Removidos – Capítulo 6: O desaparecimento

 

Mudei para o apartamento de Ely. Fiz de lá um porto seguro, um refúgio. Saía pouco, pois não queria despertar a atenção de agentes. A convivência nos fez desenvolver uma relação bastante afetuosa. Deixei a barba crescer e emagreci. Nem eu mesmo me reconhecia.

Evitávamos nos comunicar por aparelhos convencionais, celulares, telefones fixos ou computadores. Ely mantinha sua rotina para não levantar suspeitas. Não obstante, eu permanecia no apartamento, raramente tendo o prazer de ver a luz do sol.

No final do dia, ela chegou a casa sentindo-se estranha. Beijei-a, mas pela primeira vez não fora correspondido. Imaginei estar cansada demais. Seu silêncio despertou a suspeita de que agentes a estivessem coagindo para me entregar. Insisti para que revelasse o que passava em sua cabeça, deixando claro a minha desconfiança. Após um tempo, disse:

– Sinto que novo contato ocorrerá. – Baixou a cabeça e cobriu o rosto com as duas mãos visivelmente trêmulas.

– Estranho! – Exclamei – Tive a mesma impressão hoje.

– Eles querem nos avisar de alguma coisa. É como uma certeza que não dá para descrever.

– Ely me abraçou. Notei que tremia muito:

– Tenho medo de te perder. – Disse aumentando a tensão de seu abraço. Aninhei-a carinhosamente e acalmei-a com um beijo. A ternura prevaleceu até adormecermos.

No dia seguinte, como de costume, Ely foi para o trabalho. Antes que atravessasse a rua, voltou-se para me ver. Soprei-lhe um beijo. Mais um dia em companhia da solidão. E numa situação como aquela, uma mente sem âncora busca o primeiro vento a favor para fugir do tédio.

Foi, então, que decidi sair. Resolvi dar uma volta no parque localizado logo ali, bem próximo de onde estava. Peguei minha jaqueta e ao pisar na rua, senti aquele maravilhoso ar fresco. Rumei leve para lá. O dia estava claro e ao chegar ao parque, sentei-me à beira do lago. Bem próximo, sentada na grama que margeava o lago, vi uma moça que parecia me observar. Correspondi e comprovei que a moça realmente olhava para mim. Ela tentou disfarçar e, então, abriu a bolsa tirando um sanduíche embrulhado num papel alumínio. De longe, como num gesto de saudação, ergueu-o oferecendo para compartilhá-lo comigo. Agradeci e fiz que não. Ela se levantou calmamente, caminhou até mim a esboçar um sorriso.

– É um dia lindo, não acha? – Disse ela.

– Tem razão. Adoro dias claros. – Respondi, mas sentindo-me um pouco incomodado com tanta hospitalidade.

– Conforme o tempo passa, a vida fica um tanto desbotada. Vez ou outra é bom parar um pouco para resgatar o colorido das coisas simples.

– Mais uma vez devo concordar. Você é?

– Nina, e você?

Estava prestes a falar quando decidi inventar um nome (medidas de segurança):

– Roberto.

– Fuma, Roberto? Perguntou Nina enquanto amassava o embrulho do sanduíche.

– Não; nunca fumei.

– Que pena! Que tal um café? Mas terá que ser em um lugar ao ar livre, pois o cigarro será inevitável.

– Acho que eu vou te dever essa. Sabe como é, desempregado…

– Eu pago.

– Conheço um lugar muito bom. É perto daqui. – Disse, mas senti-me inseguro com tanta hospitalidade.

– Podemos ir, então. Um café cairá muito bem.

Caminhamos e ao chegarmos, pedimos um cappuccino. O ar fresco daquela manhã nos estimulava a interagir com a leveza da vida, muito embora mantivesse minhas preocupações quanto a possíveis agentes disfarçados. Há tempos que não fazia coisas simples, amenidades, como tomar um café sem ter compromissos.

– Gosto desse lugar.

– Fala como se fosse a primeira vez que pisa aqui. – Observou Nina.

– Um presente pra alma. Você trabalha ou mora por aqui?

– Vim visitar uma amiga. Ela mora perto. Trabalhamos na mesma empresa. E você?

– Também moro por aqui. – Respondi ingenuamente sem nenhum sentimento de reserva. No entanto, um ruído em minha mente não me deixava relaxar por completo. Aquele seu jeito de olhar…

– Mora sozinho?

– Com uma amiga.

– Namorada? – Perguntou de maneira insinuante.

– Não sei bem. Acho que não. É um assunto que não nos aprofundamos ainda.

– Para mim, compartilhar o mesmo teto implica em viver em perfeita harmonia. É sempre bom refletir bem antes de investir num passo tão importante.

– Concordo. Aliás, eu…

– Já é tarde. – Nina interrompeu. – Preciso ir. Quer carona?

– Bem, eu… Moro tão perto. Não precisa se incomodar.

– Vamos lá. Pra mim não é incômodo algum. Posso deixá-lo perto de sua casa. – Insistiu a moça enquanto tirava o dinheiro para pagar a conta.

– Agradeço pelo café e a conversa.

Caminhamos em direção até o carro e durante o trajeto senti uma leve tontura. Precisei me amparar no ombro de Nina que estranhou o mal súbito. Ouvi vozes. Sussurros que ecoavam dentro da minha cabeça. Em seguida, da mesma forma misteriosa como surgiu, logo dissipou. Nina perguntou se eu estava bem e se não seria melhor irmos a um hospital. Assegurei-a de que estava melhor.

Já no carro, fomos em direção ao apartamento de Ely, e novamente sobreveio o mal-estar. Desta vez, com maior intensidade. Nina não percebeu. Falava ininterruptamente. Quanto mais a ouvia, mais tontura sentia. Ondas de calafrio percorriam minha coluna. Tive náusea. O som ambiente foi se distanciando até tornar-se um ruído ininteligível e abafado. Tudo ficou escuro.

Retornei à consciência. Ao abrir os olhos vi-me numa sala. Não havia móveis, exceto a maca onde estava (“aquela moça só podia ser algum tipo de armação!” – Pensei.). O ambiente era todo branco. Saltei da maca e notei que estava sem sapatos. Olhei para o chão e os vi posicionados próximos ao pé da maca. Não havia janelas. Caminhei oscilante até a porta e abri. Havia um longo corredor, semelhante ao de um hospital, que terminava numa escadaria.

O ambiente estava silencioso, silencioso demais. Fui em direção à escada. Tinha minhas suspeitas. A experiência anterior, tão traumática, me deixou escaldado. Cuidadosamente desci os degraus, mas o estalar dos ossos do pé direito denunciaram minha presença a dois cães que correram em minha direção. Escondi-me no lance superior da escada a qual era bloqueada por uma parede. Dois enormes animais farejaram o chão e, não sei por que, talvez por sorte, desistiram da caçada. Desci o lance da escada e avistei lá adiante a saída. “Fácil demais”. Enchi o peito de coragem e acelerei os passos, firme em meu trajeto. Mas o assombro de ser perseguido por agentes fazia minha coragem me abandonar. Sabia que tinha de sair de dali o quanto antes.

A distância de alguns metros para se chegar à saída parecia ter-se dilatado. Caminhei pelo hall, vazio, o que avultava qualquer mínimo som. Precavido, mantive a vigilância também por sobre os ombros. Receava ser pego de surpresa. Distraí-me ao vigiar as costas e acabei tropeçando nos próprios pés. Estava descalço e isso provocou o ato-reflexo de recuperar o equilíbrio. O pé de apoio, ao bater no chão, causou forte estalido. Os cães ouviram. Um deles me viu e correu furiosamente em minha direção. Por sorte havia um pequeno elevador de serviços no qual me arremessei fechando a porta a tempo.

Que lugar era aquele? Por que eu tinha ido parar ali? O que havia acontecido com a garota? Certamente Nina havia me entregado. O cansaço e o desespero somavam-se a ponto de me fazer perder o raciocínio. Olhei o painel do elevador e constatei que aquele prédio tinha cinco andares. Não obstante, intrigou-me o fato de também haver mais cinco níveis de subsolo. Decidi, então, descer para o quinto.

O deslocamento do elevador até seu destino levou mais tempo que o normal. A porta abriu e deparei-me com dois guardas, altos, fortes, ambos em uniformes pretos e um aparato nos olhos, algo parecido com câmeras. Ao me verem, seguraram-me com truculência sem pronunciarem uma única palavra. Apesar de suplicar para que dissessem que lugar era aquele, permaneciam sistematicamente mudos.

Depois de caminharmos por um corredor, arremessaram-me numa sala vazia. Rolei como um animal ferido indo parar de encontro a uma das paredes. Permaneci lá trancado. Depois de muito tempo, a porta foi aberta e um homem, vestido com um finíssimo terno entrou. Reconheci-o de pronto, pois era o mesmo canalha que havia me capturado anteriormente.

– Ora, ora! Fernando Menezes, ou seria Roberto? Mais uma vez nos encontramos. Disse com um olhar contraído.

– Onde estou?

– No lugar onde as pessoas como você deveriam estar; confinadas para evitar o anarquismo.

– Quero sair daqui.

– Talvez não possa. Indivíduos como você devem permanecer aqui. São como vírus, uma verdadeira peste e como tal devem ser erradicados. Falando nisso, teremos que fazer alguns testes e sua amiguinha irá se juntar a você em breve.

– Vocês capturaram Ely?

– Ninguém nos escapa.

Sem maiores explicações, virou as costas e saiu, dando ordens para manter a porta trancada e vigiada. Só me restava permanecer quieto, encolhido no canto daquela fria sala.

Após certo tempo, um guarda armado abriu a porta ordenando que levantasse. Segurou-me pelo braço e aos solavancos saímos. Minha mente confusa enleava-se com cada passo hesitante que mal conseguia dar. A ansiedade e o terror de não saber o que iria acontecer eram, talvez, o pior castigo para mim.

Atravessamos uma porta de vidro que conduzia para outro corredor muito mal iluminado. Não queria passar por tudo aquilo outra vez. O soldado forçava-me a caminhar com a coronha do fuzil em minha nuca. Finalmente ficamos diante de uma porta, a qual era equipada com dispositivos sofisticados de leitura biométrica. O guarda a abriu. Era um amplo salão circular. Bem no centro havia uma espécie de cápsula, que mais lembrava um sarcófago, ligado a uma parafernália computadorizada.

Fui conduzido, ou melhor, empurrado até a cápsula. Presumi que queriam que eu visse algo. Havia um som semelhante ao de um compressor de ar. Era uma câmara. Inclinei lentamente a cabeça por sobre um pequeno visor de vidro de onde emanava uma luz esverdeada. Pensei estarem guardando alguém ali. Tal ideia me fez congelar. “O que ou quem poderia ser?” – Pensei. Minhas pernas já tão fracas, por um momento falsearam. Meu estômago comprimiu de ansiedade e horror.

Finalmente vi o conteúdo da câmara: – Não pode ser! – Era Ely. Seu rosto parecia de cera, olhos abertos, parados. Estava imersa num líquido transparente e amarelado.

Atrás de mim escutei um riso de deboche. Calmamente aquele homem se aproximou e disse com sorriso cínico:

– Ela está em suspensão. Não sente absolutamente nada. O equipamento auxilia seu corpo a reduzir a taxa metabólica. O líquido, além de fornecer-lhe nutrientes, também preenche seus pulmões, suprindo-a com o oxigênio necessário.

– Mas por que ela? Deixe-a em paz, por favor.

– Precisamos realizar outros testes. Neste estado é mais fácil. Não causa tantos problemas, e assim, ela não terá como escapar. Além disso, precisamos mapear seu genoma. Queremos localizar o DNA não-local.

– Vocês querem esterilizá-la.

– Queremos nos assegurar de que a raça humana estará segura. Isso não é segredo nenhum pra você. Vírus é o que são para nós.

Tentei um último esforço para atacá-lo, mas com um simples comando os guardas me contiveram.

– Deixem-nos ir, malditos! – Gritei.

Rapidamente consegui me desvencilhar da mão que me detinha e, foi então que escapei. Saltei sobre os cabos que mantinham a câmara funcionando. Desconectei a cápsula. Faíscas chisparam para todos os lados como fogos de artifício. Consegui, em meio à confusão, tocar o cabo elétrico num dos guardas que caiu paralisado no chão.

Não sei bem o que aconteceu a seguir, mas percebi a formação de um denso líquido avermelhado que inundou o interior da câmara. Imaginei ser sangue disperso no líquido. O alarme acionou. A partir daí tudo ficou confuso. Aproveitei a deixa para resgatá-la. Ely, mergulhada naquela sopa química entrou em agonia. Pude vê-la sufocar. Vi-a se debater violentamente. À minha esquerda havia um cilindro de ar. Agarrei-o e bati contra o visor. Este rachou e mais duas pancadas foram necessárias para que rompesse. A violação do sistema liberou automaticamente as travas e a cápsula abriu. Puxei Ely usando toda minha força. Percebi que não respirava. Tentei reanimá-la com massagem cardíaca e respiração boca-boca e numa violenta golfada, o líquido que inundava seus pulmões foi expelido. Com grande dificuldade, Ely voltou a si.

Já estávamos cercados por seguranças fortemente armados. O homem o qual apelidei de ditador-comandado assumiu a frente do pelotão. Ordenou que fôssemos executados. Não tínhamos como sair dali. Seria nosso fim.

– Atirem à vontade… – E ouvimos os disparos. Ely foi a primeira a ser atingida. Seu corpo caiu inerte em meu colo.

Naquele exato instante, naquele átimo de segundo, percebi como um ser vivo é valioso e como é hediondo vê-lo fenecer. A despeito do meu desespero, um rápido despertar de consciência, uma amplitude maior de entendimento, sobreveio. Poder? Pra que se a vida é o que mais vale?

De repente, fui envolvido por uma luz. Reconheci de imediato. Tudo ao meu redor desapareceu. Não havia mais nada. Nem soldados, nem armas. O ser aproximou-se calmamente:

– Fernando, adverti que seu mundo não funciona da forma como pensa. Foi corrompido. – E direcionou o olhar para Ely.

– Não vê que ela está morta?

– Você negligenciou o que lhe ensinei. – Reforçou a ignorar meus sentimentos.

A entidade, com um gesto harmonioso, baixou a intensidade da luz a ponto de ser possível ver o ditador e seus guardas. A entidade virou-se e caminhou até aquele sinistro homem como se o reconhecesse. Ela cochichou-lhe algo que não pude ouvir.

Aquilo me deixou intrigado. O que antes era uma expressão de vilania, agora o ditador assumia uma feição de neutralidade, como que sob influência de algum tipo de mágica, fosse desarmado de suas intenções malignas. O ser veio até mim a passos lentos.

– Este foi o treinamento mais difícil que alguém teve de passar. No entanto, apesar do descontrole, você, Fernando, demonstrou habilidades interessantes. Ely também teve um papel importante para a sua libertação.

– Mas do que está falando? Ela morreu por minha causa! E por que aquele assassino parecia tão familiarizado com você? Que tipo de acordo fez com ele a ponto de desarmá-lo daquela forma?

– Deixe-me explicar: Indivíduos especiais acabam encontrando uma forma de se relacionarem com esta vida corrompida, apesar de não a aceitarem como ela é. Submetem-se a uma existência doentia, considerando-a normal. Chegou a hora de removê-lo daqui. Habitará locais onde poderão expressar mais plenamente. Quanto ao que viu agora, há centenas de anos foi estabelecido que interferiríamos nesta civilização. Detectamos indivíduos-correspondentes e os tiramos para um outro mundo. No entanto, aqueles que não estão prontos para a remoção, agem de maneira exagerada, dissonante, apesar de deixarmos muitas pistas de que estivemos aqui. Preparem-se para serem removidos.

– Removidos? Pra onde? – Indaguei sem ainda entender ao certo o significado daquele termo.

– Para um lugar melhor, onde a sobrevivência deixe de ser a prioridade. Vê a mancha em seus braços?

– Aumentam a cada dia.

– Exatamente. Elas indicam que a sua necessidade de expressão é maior, quase incontrolável. Preciso de sua autorização.

– Pra quê?

– Para procedermos com a remoção.

– Bem, nestas condições, acho que qualquer outro lugar pode ser melhor do que aqui. E ela?

– Seu corpo já não tem mais função. – Pousei delicadamente a cabeça de Ely no chão e despedi-me com um último olhar.

– Fernando, esta é uma boa escolha. Lembre-se: Todos aqueles que decidiram ficar, falharam. Grandes nomes da história negaram a remoção e tiveram que arcar com as consequências.

Hesitei por alguns instantes. Deixá-la ali… Eu a queria de volta. O ser percebeu o meu pesar e disse:

– Não dê tanta importância a isso. Ela permanecerá viva em sua mente. Isto é o que conta.

Relutei deixá-la. Difícil mesmo foi conter as lágrimas. Chorei em silêncio. Senti a entidade colocar delicadamente a mão sobre meus ombros e sussurrou ao ouvido:

– Pronto?

Aos soluços respondi que sim.

 

 

 

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