toma grandes goles no bico da garrafa de whisky.

Através da sua visão vemos tudo girar ao mesmo tempo em que novos trovões cortam o céu fazendo Jairo arregalar os olhos.

Um vento gelado faz o topo das árvores balançarem sob seu uivo agonizante. Jairo olha em volta, parece estar perdido no meio da floresta. Olhar assustado, se escora em uma árvore e fecha os olhos.

Jairo
– Pensa Jairo, pensa. Você não deve ter andado tanto assim.

Ele abre os olhos e parece ficar mais tonto. A garrafa de whisky cai da sua mão espatifando-se sobre uma pedra.

O barulho da garrafa quebrando desperta alguns pássaros que alçam vôo assustando-se.

O que você faria caso se visse perdido em uma floresta fechada, com um vento de uivo agonizante berrando em seus ouvidos e trovões cortando no céu indicando que a chuva não tarda à chegar?

Jairo sente-se perdido. Todos os lados que ele olha parecem serem iguais. Voltar para trás? Seguir em frente? Ele já não sabe pra onde ir.

Jairo
– Renê? Jucá? Tino?

Ele espera por alguns instantes na esperança de obter resposta de um de seus amigos, mas sua espera é em vão. Jairo sente-se tonto, tudo gira ao seu redor e ele cai em meio às folhas das árvores no chão. Mais um trovão emite seu estrondo pelo céu e, em seguida, a chuva começa à cair calmamente.

Penitenciária Araújo Sardinha – Pátio

As nuvens no céu estão carregadas. A chuva ainda não chegou por ali, mas não vai demorar. Os detentos estão todos no pátio. Alguns se exercitam na parte destinada à academia improvisada, outros apenas fumam seus cigarros em pequenos grupos batendo papo e um outro grupo joga futebol em um campinho de terra.

Frajola está sentado em um banco de madeira sozinho. Ele protege-se do vento com as mãos e acende mais um cigarro. No lixeiro do lado já estão uma dezena de tocos de cigarro que ele fumou neste momento no pátio. Um agente penitenciário atrás da grade observa todos os presos, especialmente Frajola. Por trás deste agente surgem o delegado Gaitán acompanhado do diretor Miranda, o diretor Susin e a detetive Carmen Sanchez.

Diretor Susin
– Como está nosso detento, agente?

Todos observam Frajola em um típico estado de estresse com seu cigarro.

Agente Penitenciário
– Desde que viemos pro pátio já deve ter fumado uns dez cigarros.

Carmen Sanchez
– É visível a preocupação dele com a carta anônima que recebeu.

Diretor Miranda
– Eu temo pelo pior.

Gaitán
– Ele sempre foi um cara bastante sensato, mas…

Carmen vira o rosto para Gaitán.

Carmen
– Tudo o que ele não é, é sensato. Eu o interroguei. Se ele fosse realmente sensato, ele não iria fazer os joguinhos que ele fez comigo.

Diretor Susin
– Eu acho que estamos nos preocupando à toa. Dê tempo ao tempo. Um dia, dois dias…e ele vai nos contar tudo que sabe.

Carmen
– Precisamos mantê-lo em segurança.

O sinal sonoro ecoa nas caixas de som. É hora de voltar às celas.

Agente Penitenciário
– Bom, se me dão licença, vou ajudar a encaminhar os detentos para as celas.

O agente abre o trinco da grade de ferro.

Agente Penitenciário
– Delegado, diretores…detetive…

Diretor Susin
– Fique de olho neste Frajola.

O agente penitenciário faz sinal de positivo com a cabeça enquanto dirige-se ao pátio, onde outros agentes já se fazem presente e os detentos já se ajeitam para voltar às suas celas.

Mais tarde…

…na cela 23, os seus ocupantes jogam carta enquanto Frajola está de pé com os olhos na janelinha da porta de ferro observando o vazio à sua frente.

Surgem batidas seguidas de passos e uma voz firme de um agente que se aproxima.

Agente
– Todo mundo em silêncio. Hora das crianças “contar” carneirinhos!

Ele vai passando e batendo com o cacetete nas portas das celas.

Agente
– Já vai ficar “escurinho” para as donzelas dormirem!

Um detento da cela 23 joga suas cartas na mesa.

Detento
– Se eu tivesse a chance de pegar este filho da puta eu iria torturar ele até matar!

Frajola se vira para dentro da cela, encara os companheiros e dirige-se até sua cama, se ajeitando de lado, de frente para a parede. Os demais detentos recolhem e guardam as cartas de cima da mesa caindo aos pedaços. A janelinha da porta da cela é aberta e os olhos verdes do agente observam o lado de dentro.

Agente
– Acabou a jogatina aí bandidagem!

Ele bate com força a janelinha fechando-a no mesmo momento em que as luzes começam à ser apagadas uma a uma.

Um pouco mais tarde…

…e o silêncio na penitenciária era de arrepiar. Nenhum movimento,nenhum ruído, nada fora do comum.

Na sala o agente penitenciário responsável pelo turno da noite, Alcides, um negro careca, alto e forte e com cara fechada, observa atento aos monitores à sua frente.

Na cela 23…

… está tudo escuro. Os detentos dormem em meio aos seus roncos. Frajola é o único acordado. Se vira lentamente para não acordar os demais e fica de barriga para cima pensativo. Levanta devagar, mas mesmo assim o colchão velho solta um rangido alto e ele fica imóvel, torcendo para que nenhum companheiro tenha acordado.

Ao perceber que todos permanecem em sono profundo, Frajola se levanta e caminha devagar até a pia atrás de um cortina de plástico. Ele passa a mão no espelho pequeno e quebrado pendurado na parede. Sente que o vidro está um pouco solto. Mira seu reflexo naquele espelho e ali fica por longos segundos.

Muitas vezes nossa mente nos prega peças que nos deixam sem reação. O medo, a revolta, a insegurança, são capazes de nos levar à atitudes extremas.

Frajola
– É Frajola…talvez este seja seu fim! Desculpa mãe… desculpa pai… desculpa amor… desculpa filha…

Pelo reflexo do espelho se vê as lágrimas escorrerem pelo rosto cansado e assustado de Frajola.

Frajola
– Filha…papai tentou ser forte, tentou aguentar a pressão…mas é demais pra mim…

Frajola arranca com cuidado o pedaço de vidro solto do espelho. Ele segura aquele pedaço de vidro com uma mão, estende o braço sobre a pia enferrujada, onde cai uma lágrima do seu olho. Ele começa à passar aquele vidro sujo sobre seu pulso lentamente e o sangue começa à sair. Frajola pressiona um pouco mais o vidro sobre o pulso e, pelo reflexo do espelho, sua expressão é de dor extrema. O sangue começa jorrar e pintar de vermelho a pia enferrujada.

O que sente-se nesta hora? Quais as lembranças que passam pela cabeça? Será que bate algum arrependimento? Ou será que o alívio de estar dando fim à algo é maior do que qualquer outra sensação? A canção Paralyzed de NF começa sua introdução na medida em que nota-se que Frajola começa perder seus sentidos. Já perdera muito sangue e dificilmente vai se reverter sua situação. Antes de ir ao chão, ele deixa o vidro cair de sua mão, apoia-se na pia e se deita no chão da cela…o sangue escorrendo do seu pulso pinta de vermelho agora aquele chão imundo e o mesmo sangue se junta à tatuagem que deu origem ao seu apelido.

Residência de Carmen Sanchez – Quarto

O quarto iluminado à meia luz abriga a detetive Carmen Sanchez deitada e esparramada no meio da cama, usando uma camisola branca e curta. Ela se mexe de um lado para o outro sem acordar.

Sua amiga e confidente, Janete, uma mulher mais velha, alta, cabelos pretos e olhar atraente,está sentada em uma velha cadeira de balanço perto da janela. Ela dá uma tragada no cigarro e fica à olhar para a rua silenciosa lá fora. Carmen à convidou para passar a noite com ela, pois não estava se sentindo bem.

Carmen Sanchez continua inquieta. É quando pode se notar os detalhes do seu rosto, da sua boca, seu nariz, seus olhos, até que…

Em algum lugar escuro

…os pés de um homem estatelado no chão estão cobertos de sangue. Aos poucos o seu corpo vai sendo revelado, todo afundado em uma poça vermelha. Seu braço esquerdo está com um corte profundo de onde parece ter escorrido todo aquele sangue e os seus olhos arregalados revelam que já é tarde demais.

Residência de Carmen Sanchez – Quarto

Carmen Sanchez salta sentando na cama.

Carmen
– Frajolaaaaaaaaaa!

Janete se assusta e deixa cair o cigarro de sua mão virando-se rapidamente. Ela levanta e se aproxima da cama onde a amiga encontra-se em estado de choque.

Janete
– O que houve?

Carmen não responde, está paralisada. Janete segura em seus ombros e lhe olha dentro dos olhos sacudindo-a com cuidado.

Janete
– Carmen! Carmen! Olha pra mim, amiga!

Aos poucos a detetive vai voltando à si.

Janete
– Que houve? Um pesadelo?

Carmen encolhe-se arrepiada.

Carmen
– Mais do que isso!

Ela tenta se levantar, mas é contida pela amiga, que a segura e a abraça.

Janete
– Calma. Não pode levantar. Vai aonde?

Carmen
– Eu preciso ir até à penitenciária.

Janete
– À esta hora? Ficou doida? Foi só um pesadelo.

Carmen encara a amiga, que sente que aquele olhar está assustado demais e quer dizer muito.

Carmen
– Ele corre grande perigo. Alguma coisa de muito grave vai acontecer ou já aconteceu.

Carmen cai em desespero. Puxa a amiga e a abraça forte.

Carmen
– Ele estava numa poça de sangue, Janete.

Janete
– Ele é só mais um criminoso, amiga.

Carmen
– Mas ele tem informações importantes.

Janete afasta o abraço. Olha nos olhos da amiga e tira os cabelos suados da testa dela.

Janete
– Você se deixou levar. Ele entrou demais na sua mente. E depois, será que ele carrega consigo estas informações mesmo?

Carmen enxuga as lágrimas.

Janete
– Toma um banho quente. Deixa a água escorrer pelo seu corpo. Vai se sentir melhor.

Carmen ainda suspira, engole o choro. Levanta e vai para o banheiro. Janete fica sentada na cama a observando. No criado-mudo ela avista um pedaço de papel que lhe chama a atenção. Inclina-se e pega-o ao mesmo tempo em que se ouve o chuveiro ser ligado. No pedaço de papel está escrito: “Dr. Renan – consulta às 10:00 horas”.

Floresta na região de Alcatraz

Uma chuva fina, contínua e gelada cai molhando os galhos das árvores. Jairo surge do nada se arrastando em meio à galhos e folhas. Está todo sujo e molhado. Se escora sentado em um tronco de árvore, abraça as pernas e chora feito um bebê. Mas sua voz vai ficando rouca.

Jairo
– Jucá! Tino! Renê!

Passos são ouvidos vindo de trás da árvore onde Jairo está. Ele está tão mal que não tem forças para se virar e ver quem é. À muito custo, ele rasteja olhando para o outro lado, e sua visão muito embaçada, enxerga um homem com uma capa e um chapéu na cabeça em meio à floresta. Jairo desmaia e tudo ESCURECE por um longo período.

Ainda em meio à escuridão plena, ouve-se passos firmes e o som de um facão cortando galhos.

Voz rouca (em off)
– “Eu fui à Floresta porque queria viver livre… eu queria viver profundamente, e sugar a própria essência da vida… expurgar tudo o que não fosse vida; e não, ao morrer, descobrir que não havia vivido”.

Agora o silêncio toma conta de tudo por um longo período até que o canto de um pássaro encanta e surge voando no topo das árvores. A chuva deu lugar à um dia frio de inverno.

Dentro da floresta um homem de cabelos pretos e compridos e barba mal cuidada, usando uma capa e chapéu está sentado sobre o toco de um tronco caído. Com um facão ele corta um pedaço de carne crua, que parece ser de alguma caça. Ele segura aquele pedaço de carne vermelha nas mãos e o encara e depois leva-o até a boca tirando um pedaço grande com seus dentes amarelados.

Há alguns metros à sua frente, caído em meio aos galhos e folhas, está Jairo, desmaiado e todo molhado com a cara no chão. Aquele homem de capa e chapéu levanta segurando seu facão e se aproxima de onde está Jairo.

Alcatraz – ano de 2007 – Rua das Alcachofras – Casa número 4

Uma rua de pedra com várias casinhas iguais uma do lado da outra separadas por uma cerca baixa e branca. São casas doadas pela prefeitura para àqueles com menos condições financeiras. Sua numeração vai do um ao trinta em duas ruas: rua das Alcachofras e rua das Samambaias.

Na casa número 4 escuta-se louças sendo quebradas e gritos do que parece ser um casal brigando.

A porta da frente se abre e João Acácio, cabelos curtos, barba rala, de calça social brega, camisa amarelada e terno brega, sai sendo empurrado por uma mulher de cabelos loiros e cacheados, de calça jeans e usando um avental sujo de comida. Ela é Jerusa, mulher de João na época.

Jerusa
– Seu desgraçado! E não volte nunca mais aqui. E nunca mais vai ver tua filha também!

João vai até o portão, dá uma última olhada para a casa, bate o portão e sai chorando.

Jerusa
– Filho da puta! Acha que eu ia deixar por isso mesmo?

Jerusa põe a mão no bolso do avental e retira um cordão com um medalhão. Ela joga para a calçada, na direção de João.

Jerusa
– Esta foto é a única lembrança que tu vai ter da Rebeca.

João Acácio se agacha e junta o cordão. Abre o medalhão e olha com ternura a foto da filha de dois anos de idade, toda sorridente em frente o chafariz da cidade.

Dia seguinte

Dentro da casa número 4, Jerusa está em frente ao fogão, com a pia ao lado cheia de louças sujas e a mesa também cheia. Ao fundo o choro inquietante de Rebeca.

Jerusa pára de mexer na panela, passa o pano de prato enxugando o rosto.

Jerusa
– Chega guria! Eu não aguento mais esse teu choro!

Ela joga o pano de prato no chão. Rebeca toda descabelada, aparece na porta da cozinha.

Rebeca
– Papaii!

Jerusa
– Teu pai foi embora. Não tem mais papai aqui!

Jerusa passa pela criança que cai em desespero chorando.

No quarto

Jerusa está sentada no chão com as costas escorada na cama. Ela bate com dois dedos da mão direita sobre seu braço esquerdo. Com a ajuda dos dentes, ela amarra forte um torniquete no braço, onde se vê suas veias saltarem. Com a mão direita ela pega uma seringa e crava na veia mais saltada. Sua expressão de alívio é clara em seus olhos revirados. Ela relaxa o corpo e fecha os olhos com a cabeça na cama.

No corredor

Rebeca pára na frente da porta do quarto que está encostada.

Rebeca
– Mamãe?

Sua pequena mãozinha empurra a porta do quarto que range abrindo. Ela logo vê a mamãe caída ao lado da cama com o torniquete no braço e a seringa no chão.

Rebeca
– Mamãe, você dormiu? Mamá mamãe!

Rebeca entra no quarto e se senta ao lado do corpo da mãe. Fica brincando com o torniquete enquanto tenta acordar Jerusa.

Rebeca
– Acorda mamãe! Acorda! Mamá mamãe!

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