“Ponto final”

Na primeira noite que passaram na cabana do doutor Pardal, Jade e Licurgo acompanhados do guarda Sávio, não dormiram sossegados. A noite veio mansa e o tempo estava parado, sem vento, aguardando por algo.

Algumas corujas, gordas e sisudas piavam em meio à escuridão. E olhos vermelhos brilhando de ódio, caminhavam entre as árvores.

Após fechar a janela, o Dr. Pardal foi até o quarto e acordou Jade.

– O que vocês fizeram? – ele perguntou sussurrando.

– O quê? – Jade disse confusa.

– Vocês atraíram as bestas para cá! Vocês precisam ir embora!

A casa estava cercada pelos vultos, que circulavam como leões, aguardando para dar o bote na presa. Eles não escondiam a sua presença, que se fazia notar pelos rosnados raivosos.

Sávio acordou-se e foi logo preparando sua espingarda. Jade vestiu-se e pegou uma faca na gaveta do armário. E, o doutor acendeu as luzes internas e externas da cabana.

 

Os monstros faziam caretas mostrando seus caninos afiados. Jade sentiu um frio percorrer todo seu corpo. Suas mãos começaram a suar e a boca ficou seca. Fugir, esconder-se. Todos esses, e mais uma enxurrada de pensamentos neuróticos, se debatiam em sua cabeça.

Focados nos monstros lá fora, eles não perceberam quando Gomes entrou pela janela da cozinha. Ele andou sorrateiramente no escuro e ficou atrás de Sávio. De forma fria e silenciosa, enfiou uma faca nas costas do guarda e rasgou sua garganta com um estilete.

Alarmado, o doutor Pardal tentou fugir, mas Gomes lhe acertou na cabeça com um abajur que estava sobre um aparador. O médico caiu desacordado.

Jade apontava a faca para Gomes. Sua mão tremia muito e o ar no seu peito estava comprimido. O medo pressionava sua existência.

– Fica longe de mim! – disse Jade com a voz trêmula e frágil.

– Queremo você! – Gomes falou, encharcando um pano com clorofórmio.

Foi tudo muito rápido. Ela ainda tentou lutar, mas Gomes foi rápido ao segurá-la por detrás fazendo-a inalar o produto. Jade caiu inconsciente.

MEMÓRIAS DE JADE

Você realmente vai ter coragem de casar com o Lucas? Sério? Bom, matar o desgraçado do Roberval porque ele te estuprou e te transmitiu AIDS é uma coisa. Mas, casar deliberadamente com um homem que nunca deitou contigo, e passar essa maldição pra ele, é outra coisa. Outra coisa bem mais séria. Não, isso não estava acontecendo! Como seria daqui pra frente? Quem iria querer ficar comigo, se nem eu aceito essa minha condição? E os filhos? Mais um sonho frustrado. Eu não quero que meu filho nasça com HIV”, pensava Jade, enquanto caminhava pelo hangar do seu tio Marmoud, no dia do seu casamento.

Jade entregou para Marieta, o vídeo em que Lucas matava o investigador Jonas. Ela contou para Marieta o motivo de ter matado Roberval. Só não contou que tinha adquirido o vírus.

Marieta parecia convencida de que Jade poderia ser verdadeiramente uma boa esposa para o seu filho Lucas. Então, resolveu dar uma chance para os dois. E, assim o drama entre Jade e sua sogra acabou. Só havia algo pra resolver. E, esse algo era: casar ou não casar com Lucas? Contar ou não contar sobre a doença? Assim com ela, Lucas sonhava em ser pai. E como jogar esse balde de água fria nele? Tudo era muito difícil na cabecinha de Jade. O que fazer?

Jade entrou no avião e ligou o motor. Ela notou seu tio lhe acenando. Uma tristeza invadiu seu peito. Ela precisava nascer de novo e pensar em como viver daqui pra frente. Ela decidiu não só deixar o Lucas, mas abandonar toda a sua vida.

E foi assim que ela decolou e voou sem rumo. Sua mente estava suspensa sem pensar em mais nada. Por alguns minutos Jade sentiu paz. Paz. Somente paz.

Até que o monomotor caiu.

Quando Licurgo acordou, uma dor lancinante parecia perfurar seu peito. Sua garganta ardia, e os lábios estavam ressecados. Ele olhou para seu braço direito e a mão havia sumido.

Cambaleante, ele saiu da cama e segurando nos móveis chegou à sala.

Um doutor Pardal com uma faixa enrolada na cabeça apareceu para apoiá-lo.

– Você deveria estar na cama! – disse o doutor carregando-o para o sofá.

Licurgo sentou-se e recebeu o calor dos primeiros raios de sol daquela manhã agradável.

– Onde está todo mundo? – perguntou Licurgo fazendo uma careta de dor.

Doutor Pardal continuava a juntar pedaços de vidro espalhados pelo chão.

– Sua amiga foi embora. E, o Sávio foi atrás de ajuda – ele mentiu na intenção de tranquilizar Licurgo.

Licurgo percebeu uma mancha de sangue no carpete da sala.

– O que aconteceu aqui? – ele perguntou desconfiado.

– Tivemos que mexer com sangue para te ajudar.

– Tudo isso que você fala, é pura mentira. Me diga logo o que aconteceu aqui – inquiriu Licurgo.

– O que você acha que sabe rapaz? Nada aconteceu nesse lugar!

– A Jade não iria sair e me deixar sozinho!

Dr. Pardal encostou-se à bancada da cozinha, e com o olhar fixo no horizonte, parecia meditar em algo.

– O que aconteceu de verdade? – perguntou Licurgo.

– Eles mataram o Sávio e levaram a sua amiga.

– Eu vou atrás deles – disse levantando do sofá.

– Você precisa se recuperar. Não há mais nada a fazer. Ela já era! E você nem sabe onde pode encontra-los.

– Engano seu. Eu sei exatamente onde encontra-los!

– A sua amiga deve estar morta em uma hora dessas! – alertou Dr. Pardal.

– Eu saberei em pouco tempo.

Licurgo tentava andar normalmente, mas as dores pelo corpo lhe enfraqueciam por completo.

Após fazer a refeição ele levantou-se da mesa determinado a encontrar Jade.

– Eu só preciso que você me deixe no quilômetro 05 da estrada. Desse ponto eu sei para onde ir – disse Licurgo para o Dr. Pardal.

O médico aproximou-se dele, e lhe entregou uma pistola, que mais parecia um sinalizador de cor laranja.

– Isso é uma pequena arma que eu desenvolvi. Tem três disparos somente.

– Como isso vai me ajudar? – perguntou Licurgo analisando a arma.

– São três cartuchos de pó do diálobu. Quando disparados os cartuchos explodem o pó para todas as direções. Então seja certeiro! – instrui o doutor.

O Dr. Pardal dirigiu durante 40 minutos até chegar ao ponto da estrada que Licurgo queria ficar. Ele encostou o carro próximo a uns arbustos crescidos e encarou o jovem Licurgo.

– Você tem certeza que quer fazer isso? – perguntou o Pardal, ainda receoso.

– É isso que tem que ser feito! Eu vou dar um basta nessa história.

– Então, boa sorte meu filho! – disse o doutor apertando a mão de Licurgo.

– Obrigado!

Licurgo saiu do carro, e entrou na floresta sem olhar para trás. Ele estava determinado a encontrar e ajudar Jade.

Sua pele que antes estava pálida começava a ganhar mais coloração. Sua perna já não manquejava mais. Um milagre realmente parecia ter acontecido. Mas, como?

Licurgo aproximou-se de uma clareira aonde tinha um imóvel abandonado. De longe era possível ler na fachada o seguinte título: Associação de Agricultores. Era o salão aonde os agricultores se reunião para debater sobre o campo.

Ele aproximou-se sorrateiramente e por uma janela entre aberta, espiou o interior.

No centro do salão, Jade estava nua e amarrada em um tronco. Suas pernas estavam abertas e ela chorava muito.

As bestas cercavam-na prontas para estupra-la. Um homem estava caído ao lado e parecia ferido.

Licurgo destravou a arma com o pó do diálobu e planejou. Ele só teria uma chance. Ele arrombaria a porta central surpreendendo os monstros e atiraria o pó em direção a todos eles. Se algo desse errado as bestas cairiam em cima e lhe mataria instantaneamente.

E assim ele fez. Um chute certeiro na porta, e todos os monstros olharam para o pobre Licurgo. Ele mirou a espingarda sem antes ver dezenas de monstros correrem em sua direção. Ele apertou o gatilho uma vez e nada aconteceu. Se isso falhasse ele seria atropelado sem piedade e Jade morreria em seguida.

 Mais uma vez, apertou o gatilho, e uma explosão vermelha invadiu toda a Associação. Mais um disparo, e os monstros pareciam correr pelo salão em desespero. Um último disparo, e um silêncio tomou conta do ambiente.

 

Uma nuvem de pó vermelho ocupava todos os recantos daquele lugar. O diálobu preenchia todos e tudo. Era impossível fugir do diálobu. Um ajuste de contas deveria ser feito.

Quando a nuvem baixou, Jade ainda estava arramada ao tronco. E dezenas de corpos nus, estavam caídos pelo chão. Os monstros agora eram corpos humanos desmaiados pelo salão.

Licurgo correu até o tronco e desamarrou Jade. Ela tremia de frio e medo.

Ele a abraçou e pegou as roupas que estavam espalhadas pelo canto.

– Vamos sair daqui! – disse Licurgo.

– Não! Primeiro vamos conversar! – falou Gomes fechando a porta atrás de si.

Licurgo e Jade encaravam Gomes que apontava um arco para eles.

MEMÓRIAS DE LICURGO (Cenas fortes, mas dá pra ler)

Eu poderia crer que tudo não passou de um grande pesadelo, mas essa não era uma convicção que eu tinha. Por mais que eu quisesse esquecer, aquela tarde estava gravada em meu coração.

Mais uma vez eu estava com Gomes no carro do meu tio Marcos. Onze anos e um verdadeiro terremoto iria atingir a minha vida.

O tio do Gomes, o Ézio Moreira, também estava conosco. Seria mais uma tarde de pescaria comum caso fossemos para a beira do rio. Mas, o tio Marcos tomou um rumo diferente, entrando em uma estrada que eu nunca tinha visto.

Estacionamos a camionete próximo ao quilômetro 05, e andamos floresta adentro. Chegamos à Associação de Agricultores e paramos em frente ao imóvel.

Eu sentia, nos olhares do meu tio Marcos e do Ézio, que havia algo errado.

Algo muito macabro estava prestes a acontecer.

Meu tio Marcos puxou a mochila das costas e retirou dois pirulitos de lá. Ele se ajoelhou e nos encarou de forma sombria.

– Vocês sabem o que é isso? – perguntou Marcos segurando o doce próximo dos nossos olhos.

– Um pirulito! – respondeu Gomes também com seus onze anos.

O tio Marcos começou a retirar a embalagem do doce na nossa frente.

– Eu só posso usar esse doce quando eu retiro a roupinha dele! Vocês entenderam? – disse o tio Marcos arrancando a embalagem por completo.

Gomes balançou a cabeça de forma inocente. Eu tremia por dentro. Eu sentia a perversidade no ar.

– Abre a boquinha! – disse o tio Marcos pondo o pirulito na boca do Gomes. Ele retirou e pôs novamente o pirulito na boca do meu amigo. Ele repetiu isso mais algumas vezes até parar com o pirulito na mão.

 

– Vocês querem? – perguntou Ézio também se agachando e ficando no nosso nível.

Gomes balançou a cabeça concordando. Eu sentia medo.

– Nós vamos fazer algo muito importante ali dentro – apontando para o salão da Associação – Mas, se vocês realmente quiserem ser usados e fazer parte disso, vocês precisam fazer como esse pirulito. Vocês precisam tirar a roupinha! – disse Ézio, de forma maliciosa.

– E se vocês realmente querem ser homens e ser parte do que nós vamos fazer aqui. Vocês tem que guardar segredo. Vocês querem fazer parte do nosso grupo? – perguntou Marcos passando a língua pelos lábios.

Gomes concordou ainda inocente. Eu estava desconfiado. Eles nunca se comportaram assim.

– Vamos lá! Tirem a roupa! – ordenou o Ézio.

Eu ainda olhei para o meu tio, buscando por misericórdia. Mas, ele concordou com o Ézio e pediu que eu ficasse pelado.

Gomes abaixou o short e o Ézio lhe ajudou a tirar a camisa. Eu tremia ao retirar minha roupa. Uma vergonha e um medo sufocante perpassavam pelos meus ossos. Um medo profundo me arrebatou. Eu sentia vergonha. Mas tirei a roupa. Não sabíamos onde estávamos. Não havia por onde escapar.

Meu tio Marcos abriu a porta da associação e a minha surpresa foi ainda maior. Eu sinceramente não acreditava no que estava vendo.

Nas histórias mais macabras que me contaram nada se comparava ao que eu estava vendo. Meu mundo parecia cair por completo. Um balde de sangue gelado havia sido jogado sobre mim.

Era um pesadelo e eu precisava urgentemente acordar. Acorda! Acorda! A minha alma clamava sem querer acreditar.

A cena era bizarra.

Um lençol branco estava estendido no chão.

De um lado, estava o meu avô João, e do outro lado estava o pai do Gomes, o senhor Afonso. Os dois estavam nus.

O tio Marcos e o Ézio fecharam a porta e nos deixaram lá. Eles se afastaram para não ouvirem nada.

O resto eu prefiro não falar. Eu sempre vomito ao lembrar aquele dia.

Nojo e dor.

As pessoas que mais eu confiava me machucaram. E tudo isso em nome de uma tradição. Uma tradição maligna.

Gomes apontava o arco para Jade e Licurgo. As pessoas caídas no chão da Associação começavam a despertar.

O que estava acontecendo? Quem eram essas pessoas nuas? Onde estão os monstros que queriam me violentar? Pensava Jade.

Um homem corpulento levantou-se e ficou entre Gomes e Licurgo. Ele tentava se orientar firmando-se em pé.

Licurgo reconheceu aquele homem. Era o pai do Gomes.

O senhor Afonso nos encarou desconfiado e depois olhou para Gomes que agora apontava o arco para ele.

– Filho! – disse o Sr. Afonso com a língua embolada – O que aconteceu?

– Precisamos terminar com isso ainda hoje! – afirmou Gomes com ódio no olhar – Eu poderia muito bem meter uma flecha em cada um de vocês aqui. Mas, eu quero vê-los sofrer por toda a eternidade. Quero que vocês sejam pisados como vermes no pó.

– O que você está dizendo filho? – questionou Sr. Afonso sem entender.

Ézio e Marcos também despertaram e se aproximaram da discussão no meio do salão.

– Vocês esqueceram o que fizeram conosco? Vocês realmente esqueceram? Eu não esqueci e nunca vou esquecer! Enquanto houver vestígio da existência de todos vocês, eu nunca irei esquecer o que fizeram comigo e com o Licurgo – disse Gomes com lágrimas nos olhos.

O avô de Licurgo também levantou-se cambaleante. Na verdade, ali estava toda a família Moreira e toda a família Ferreira. Eles eram os verdadeiros monstros. Amaldiçoados por suas maldades.

Licurgo se aproximou do seu avô João e de toda sua família que se reunia envergonhada.

– Por que vocês fizeram aquilo? Por que nos abusaram daquela forma? – perguntou Licurgo com a voz embargada.

– Eu posso explicar. Mas, antes irei contar uma história para facilitar o entendimento. Tudo o que fizemos foi motivado pelo que CONHECÍAMOS ou como falava o meu pai, fazemos aquilo que é COGNOSCÍVEL. Aquilo que é claro e compreensível. Não fizemos nada de errado com vocês. O que você chama de machucar e abusar, a nossa família chama de batizar. Meu pai dizia que quando a serpente ofereceu o fruto proibido, no jardim do Éden, ela estava oferecendo a Eva o poder de decidir o que era certo e o que era errado. Eva não iria depender de nenhum Deus dizer o que ela tinha que fazer. Pelo contrário, o bem e o mal, o certo e o errado era uma questão de escolha. O que Eva decidisse como certo, seria certo. O que Eva decidisse como errado, seria errado. Tudo era RELATIVO. “E CONHECEREIS o bem e o mal, e sereis como Deus”, disse a serpente no jardim. E assim, nós aprendemos com o nosso pai que todo jovem e toda moça quando completasse onze anos de idade deve ser batizado. O primeiro homem da moça seria o seu próprio pai. E, o primeiro relacionamento do rapaz seria com o seu pai. Isso é o certo. Nós conhecemos isso como a coisa certa a se fazer. Por isso não machucamos vocês. Apenas fizemos o que a tradição das nossas famílias ensina – disse o Sr. Afonso buscando aprovação.

 

– Isso é um erro! É um engano! Como vocês podem acreditar nisso? – gritou Licurgo indignado.

– É verdade meu filho. Essa é a tradição – disse o Vô João.

– Como vocês não conseguem perceber que isso é um engano! – disse Licurgo.

– Nós nascemos assim e fomos criados dessa forma. Faz parte da nossa cultura. Não sabemos dizer se o que você diz é correto. Não iremos mudar a nossa tradição por sua causa – disse o Sr. Afonso.

Jade ainda apoiada em Licurgo pediu pra falar.

– Eu preciso dizer algo. Eu tive uma experiência parecida com a do Licurgo. Eu não queria que aquilo acontecesse comigo, mas infelizmente um homem me subjugou e contra a minha vontade me violentou. Eu não queria que isso acontecesse daquela forma. Meus planos eram de casar e ter filhos e me relacionar com o meu marido. Agora eu tenho uma doença que pode ser transmitida através do sexo e não tem cura. Vocês já pensaram que podem ter infectado as suas crianças? Vocês já pensaram que podem ter traumatizado os seus filhos com essa tradição? Talvez o Licurgo não queira nunca mais se relacionar ao lembrar que vocês tocaram nele antes! Isso não é certo! – clamou Jade.

O Vô João mantinha a cabeça baixa ao se aproximar de Licurgo.

– Me perdoe. Eu errei com você. E, com toda a minha família. A sua Vó Biza sempre disse que isso era um erro. Ela morreu ao saber que você tinha sido batizado. Ela era contra tudo isso – disse o Vô João com pesar.

– Não o perdoe Licurgo – disse Gomes com firmeza – Se você o perdoar, ele estará livre para morrer. Mas se retivermos o perdão, eles serão eternamente amaldiçoados como ratos nojentos.

– Eu preciso me libertar disso Gomes. Eu não quero que eles fiquem sofrendo – disse Licurgo – Vocês reconhecem que essa tradição é um erro?

Todos unanimemente afirmaram que era um erro.

– Eu tenho que perdoá-los – disse Licurgo.

Ézio Moreira desarmou o arco de Gomes e o levou para fora da Associação. Gomes se debatia tentando abrir a porta.

– Você não pode perdoá-los Licurgo. Foi você quem os amaldiçoou, agora não pode voltar atrás! – gritava Gomes revoltado.

– Tudo que precisávamos era de diálogo. Apesar de tudo o que vocês nos fizeram, eu quero dar um PONTO FINAL nessa história e recomeçar minha vida.

– Nós sentimos muito por tudo o que fizemos – disse o Vô João.

– Vocês eram verdadeiros ignorantes. Mas, agora já sabem. Existe um certo e um errado. Precisamos descobrir qual o verdadeiro caminho a seguir! – disse Licurgo convicto.

– Eu os perdoou – disse Licurgo.

Uma nuvem branca tomou conta de todo e espaço e de repente desapareceu. O sol voltava a brilhar no interior do salão. A vida tinha retornado. Toda a família Moreira e Ferreira havia sumido.

Gomes arrombou a porta e revoltado correu atrás do seu arco.

Licurgo segurou a arma dele antes, e quebrou o arco em sua perna.

– Seu desgraçado. Como você pode perdoá-los. Você não lembra o que ele fez comigo. Eu tenho nojo de mim até hoje. Sabe aquela história de pirulito. Eu tenho nojo de ter uma língua. Você não podia fazer isso – gritou Gomes.

Gomes partiu para cima de Licurgo tentando enforca-lo. Jade ainda quis defender o amigo, mas foi empurrada e bateu com a cabeça, ficando inconsciente.

Eles começaram a brigar e foram para o exterior da Associação. A clareira era testemunha da luta intensa que Gomes travava contra Licurgo.

Gomes tinha muito ódio no coração. Ele não conseguia perdoar a violência que sofreu na infância. Já Licurgo parecia viver com se aquilo não tivesse ocorrido. Era outra forma de lhe dar com o trauma. Ele se isolou de todos e queria apenas o silêncio. Jade também reagiu diferente ao ser abusada. Vingança tomou conta da sua alma, e ela só teve descanso quando supostamente matou seu estuprador.

Uma história de abusos, revestida de suspense e horror. Um retrato cruel do que a natureza humana é capaz de fazer.

Ainda revoltado Gomes gritou: – Você não podia ceder aos caprichos deles! Não depois do que eles fizeram com a gente!

– Eles precisavam disso! Nós também! Eu não aguentava mais viver com esse peso. Eu tava preso ô Gomes, e precisava de ser liberto. E, você?! Olhe pra você! Está se perdendo em amargura. Você precisa ‘perdoar eles’, e seguir teu caminho adiante. – diz Licurgo tentando convencê-lo.

– Você fingia que não sabia, mas no fundo nunca esqueceu. Quem poderia esquecer? Todos deveriam saber o que aconteceu nesse lugar!– disse Gomes revoltado.

Ainda cansado e destilando ódio, Gomes lançou seu olhar de fúria para Licurgo, e disse: – É tarde pra mim! Eu não posso retornar! O sopro do inferno me invadiu e eu fiquei em chamas. Tem salvação pra mim não. E, eu nem posso ser liberto. Só dá pra fazer uma coisa – disse Gomes sem esperança.

Ele segurou sua língua, e, esticando-a cortou com o canivete. Como um maestro do mal, ele movia sua mão de um lado para o outro, enquanto a lâmina passava pela carne como um violino afinado. Um chafariz de sangue jorrava da sua boca fazendo-o vomitar.

Ele segurou o pedaço de carne fresca que ainda tremia em sua mão e ofereceu para Licurgo.

– Que merda você fez?! – perguntou Licurgo indignado.

Licurgo tentou se aproximar, mas antes, Gomes retirou um dispositivo do bolso e o ergueu para cima.

– Você não pode fazer isso Gomes! Não! – gritou Licurgo.

Gomes apertou o dispositivo, e o seu corpo explodiu lançando carne e ossos pelos ares. Um pedaço de cérebro suculento caiu no rosto de Licurgo.

Jade e Licurgo andaram em silêncio pela estrada. Tudo era diferente. Um peso tinha saído das costas de Licurgo. Mas Jade ainda precisava resolver algumas coisas.

– Eu preciso te contar uma coisa – ela disse grave.

Ele parou recebendo os raios do sol do meio-dia. A estrada continuava deserta.

– Eu tive que fazer a transfusão de sangue. Se isso não fosse feito você iria morrer. Me perdoe! – ela disse com pesar.

– Tudo bem Jade. Você foi a minha salvação. Verdadeiramente se você não me ajudasse eu não sobreviveria.

– Mas, então como você disse que Ele iria te salvar? Eu transmiti HIV pra você! Como isso pode ser bom? Você tem uma doença incurável agora! – ela disse confusa.

– Como eu disse: existe mistérios que ao homem é impossível saber. São coisas INCOGNOSCÍVEIS.

Ao chegarem à vila, os dois se despediram com um abraço apertado.

– Eu ainda voltarei aqui pra rirmos de tudo o que passamos! – ela disse sorrindo.

– Sim! E quem sabe não escrevemos um livro? – ele propôs.

– É uma boa ideia. A história é bem surreal. Acho que as pessoas iriam gostar!

Licurgo voltou para sua fazenda e reconstruiu a casa e a plantação. Um novo começo brilhava como aquele sol do meio-dia.

Jade retornou para Recife e reencontrou com Lucas e sua família. Ela contou a história estranha que tinha vivido e dormiu dois dias seguidos.

Acordou determinada e seguiu para a delegacia mais próxima de sua casa. Confessou que havia matado Roberval e o motivo. Foi registrada, julgada e condenada.

No primeiro dia que entrou no presídio foi levada para uma sala para aguardar a médica local.

A médica era loira assim como Jade. Ela sentou-se em sua frente e começou a abrir o envelope com o resultado dos exames.

– Você já recebeu sua medicação? – perguntou a médica.

– Sim! – Jade respondeu.

– Há quanto tempo você descobriu que tinha HIV?

– Um ano e meio, mais ou menos.

A médica abriu o envelope e analisou o resultado dos exames. Ela tinha um olhar estranho de incredulidade. As suas sobrancelhas se juntaram em uma interrogação.

– Não entendo!

– O que foi? – perguntou Jade curiosa.

– Os exames apontam que não há nenhuma presença do vírus. E todas as células estão em perfeita saúde. Esse já é o segundo exame que eu peço e acontece a mesma coisa. Você tem certeza que tem AIDS? – questionou a médica confusa.

– Sim doutora! Eu tenho o vírus!

– Bem aparentemente não há nenhum indício do vírus em seu corpo. Creio que houve um equívoco!

– Não é possível! Eu fiz o exame e fui medicada durante esse período. Eu tenho certeza que tenho a doença!

– Os seus linfócitos dizem contrário! Nunca houve qualquer alteração que apontasse a existência do HIV em seu organismo. Se um dia você contraiu o vírus, hoje você está curada! – disse a médica sorrindo e saindo da sala.

Jade ficou perplexa ao saber a noticia. Como não havia doença? Cura? Como assim? Será que realmente ela tinha sido curada?

Jade lembrou-se do dia em que esteve na casa de Licurgo. Ela havia machucado o tornozelo e o pé estava muito inchado. Licurgo disse que ela seria curada, mas não especificou qual cura. Será que somente o pé era alvo da cura? Será que ela também havia sido curada do HIV? Um mistério que provavelmente ela não iria saber tão cedo. Mas, ela começava a acreditar que Licurgo não falava sozinho. Será que havia alguém do outro lado da linha, quando ele falava naquele telefone vermelho? Será que toda aquela conversa dele não fazia certo sentido, agora? Mistério!

Lucas entrou na sala em que ela estava algemada. Ele sentou-se de frente para ela, e com um brilho no olhar de quem está com saudade, a encarou.

– Você ta bem? – perguntou Lucas.

– Sim!

– Eu te amo muito Jade. E, estava com muita saudade. Esses quatro dias que você esteve sumida, foram terríveis para mim. Eu quase fico louco.

– Você precisa partir pra outra Lucas. Não há como ficarmos juntos!

– Eu vou ficar com você! E, vou assumir todos os riscos! – ele disse apaixonado.

– Você sabe que nunca poderemos ter um filho. E, que você vai viver com a ameaça de contrair o vírus.

– Não há vírus. A médica me disse tudo lá fora. Ela é minha amiga.

– Lucas, vai. Eu não tenho um futuro pra você. O meu futuro é na cadeia.

– Eu vou te esperar! Você é meu único e verdadeiro amor – ele disse apaixonado.

Assim, Jade descobriu que verdadeiramente não tinha mais o vírus da imunodeficiência adquirida. E, cumpriu sua pena durante 09 anos.

Ao fim dos 09 anos, ela voltou à fazenda de Licurgo e o que ela encontrou lhe surpreendeu.

A casa da fazenda estava maior e reformada. O lugar havia se tornado um refúgio para jovens e crianças que sofreram abusos na infância.

E, Licurgo era o fundador dessa Organização que contava com o apoio do município.

Havia um sorriso iluminado no rosto dele. Ele continuava acordando cedo e cuidado do campo. A diferença era que uma turma de jovens ia com ele para aprender a cuidar e arar a terra. Depois eles tiravam o leite das vacas, limpavam o curral e davam a comida dos cavalos. Uma rotina cansativa, porém gratificante.

Licurgo e Jade se abraçaram e tomaram um café olhando para o campo através da janela.

Lucas estava chegando com o recém-nascido filho dos dois. Um sonho tinha se realizado para Jade.

Enfim, depois de tanta provação, Jade e Licurgo tinham crescido e amadurecido.

É preciso uma dose de dor para nos ensinar a perdoar e assumir nossos erros. Assim fizeram os dois. Assim termina a nossa história.

FIM

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