Logo cedo, Triti já se encontrava no setor Vermelho, pronto para iniciar as várias tentativas de fusão molecular.
– Bom dia, senhor. – saudou o computador, após a verificação biométrica.
– Bom dia, computador. Iniciar o programa a partir da última tentativa.
– Senhor, antes de iniciarmos, permita-me proceder com algumas perguntas para teste de confidencialidade.
– Prossiga.
– Comentou sobre a sua atividade com alguém estranho ao setor Vermelho?
– Não.
– Conhece na íntegra a natureza da pesquisa?
– Não.
– Em algum momento desejou extrair informações confidenciais de nosso banco de dados?
– Não.
– Muito obrigado, senhor. Deve, então, prosseguir com a pesquisa.
– Que bom! Você é muito gentil. – retorquiu Triti.
– Noto que mente a respeito de sua apreciação por mim, senhor. Não obstante, sua ironia não compromete o projeto.
Triti conteve a risada de deboche e iniciou uma sequência de tentativas de fusão molecular. No entanto, notou que o ambiente de tela estava diferente.
– Computador, o que são estes pontos vermelhos que apareceram na tela. Ontem não estavam aí.
– Sem autorização para informar.
– Quem garante que a pesquisa não foi adulterada?
– Não houve adulteração dos dados.
– Computador, rearranje os dados a partir do momento em que estes pontos foram inseridos.
Os pontos vermelhos foram alinhados até formarem um eixo.
– Agora sobreponha.
Para o assombro do rapaz, a linha cruzava exatamente o centro da molécula. Porém, existiam aberturas, espaços que necessitavam ser preenchidos para se atingir a estabilidade tão esperada. Após várias e extenuantes horas de tentativas frustradas, Triti sentia-se esgotado.
– Senhor, é hora de descansar. Tempo previsto: cento e vinte minutos para a sua recuperação.
Triti deixou rapidamente o setor Vermelho para se encontrar com Rita. Ela já o aguardava no saguão do setor Beta. Ao vê-lo, precipitou-se e puxou-o pelo braço:
– Verifiquei as amostras.
– E então?
– Não temos certeza ainda, mas existe algo de estranho. Alguém do seu setor restringiu o acesso total aos laudos.
– Por quê?
– Não sei, mas talvez exista uma forma de acessar parte dos laudos esta tarde, antes de seguirem para o setor Vermelho.
– Por favor, me avise sobre qualquer coisa, está bem?
– Deixa comigo. Acho melhor que não nos vejam juntos. Teremos que conversar em outro lugar.
– Combinaremos um local mais apropriado, então. Retornarei ao setor Vermelho para adiantar a pesquisa. Falo com você à noite.
Triti retomou as tentativas e, desta vez, encarando-as como um grande desafio. Dezenas de inserções foram feitas e todas infrutíferas até que o rapaz teve uma ideia: colocar dois elétrons em paralelo e adicioná-los a um campo diamagnético, uma simulação do que já existe no corpo humano.
– Talvez consiga o equilíbrio necessário ao simular o ambiente orgânico.
Para seu espanto, a molécula se manteve íntegra, plenamente estável. O computador emitiu um aviso:
– Projeto completado.
– O quê? Só isso que você tem a dizer? Isso não seria motivo de festa ou talvez uma promoção?
O computador manteve-se mudo e o sistema fechou-se. Houve um profundo silêncio. O rapaz deixou a sala sem saber o que fazer.
“Qual o objetivo disso tudo?” – Pensava incessantemente, enquanto caminhava em direção ao veículo transportador. Ao acioná-lo, o veículo, como de costume, sugeriu que assistisse as notícias. Triti concordou. Bem naquele momento, o canal de jornalismo fazia uma chamada urgente:
– Mortes inexplicáveis voltam a acontecer. Cerca de doze pessoas morreram de maneira misteriosa no início desta tarde. Médicos não conseguem detectar a causa. Amostras de sangue foram enviadas à Nanobios Corp. na tentativa de descobrir a possível causa.
“Outra vez. O que será isso?”
Ao chegar a casa, Triti procurou por um arquivo de mapas da cidade e o ativou no projetor holográfico.
– Computador, faça uma coletânea de todos os casos de mortes misteriosas ocorridos nestes últimos dois dias.
– Processando. Notícias registradas e organizadas por ordem de datas.
– Computador, abra o mapa da cidade.
– Mapa aberto.
– Sinalize os locais onde as mortes misteriosas ocorreram.
Bem diante de seus olhos, Triti viu formar um diagrama das regiões onde todas as mortes ocorreram. Para seu espanto, notou que a maioria ocorrera nas imediações da Nanobios Corp.
– Computador, faça uma previsão algorítmica das próximas mortes.
– Processando.
– Exiba em sobreposição ao mapa.
Curiosamente, a sobreposição de imagens induziu Triti a especular sobre algo inusitado:
– Computador, alinhe as marcas dos registros de mortes.
– Processando… marcas alinhadas.
– Meu Deus! – O número de mortos havia aumentado abruptamente em apenas vinte e quatro horas.
Triti rapidamente neurofona Rita:
– Olá, Triti. Posso ajudá-lo?
– Rita, preciso falar com você agora.
– Agora? Estou super ocupada. Recebi várias amostras…
– É exatamente sobre isso que quero falar. – Interrompeu.
– Tudo bem… eu… venha o mais rápido que puder. Fui intimada a entregar os laudos dentro de alguns minutos.
– Estou a caminho.
Ao chegar, ambos conversaram ansiosamente.
– Descobriu alguma coisa? – perguntou Triti, a sussurrar.
– Pelas amostras de sangue detectamos que as vítimas apresentavam o dobro da quantidade de nanobots permitida. O mais interessante é que, acidentalmente, um nanobot de uma versão mais antiga, compunha a população existente.
– Mas ao se fazer uma atualização, todos os nanobots inertes são retirados e os novos são introduzidos. O que a presença de um nanobot de versão antiga estaria fazendo ali? Ainda mais ativo!
– Verificamos a versão dele e, estranhamente, constatamos que ele era usado para espionagem.
– Espionagem? Estas pessoas que morreram eram militares ou trabalhavam para o governo?
– Historicamente, o objetivo do governo era implantar nanobots espiões em soldados que, ao serem capturados, funcionariam como emissores de localização e informações. Isto é o que todos nós sabemos.
– Particularmente, não sabia disso.
– Sim, mas os nanobots espiões saíram de linha há cerca de três décadas.
– Será que ocultam algo? – Indagou Triti.
– Nem imagino o que poderia estar por trás disso. Só queria saber como um nanobot espião foi parar no corpo de cidadãos comuns. O que me intriga é como os cadáveres apresentaram doses excessivas destes equipamentos. Quem teria inoculado tantos assim? – questionou Rita, enquanto preparava o laudo de mais uma vítima.
– Auto-replicação! Exclamou Triti, de súbito.
– Impossível. Os nanobots não são programados para se auto-replicarem.
– Isso é o que nós sabemos oficialmente. E o que não sabemos? – questionou Triti, ao levantar uma suspeita perigosa.
– Tudo é possível. Mas contraria todos os códigos de ética da nano robótica. – disse Rita, agora se dando conta da real gravidade da situação.
– E por que as vítimas desidratam de maneira tão rápida?
– Os nanobots identificam as células como agentes invasores e as destroem.
– Significa que os nonobots poderiam estar programados para fazer isso.
– Ou mau funcionamento.
Naquele instante, Triti recebeu um chamado do setor Vermelho.
– O diretor-geral necessita de sua presença aqui. É urgente. – disse a secretária.
– Estou a caminho. – confirmou o rapaz. – Tenho de ir. Você teria as nanografias? Preciso muito vê-las.
– É, tenho sim. Vou consegui-las pra você. Parece que as coisas vão esquentar. – disse Rita. Triti agradeceu com um sorriso e partiu acelerado.
Ao chegar lá, o segurança solicitou que esperasse na sala. O computador, com a típica voz fria e metalizada reconheceu o rapaz e emitiu sua mensagem de saudação: – Boa noite, senhor. Por favor, no armário à sua esquerda contém uma mala na qual há uma R.I. Vista-a e direcione-se à sala B.
– Sala B? Por que a sala B? Posso ficar bem aqui.
– O diretor do projeto o aguarda. – respondeu o computador.
Triti suspeitou de algo errado. Porém, depois de vestir a R.I., suas reações emocionais passaram a ser monitoradas pelo computador. Suas dúvidas também. Um segurança o encontrou do lado de fora da sala e o conduziu apressadamente à sala B. Um homem o aguardava. Estava imerso numa fria e densa penumbra, o que dificultava ver seu rosto.
– Sente-se, rapaz. Primeiramente gostaria de parabenizá-lo por ter estabilizado a molécula. Um feito muito importante para a nossa organização. Tamanha destreza faz lembrar-me de seu pai.
– Conheceu meu pai?
– Sim, lembro dele muito bem e da sua mãe. Pessoa difícil. Cheguei aqui graças ao querido Ganimedes.
– Como o conheceu? – indagou Triti.
– Sou seu primo. Isso mesmo. O primo Waldir. O tempo passa muito rápido. Retribuí o empurrão profissional que seu pai me deu e abri as portas pra você aqui. – neste instante ele se aproximou da luz, revelando traços familiares. Triti teve uma rápida lembrança de quando o vira pela primeira vez, durante sua infância. Porém, estava bem mais jovem agora.
– Tive uma vida difícil, assim como seu pai. Cansei de viver na privação. É difícil saber que a morte está constantemente à espreita. Seu pai, ainda não entendo o porquê, sempre usou sua inteligência para ajudar os outros e nunca em benefício próprio. Se quisesse, ficaria rico da noite para o dia, mas optou pela simplicidade. Seguia uma regra pessoal, que fazia questão de nunca quebrar…
– Jamais desrespeitar a natureza.
– Jamais desrespeitar a natureza. Isso mesmo. Nunca entendi muito bem esta sua conduta de vida. Até que um dia, finalmente, compreendi. Bem, isso não vem ao caso agora. Preciso que você nos auxilie.
– Claro. Em que posso ajudar?
– Vou revelar-lhe algo muito importante. Talvez já saiba que existe sempre um objetivo oculto por trás de toda tecnologia desenvolvida. Além de suprir as carências e inflar as vaidades humanas, nossa empresa tem como meta conter e até mesmo se livrar por completo dos sSlvagens. Falamos de extermínio em massa. Uma forma elegante de tirar da vista dos Potentes aquilo que simboliza a decadência humana. Uma pesquisa recente revelou que a população dos Selvagens está aumentando ano a ano. Uma sentença de morte silenciosa foi decretada. Os nanobots fariam o papel de construir uma sociedade seleta. No entanto, para a nossa surpresa, o projeto, depois de tantos anos, apresentou falhas. Não só Selvagens estão morrendo, mas Potentes também.
– E qual o motivo das mortes? – perguntou Triti, consternado diante da conversa.
– Os nanobots anômalos tornaram-se contaminantes. Eles não ficam mais restritos a um só indivíduo, mas estão migrando para qualquer outro corpo.
– Mas que tipo de nanobot é esse? Por que tornou-se anômalo?
– É o que precisamos descobrir. Desconfiamos como isso aconteceu. Por algum motivo, nanobots espiões conseguiram se multiplicar e contaminar um lote de nanobots terapêuticos. Um único espião é capaz de reprogramar o funcionamento de milhares de outros. Aqueles que deveriam nos salvar, voltam-se contra nós.
Triti ficou chocado. Uma sensação de pavor e urgência tomou conta:
– E como podemos ter acesso ao projeto original dos nanobots espiões? Quem é o responsável por essa tecnologia?
Waldir permaneceu calado. Silêncio este que provocou arrepios em Triti:
– O principal agora é tentarmos impedir que isto se torne a maior pandemia de todos os tempos. Se falharmos, não sobrará ninguém. – disse Waldir, ao quebrar a latência na conversa.
– Preciso ter acesso aos planos originais e, se tivermos sorte, descobrir o porquê os nanobots espiões se tornaram anômalos.
– Darei total acesso ao sistema de segurança. – disse Waldir, a retirar de seu bolso uma senha. – Tome isso. Você vai precisar para acessar os registros. Um primeiro passo importante já foi descoberto, por você mesmo. A molécula estabilizada, na verdade, era uma simulação da interatividade do nanobot e a célula. Você descobriu a forma de como o mecanismo interage com a membrana celular. O campo biomagnético das células acaba servindo de energia alimentadora para os nanobots se auto-replicarem. E também utilizam o biomagnetismo como meio de comunicação.
– Quem fez isso era realmente um gênio. Pena que usou para algo tão ruim.
– Realmente, um gênio. Você, Triti, sem se dar conta, acabou descobrindo a faixa de frequência harmônica na qual eles funcionam. Porém, ainda desconhecemos as condições necessárias para desativarmos o desenvolvimento de tais mecanismos. Agora você deve ir.
O rapaz, em silêncio, rapidamente saiu da sala em direção ao laboratório, quando Waldir o deteve:
– Triti, sabe que temos acesso a tudo o que acontece aqui. Não existe segredo para nós. Sinto informar-lhe, mas sua amiga Rita já foi contaminada. Os primeiros sintomas começarão em vinte e quatro horas. Em seguida, ocorrerá a liquescência corpórea e a desintegração.
Tudo pareceu confundir-se, agora. Aquilo significava que Triti teria menos de vinte quatro horas para descobrir a cura. Determinado a encontrar uma solução rápida, rumou para o laboratório. Havia uma antecâmara blindada onde, assim que adentrou, o computador solicitou ao rapaz que se despisse totalmente. Em seguida, óculos com filtro de luz foi dispensado através de uma abertura na parede esquerda. Passo a passo, o computador o direcionava:
– Coloque os óculos de proteção e prossiga para o casulo em frente. – um jato de ar forte foi acionado de cima para baixo:
– Mantenha os óculos posicionados. Uma forte luz eliminará todos os pelos de seu corpo. Isso é necessário. Permaneça com os óculos e os olhos fechados, até que seja liberado.
Uma densa luz ofuscante inundou o casulo, dissipando-se em seguida. Triti descerrou os olhos e pode sobre a pele, cinza resultante da calcinação de bactérias. O computador prosseguiu:
– Coloque a roupa especial de anticontaminação. Em seguida, será liberado para acesso ao laboratório de segurança máxima.
Um novo ambiente abriu-se à sua frente. O local perfeitamente branco cintilou em seus olhos, uma beleza estéril. Triti caminhou receoso e posicionou-se diante do ultramicroscópio, o qual era capaz de captar e manipular estruturas minúsculas, até mesmo menores que o menor vírus. No visor, um nanobot poderia ser ampliado mais de um bilhão de vezes.
O rapaz sequer sabia por onde começar, até que uma amostra de sangue de uma das vítimas, selecionada automaticamente pelo computador, foi colocada à sua frente. Depois de horas de investigação noite adentro, sem nada relevante ter sido descoberto, uma nova amostra. Esta, no entanto, apresentou uma pista intrigante. Era algo bastante estranho: um nonobot, diferente dos demais, surgiu no foco das lentes do ultramicroscópio. Boiava inerte no plasma sanguíneo. Triti ampliou para verificar sua estrutura. Numa das laterais havia um símbolo, uma espécie de assinatura, feito com o alinhamento de átomos, como que deixado lá propositalmente.
O rapaz achou aquilo curioso e fotografou. “É o símbolo que representa o gênero masculino. Por quê? Seria uma forma de, quem sabe, identificar os nanobots que espionariam somente os homens? Não, não pode ser. Não faz sentido algum. Ou, quem sabe, poderia ser o nome do projeto?” – pensou. “Sim, é isso! Este símbolo representa Marte, o deus romano da guerra. Realmente, este pode ser o nome do projeto”. Apesar de extenuado e a cabeça tempestuosa, solicitou imediatamente ao computador central que verificasse a existência de algum projeto denominado Marte.
Algum tempo depois, a resposta foi positiva. Pediu, então, que abrisse o arquivo para acesso ao projeto. E em poucos segundos, o projeto Marte se revelava. Tratava-se de um plano de espionagem muito bem elaborado. Tinha como objetivo criar nanobots espiões que pudessem ser propagados pelo ar, semelhantes a vírus e, assim, contaminar os habitantes de um país inteiro ou até o mundo. No entanto, poderiam ser desativados pelo centro de controle bélico da Nanobios Corp.
“Quem seria o responsável pelo projeto?” – Pensava Triti, enquanto páginas e mais páginas de informação eram acessadas.
Prosseguiu com a pesquisa, mas falhou ao tentar encontrar algo que revelasse a forma de conter a infecção. Os nanobots deveriam ser totalmente à prova de mal funcionamento. Porém, algo lhe chamou a atenção. Num dos relatórios de desempenho do funcionamento do nanobot, havia uma assinatura. Estava um tanto desbotada.
– Que estranho! Esta assinatura, apesar de ilegível, me parece familiar. Computador: necessito de uma cópia impressa deste relatório.
Em segundos a impressão estava disponível e Triti solicitou uma telerreunião urgente com Dr. Waldir. O computador central procedeu com o chamado. Ambos foram rapidamente conectados:
– Conseguiu descobrir alguma coisa? – Indagou Dr. Waldir, ansioso com o andar da pesquisa.
– Sim, isolei um nanobot, mas uma coisa me chamou a atenção. Na lateral direita do mecanismo havia um símbolo feito habilmente com átomos alinhados: Marte. Fiz um levantamento dos arquivos e este era nome de um projeto secreto, ideia não concebida pela Nanobios, mas sim, um projeto encomendado a um terceiro. Algo muito sofisticado para a época. O senhor sabe de alguma coisa a respeito?
– Não tenho total conhecimento desse caso.
– Quem sabe se encontrássemos o inventor do projeto, poderíamos identificar o mecanismo de funcionamento dos nanobots. Porém, não me parece que este tipo de mecanismo poderia ser o causador das mortes.
– Veja bem, Triti, o projeto é antigo. A menos que seja um Potente, o inventor pode nem estar vivo. Não tive acesso ao projeto e nem imagino quem poderia ter sido o seu idealizador. Procure focar-se em como deter esta epidemia. Lembre-se de que estamos quase sem tempo.
Triti anuiu, porém não estava convencido. Sentia que deveria encontrar o mentor do projeto. Existia algo naquela assinatura que lhe parecia familiar. Pensou, pensou incessantemente, até que uma rápida lembrança emergiu.
“Marte, Marte, esta palavra faz lembrar-me de meu pai. Quando criança ficávamos observando as estrelas, e para cada uma que eu apontava, ele dizia o nome. Pouco citava esse nome. Talvez por pura superstição. Evitava ao máximo até mesmo olhar na direção do planeta. Espere aí! A assinatura! Lembro de um dia, quando desci ao porão, meu pai estava escrevendo algo. Cheguei ao exato momento em que ele assinava uma carta. Aquele traçado era muito semelhante. Será… Não, não pode ser. Preciso ver de perto.” – Triti decidiu sair rumo à casa de sua mãe. Quem sabe pudesse descobrir algum detalhe, alguma informação, já que seu pai era um inventor e já havia apresentado algumas propostas à Nanobios.
– Computador: deixe o equipamento pronto. Deixarei o laboratório, mas retornarei em breve. Necessito colher dados para a pesquisa.
– Confirmado, senhor.
Triti partiu rapidamente. Ao longo do trajeto não tirava seu pai da mente. Assim que se aproximou do local de seu antigo lar, a melancolia tomou-lhe conta. Muito tempo havia se passado desde que estivera lá pela última vez. As memórias de infância voltaram com toda força. O local continuava abandonado, esquecido, em chão de cascalho. O velho morro, onde passara momentos felizes com seu pai, parecia congelado no tempo. Lá adiante, caminhando com dificuldade, a passos lentos, Triti avistou sua mãe. Não parecia expressar plena saúde. Quando a viu, sentiu dificuldade de dar conta de seus sentimentos. Queria tê-la poupado de uma vida difícil, mas ela não seria útil na sociedade dos Potentes. Por mágoa e orgulho recusou qualquer ajuda do filho. E a inoculação com nanobots lhe foi negada. O real motivo nunca ficou claro. Contudo, uma estranha sensação de saudade oprimiu coração do rapaz, enquanto seus olhos acompanhavam seus oscilantes passos. À medida que se aproximava, Triti buscava ler sua fisionomia. A doença da velhice já zombava de suas habilidades. Havia uma apatia fixa, um esgotamento profundo, típico de uma pessoa vergastada pelas dificuldades. O rapaz chegou a pensar até quando ela suportaria bravamente aquela situação. Antes de parar o veículo, Triti mergulhou a face nas mãos e por entre os dedos as lágrimas escorreram.
– Mãe. – Chamou-a imprimindo um tom de meninice. Ela estancou e virou-se trêmula, com dificuldades, numa espécie de vaguidão que causava aflição. Custou a reconhecê-lo, até que finalmente empalideceu e seus olhos arregalaram imóveis. Soltou uma débil, quase indiferente interjeição de surpresa:
– Ah, é você! Minha nossa, finalmente resolveu visitar a simples mortal.
– Mãe, que bom vê-la! Preciso de sua ajuda. – enlaçou-a afetuosamente.
– Ajuda! De uma velha Selvagem decadente?
– Ora, mamãe, deixe disso.
– Vamos entrar. Cuidado para não ser contaminado pelo espírito da pobreza. Quase nem o reconheci. Está forte. O que aconteceu? Por que está aqui?
– Gostaria de ter tempo para explicar, mas preciso ver alguns documentos do papai. Posso descer ao porão por alguns instantes?
– Sim, claro. Mas pra quê? Mais alguma besteira daquele velho teimoso?
– Só preciso confirmar sua assinatura.
– Não há problema algum. Desça lá. Deve ter muita poeira. Faz tempo que não faço uma boa limpeza.
Triti agradeceu com um beijo na testa e rapidamente desceu as escadas. O porão tinha mudado um pouco. O chão já não era mais de chão batido. Mas os móveis permaneciam dispostos como antes. Bem no centro, a cadeira do velho Ganimedes, intocável, como que aguardando seu retorno. Cinco caixas de madeira estavam dispostas ao lado da mesa. Triti abriu todas elas. No fundo da quarta caixa havia um envelope amarelo, ainda lacrado. Teve receio de abri-lo, mas a urgência o fez violar a privacidade dos registros de seu pai. A folha introdutória esboçava o título: Projeto Marte. Triti sentiu um frio percorrer seu corpo. Aquilo era a cópia do projeto que fora apresentado à Nanobios. O idealizador: Ganimedes Mourão. Ao ler atentamente o manuscrito, notou algumas anotações que faziam referência a um livro do século vinte, cujo autor teria sido o pioneiro na pesquisa de nanobactérias.
Bem à frente havia uma estante com centenas de livros, todos acomodados sob uma grossa camada de poeira. Depois de revirá-los, percebeu que um deles fora cuidadosamente embrulhado. Ao abrir o pacote, lá estava o livro que teria inspirado o velho Ganimedes.
Ele apanhou o material e subiu as escadas apressadamente:
– Mamãe, preciso ir. Vou levar estes papéis comigo e este livro. Prometo devolvê-los.
– Tudo bem. Não saberia o que fazer com isso mesmo.
Triti despediu-se e, antes de partir, deslizou a mão sobre o rosto de sua mãe e disse:
– Logo deixará de ser uma Selvagem. – ela sorriu satisfeita e inclinou a cabeça, apoiando-a na mão que a acariciava.
Triti partiu às pressas para o laboratório. O tempo encurtava. A vida de Rita e de milhares de pessoas estavam por um fio. A ansiedade fazia o trajeto estender-se. Finalmente, já na sala de pesquisa, Triti debruçou sobre os escritos de seu pai. Segundo o relatório original, o autor do livro relata uma descoberta que havia feito quanto a pulsos eletromagnéticos específicos que poderiam atuar sobre as nanobactérias e, por fim, direcioná-las para onde desejasse. Estas funcionariam como mensageiros pra levar cargas químicas para as células cancerosas.
– Nanomecanismos naturais. Achamos que estamos sempre inovando… Huh! Mas continuo no escuro! – exclamou Triti, já perdendo as esperanças.
Ao esfregar os olhos turvados pelo cansaço, arremessou a pilha de papéis sobre a mesa e providencialmente, do meio de outros encartes antigos, uma folha solta deslizou, amarelada, com um desenho feito à mão.
– O que pode ser isso? – indagou. E, para a sua surpresa, descobriu o projeto original dos nanobots espiões. No verso, uma anotação de próprio punho que Ganimedes havia deixado:
“Este projeto é contra tudo o que penso e nunca passou pela minha mente violar a Natureza por dinheiro. Envergonho-me do que faço. Deixo aqui um desejo íntimo: prefiro permanecer pobre, até o fim da minha existência, a ver a vida ser destruída por causa de um plano maluco de poder. Desculpe, meu filho. Estou mesmo envergonhado. Farei questão que nunca mencionem meu nome como o autor de um projeto assim amaldiçoado. Aviso: não há solução.”
Ao ler esta nota, Triti baixou a cabeça e não conseguiu conter as lágrimas. Errou entre o sentimento de dor de seu pai e o terror da catástrofe iminente. O que poderia fazer? Seu pai, um sábio nato, havia desenvolvido a pior arma de todos os tempos. Em meio à turbulência de pensamentos, Dr. Waldir o neurofona:
– Alguma notícia?
– Sim, descobri o projeto original. Não tinha a menor ideia de que meu pai era o autor. O senhor sabia disso, não?
– Não sei de muita coisa, mas seu pai foi forçado a desenvolver uma arma secreta. Nosso país estava à beira de um conflito internacional. Naquela época já se falava em guerra. Foi então que decidiu desenvolver uma medida preventiva de defesa. Eu e você sabemos que ele nunca foi um homem de grandes ambições, apesar de sua inteligência. Por fim, aceitou ingressar no projeto, pois sua mãe estava grávida e a pressão sobre ele foi muito forte.
– É! Tenho certeza que suas intenções foram as melhores. O problema é que o projeto é extremamente complexo. Deve haver algo mais que não estou conseguindo entender.
– O que poderia ser?
– Falta um elo para conectar o projeto original e as mortes. Preciso me concentrar mais. Entrarei em contato assim que tiver mais informação.
– Infelizmente, estamos sem tempo. Relatórios de centenas de outros casos acabaram chegar. Receio que tenhamos perdido o controle.
– Vou tentar acelerar as análises.
Muito embora o assombro quanto à catástrofe o confundisse ainda mais, um sopro de esperança fez o rapaz acionar as poderosas lentes do ultramicroscópio. Era o mesmo que mergulhar no mais profundo oceano desconhecido. Com o auxílio dos nanomanipuladores, instrumentos altamente sofisticados, semelhantes a pinças, capazes de agarrar e direcionar um único átomo, debruçou-se sobre o visor. Subitamente, como que numa tacada de sorte, verificou a presença de nanobots em líquido cérebro-espinhal. Conforme a análise do computador, aqueles mecanismos foram projetados originalmente de acordo com o projeto de Ganimedes.
“Sim, aquele meu velho era sem dúvida um gênio.” – pensou, em voz baixa.
Logo em seguida, outra coisa chamou mais a atenção. Um nanobot espião parecia se comunicar com neurônios.
– Computador, faça uma leitura da troca de íons entre o nanobot e o neurônio.
Rapidamente, a leitura indicou que o nanobot passara a armazenar pulsos elétricos remanescentes da célula nervosa. Era uma forma de colher informações contidas nos neurônios para reproduzir, via computador, as informações colhidas pelo indivíduo.
– Era assim que os nanobots espionavam. Análise de troca de íons neuronais e impulsos elétricos. Depois, os traduziam em informação! Leitura de mentes! – exclamou Triti. – A coisa é mais complexa do que imaginava. – concluiu. – Espere aí! O que aqueles nanobots estão fazendo? Parecem acoplados. Computador: analise a atividade dos mecanismos.
– O nanobot está se replicando. – Respondeu o computador.
– O quê? – assombrou-se Triti. – Não, não pode ser. Como? Como aprenderam a fazer isso? Não estavam programados para a hetero-montagem.
Triti recorreu aos escritos do pai. Revirou a papelada, até que encontrou um pequeno diário com uma anotação perturbadora que dizia: “Os nanobots que eu projetei são dotados de inteligência artificial. Ao serem inoculados, passarão a absorver informações de cada indivíduo. Terão a capacidade de se montarem a partir de moléculas. Não sei como poderemos controlá-los, mas esta foi uma exigência da própria corporação. Mais uma vez, estou entre o bem e do mal. Tento, até hoje, descobrir qual invenção em toda a história humana, foi realmente usada somente para o bem. O projeto saiu do controle, e inocentes pagarão por isso. Este pesadelo me atormentará todos os dias. Não posso suportar. Realmente. Por isso, devo terminar minha vida.” É isso, talvez, o que o velho Ganimedes quis dizer com “Não há solução”.
Num pequeno estojo havia uma seringa de injeção e três frascos de um produto venenoso, e um deles estava vazio. Triti supôs que seu pai pudesse ter usado o veneno para abreviar seu tormento. Imediatamente, pegou os dois restantes e guardou-os no bolso da jaqueta.
Atormentado, deixou escapar seu pensamento em voz baixa:
– É um pesadelo! A incompetência humana motivada pela ganância. Sempre foi assim e sempre será. O velho Ganimedes tinha razão. Não há solução. Jamais conheceremos nossos limites. Muitos pagam pela minoria que julgam ter o poder. Não restam mais dúvidas. Minha impotência será convertida em castigo.
Triti afastou-se dos equipamentos. Virou-se em direção a porta e caminhou a passos lentos, cabisbaixo, absorto, ignorando o alerta do computador central para que retornasse à pesquisa. Naquele mesmo instante, seu neurofone recebeu a chamada da diretoria, mas ele também a ignorou.
Afastou-se do laboratório. Entrou no veículo e retornou ao local onde passara a infância com seu pai. Ao chegar, sentou-se no mesmo pequeno morro e em voz baixa, simulou um diálogo com o falecido Ganimedes:
– É, pai, agora entendo sua dor. Bem que o senhor dizia: o ser humano procura sempre ultrapassar seus limites e acaba por invadir território desconhecido. Mas acho que agora foi demais. Não vou conseguir consertar o mal feito. A humanidade deverá pagar pelo que fez. Sairei deste ciclo interminável de tristeza e miséria humana. Amor ao próximo? Como pode haver amor ao próximo, se vivemos num mundo de competitividade? Na competição não cabe o amor. Não acho que esta noite esteja tão bonita quanto aquelas que ficávamos juntos.
Durante um pesado, sombrio e silente momento em que procurava uma única estrela por entre as nuvens baixas no céu, sozinho e com olhos turvados de lágrimas, não pode mais conter a angústia, o sentimento de uma vida de faz de conta. Triti retirou de seu bolso uma das ampolas de injeção. Do outro, uma seringa e após vencer a névoa do medo, encheu-a e aplicou sua sentença de morte na veia do braço esquerdo.
Num profundo suspiro, ergueu a cabeça para contemplar pela última vez o panorama à sua volta, cenário de infância, de casas simples, paredes mal pintadas e janelas vazias. Um súbito frio entrou pelo seu corpo. A vertigem o fez tombar, lívido e frágil. Ainda havia forças para um sussurro:
– Queria ter visto o lindo cinturão de Órion.
Triti fechou os olhos e, enfim, esboçou um triste sorriso de indefinível paz.