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Episódio 7 (último)

Violência não é um sinal de força, a violência é um sinal de desespero e fraqueza.

Dalai Lama


Uma tarde fim de mundo

 

– O que o Pastor está fazendo aqui, garoto?, a indagação repercutia em cada canto do meu cérebro, mas eu não conseguia respondê-la e tampouco verbalizar o questionamento que pretendia fazer ao tal homem a fim de descobrir o quanto ele conhecia da figura do meu pai. Dionísio tinha me garantido, sempre, que todos aqueles estranhos visitantes que iam até a cabana não tinham qualquer vínculo com Arena, e aparentemente estava correto, pois jamais eu os vira pela cidade, e o ser humano que permanecia sentado diante de mim, dando a impressão de que havia sido soldado ao assento do vaso sanitário, também estava incluído no mesmo grupo.

Fitamos-nos. Eu e o completo estranho. Enxerguei em seu olhar, em seu semblante, uma súplica silenciosa, certamente desejando que eu desaparecesse dali e nunca mais voltasse, e se possível esquecesse que algum dia eu estive em sua casa. Do mesmo modo aspirei por aquilo. Nunca ter chegado até ali, não só à sua casa, mas àquela situação, aquele ponto da minha vida do qual, somente depois de certo tempo, eu pude perceber que poderia ter evitado, mas que era tarde demais…

– Nicolas!

O chamado do velho Ezequiel me fez cambalear por alguns segundos ao passo em que busquei de imediato juntar minhas peças de roupas espalhadas pelo chão do banheiro para me vestir, mecanicamente, enfiando braços e pernas pelas aberturas da minha camisa e bermuda ao mesmo tempo em que minha mente tratava de especular a cena do seu Zé Pereira flagrando o Juquinha na cama com o primo, apanhando o revólver, insano, e disparando sobre os dois, não lhes permitindo qualquer chance de defesa ou fuga. O suor aflorou por todos os poros do meu corpo como se eu tivesse feito alguma atividade física extremamente pesada e então olhei na direção do tal homem: ele encarava fixamente os próprios pés, parecendo um aluno que jogou uma pedra numa janela da sala de aula e que o diretor convocara para uma conversa. Um garoto esperando um sermão ou castigo, ou os dois, assim como eu.

– Nicolas, não me faça chamá-lo mais uma vez.

Fechei os olhos para digerir a realidade a minha volta, mas ela deslizava na superfície dos meus pensamentos e então desisti; abrindo os olhos, me virei, e antes de começar a caminhar para a porta do banheiro, tentei inalar o máximo de ar possível para dentro dos pulmões, e depois de alguns minutos, andando como se tivesse carregando dois pesos mortos no lugar das pernas, cheguei à sala daquela casa e ainda um tanto vacilante eu a explorei com um olhar de lince numa questão de segundos… Apenas o velho Ezequiel estava lá, mas e Dionísio?

 

 

As pontas dos meus dedos estão geladas, inteiramente geladas. Sinto minhas pálpebras mexerem levemente enquanto esforço-me para abrir os olhos, em vão. Por uns instantes não sei mais onde estou… Sei que meu corpo permanece sobre o assento inclinado do avião que logo irá partir para Belo Horizonte, porém não consigo enxergar, perceber, existir dentro desta realidade. Sinto-me feio, esgotado, como se estivesse em um corpo de um ancião de noventa anos… Sei que vou vomitar se tentar ingerir alguma coisa… Não encontro estímulo para escrever e receio que talvez tenha perdido o gosto para criar histórias… Não. Não. Adoniran não vai me atingir. Não vou me permitir carregar o fardo de uma culpa cujos atos que a geraram não foram de minha responsabilidade. Eu era jovem, eu estava descobrindo tudo o que achava que o mundo poderia me oferecer… Por que razão eu carrego comigo essa necessidade de autopunição?

Busco, mas não consigo controlar minha respiração cava.

Não quero continuar lembrando aquele episódio, aquele momento em que o velho Ezequiel me flagrou porque sei o que virá depois e nada poderá mudar o passado… O sofrimento nasce do desaparecimento progressivo de todos os espaços de liberdade. Estou cansado de transportar essa dor, a angústia no corpo todo, o aperto no peito, a dificuldade para respirar, a sensação de que meu coração vai partir. Estou exausto por carregar essa agressividade contida, como uma energia represada, reprimida, ferindo a mim e a todos a minha volta… Micaela sugeriu que eu tentasse me perdoar, mas do quê? Estou com medo.

Em que momento Dionísio decidiu me delatar? Se a causa fora minha crise de ciúme depois do anúncio do seu namoro, seguida da ameaça de que eu iria contar a todos sobre o que tínhamos, mesmo sabendo que eu não teria coragem para fazer aquilo, ele não teve tempo de avisar meu pai. Saímos daquela cabana juntos e permanecemos lado a lado até chegarmos à casa do tal homem, na cidade vizinha, em Águas Vermelhas, e ele continuou lá, exceto quando teve todo o cuidado de não estar naquele banheiro quando o velho Ezequiel apareceu, e  tampouco na sala, aguardando-me de volta, ao lado do meu pai, para ter a certeza do quão humilhado eu estaria… Não… Dionísio não teria tido tempo de retornar à Arena … Foi um teatro perfeitamente encenado… Não existe qualquer outra conclusão: ele premeditou tudo, mas por quê?

A dor da rejeição não é menor do que aquela que sentimos ao esmagar o dedo, mas a dor da traição, quando a pessoa que amamos nos retira de súbito o seu amor, nos ferindo profundamente, é terrível de aceitar… Ela dói, sim, mas não no corpo, não no peito, não no coração, ou em qualquer outra parte física do nosso corpo, mas na alma. Uma dor insuportável que nos deixa desorientados precisando lidar com o sentimento da rejeição que nos fora exposto de maneira covarde, cuspindo em nossa cara a humilhação e o escárnio diante de tanta ingenuidade, nos forçando a enfrentar a responsabilidade de ter que lidarmos com a raiva de nós mesmos, pois em algum momento do tempo passaremos a acreditar, inevitavelmente, que fomos os únicos responsáveis pela nossa própria miséria. 

Silêncio. Silêncio. Não quero mais ouvir, não que mais sentir essa dor… Silêncio.

 

 

 

 

 

 

 

         

– Se um homem se deitar com outro homem, como se fosse com mulher, ambos terão praticado abominação; certamente serão mortos; o Seu sangue será sobre eles.

Com o rosto pegando fogo, meu pai balançava sua Bíblia no ar, apertando-a com firmeza, tendo a ponta vermelha de seus dedos como um resultado natural e imediato ao seu gesto carregado de cólera. Sua voz grave reverberava pelo quarto enquanto cada músculo do meu corpo era tomado por uma expectativa e ansiedade crescentes.

– É assim que você me retribui depois de tudo o que eu lhe fiz, seu miserável?

Ele gritava. Seus movimentos e o tom de voz beirando cada vez mais o descontrole. Acreditei que usaria a Bíblia para me bater, tamanha a proximidade dela sobre minha cabeça.

– Infeliz. Hoje eu me arrependo amargamente por ter te adotado, tomado você para mim depois que a assassina da sua mãe foi condenada…

– Ezequiel, pelo amor de Deus, pense no que você está falando…

Cabisbaixo, ouvi a voz de vó Teresa, aflita, buscando mais uma vez intervir, como já vinha tentando incessantemente, desde o instante em que meu pai me trouxera para casa depois que saímos de Águas Vermelhas e atravessamos Arena sob um silêncio mordaz, já que ele se recusara a ouvir qualquer defesa ou argumento de minha parte, empreendendo um esforço hercúleo, omitindo sob um semblante impassível a mancha da vergonha que lhe invadira a alma.

– Ele é só um menino, Ezequiel…

– Não me venha tentar colocar panos quentes, minha mãe. Não dessa vez. Não depois do que vi – em um gesto mais que abrupto, meu pai se voltou na direção da porta, onde vó Teresa permanecia em pé – Não vou permitir que a senhora interfira, como fez com a vagabunda da sua filha, aquela endemoninhada que pulava janela pra abrir as pernas pro primeiro delinquente que aparecia no seu caminho…

Impotência e pesar foram o que encontrei nos olhos de minha avó ao levantar a cabeça em sua direção.

– Você deveria ter mais respeito. Eva é sua irmã – vó Teresa devolveu firme depois de alguns segundos.

– Não, há anos não tenho mais irmã e a senhora também deveria esquecer de que tem uma filha…

O olhar implacável de meu pai voltou a cair sobre mim enquanto terminava de proclamar sua autoritária sugestão. Não tive coragem para encará-lo e então voltei a baixar os olhos.

– Muito me admira a senhora, que se gaba de ser uma católica, temente a Deus, seguidora do Papa, achar bonito o que seu neto fez. Esse degenerado estava se oferecendo para outro homem, se comprazendo com o ato do pecado que estava cometendo…

Numa fração de segundos senti o peso da mão de meu pai aterrissar violentamente no meu rosto, fazendo-me cair sobre a cama de imediato, sem qualquer chance de defesa; ao ver sua Bíblia desabando ao meu lado logo em seguida, me preparei para o inevitável e então encolhi as pernas e coloquei os dois braços diante do rosto sem pestanejar, as mãos cerradas, os olhos fechados…

– Se quer agir como sua mãe, viver como aquela ordinária viveu, repetindo as mesmas insanidades, então vá morar com ela. Se quiser eu acho aquela miserável, nem que seja no quinto dos infernos, e aí você vai ver o que é ter uma vida ruim. Vai implorar pra ter de volta esse teto que eu te dou com meu trabalho honesto, bem diferente da vida que vai ter na zona, ao lado da famigerada daquela que te botou no mundo e de toda aquela gente que já tem a alma condenada antes mesmo do Juízo Final.

O suor escorria por todo o meu corpo enquanto tentava manter a respiração cada vez mais ofegante.

– Se levanta daí, Nicolas, anda.

Abri os olhos depois de ouvir a voz de meu pai carregada de uma autoridade atroz, porém, temeroso, afastei aos poucos os braços que cobriam o meu rosto para então me deparar com sua figura imponente, com as mãos apoiadas na cintura, seu rosto impassível mirando-me de um modo genuinamente feroz. Uma besta prestes a atacar a vítima indefesa. O que ele estava esperando?, me perguntei para logo em seguida dar um salto da cama, tremendo dos pés a cabeça depois de ouvir uma nova ordem para que me colocasse de pé.

– Escuta aqui seu pervertido – ele se aproximou de mim e despejou mais uma vez sua mão sobre o meu rosto, mas consegui por incrível que pudesse parecer manter o equilíbrio – Na minha família nunca existiu nenhum sodomita, e não vai ser agora que vai haver um, entendeu? Eu não vou admitir essa pouca vergonha. Essa imundície… Você está fazendo isso de propósito só pra me enlouquecer… Quer arrastar o meu nome na lama, seu infeliz, diante de toda a cidade, assim como sua mãe fez com a nossa família?

Tomado de uma súbita coragem, certamente impulsionado pelo ódio que vi incendiar cada vez mais os olhos de meu pai, decidi fugir, sair correndo, mesmo sem ter a menor noção para onde ir, tão somente a convicção de que não poderia permanecer ali, pois se o fizesse, não tinha mais certeza do que ele seria capaz, entretanto ao fazer menção em correr, o velho Ezequiel, parecendo ter previsto minha inesperada reação, me segurou pelo braço, tentando me impedir de continuar minha empreitada; não desisti e lutei para me desvencilhar de suas garras, mesmo tendo ciência de que aquilo só fomentaria sua ira. Por fim, livre, o deixei para trás após seu último gesto infrutífero de me segurar pelas costas através do tecido da minha camisa.

Tropeçando em meus próprios pés e me apoiando no que via pela frente, atravessei o batente da porta do meu quarto após vó Teresa ter liberado a passagem, espremendo-se num canto.

Ofegante, ouvindo os berros de meu pai reverberando atrás de mim, alcancei o corredor e como um relâmpago eu prossegui com minha fuga, não parando nem mesmo quando minha madrasta surgiu à minha frente, esforçando-se para me impedir. Sem pestanejar parti ao seu encontro, empurrando-a para o lado com toda a força que possuía, pouco me importando se iria machucá-la, e quando finalmente cheguei à sala, acreditando que estaria livre de quaisquer outros obstáculos, me deparei com Adoniran medindo-me de cima a baixo, em completo silêncio e com um sorriso zombeteiro lhe rasgando a face. Não pretendia e nem tinha tempo de lhe tomar satisfações, inclusive por não estar surpreso com aquele seu gesto nem um pouco fraternal; por fim, ao me preparar para retomar minha rota de fuga, ouvi novamente os gritos alucinados de meu pai acompanhados de seus passos pesados, e sem saber por que, decidi me virar e qual não foi minha surpresa ao me deparar com ele já saltando na minha direção, o peso de todo o seu corpo caindo sobre o meu, derrubando-me, fazendo com que minhas costas e cabeça batessem no chão enquanto se sentava sobre minha barriga, trancando meus braços com suas pernas, começando a me desferir socos, arranhões e puxões de cabelo, além de continuar me insultando.

Acuado, não me restou mais nada além da autodefesa diante daquela reação colérica, incontrolável; a força do velho Ezequiel parecia que tinha tomado proporções absurdas e só fazia aumentar diante dos gritos desesperados de minha avó… Não consegui contê-lo, por mais que tentasse. Parecia que estava sendo atacado por uma fera completamente alucinada, cuja satisfação só seria alcançada quando matasse sua presa, até que por fim ele se pôs de pé e, ao mesmo tempo em que o fazia, apoiava todo o peso do corpo sobre o meu tórax. Senti como se minhas costelas estivessem sendo esmagadas e precisei puxar o ar com muita força para dentro dos pulmões para conseguir respirar ao mesmo tempo em que cerrei os olhos, quase perdendo a consciência, entretanto ao perceber que uma de minhas pernas estava sendo levantada, logo depois que o peso sobre meu peito desapareceu, imediatamente os abri e pude ver meu pai começando a arrastar-me para fora de casa, como se eu fosse uma criança magrela, esmirrada, não um adolescente no alto dos seus dezessete anos.

Ao passo em que buscava desesperadamente agarrar-me a qualquer coisa pelo caminho, me debatendo, flexionando a perna suspensa na esperança de alcançar as mãos de meu pai para poder soltá-la, fui sentindo as costas, cotovelos e braços sendo esfolados enquanto avançávamos pela terra batida, sempre tendo os gritos angustiantes de minha vó Teresa ao fundo. Já bem próximo do portão o velho Ezequiel decidiu largar minha perna, praticamente atirando-a para o lado para afastar-se logo em seguida, aos berros. Num esforço hercúleo, inclinei um pouco a cabeça para trás e o vi se aproximar de vó Teresa, exasperado, agitando os braços no ar com extrema violência. Sôfrego, apoiei os cotovelos esfolados no chão e impulsionei todo o corpo para o alto, projetando-o até me colocar de pé, o que consegui, de início meio cambaleante, sentindo uma dormência absurda no membro recém-libertado, mas ainda assim, mancando, me aproximei das madeiras atravessadas da parte de dentro do portão e as usei como uma espécie de bengala enquanto esfregava a perna a fim de acelerar a corrente sanguínea para livrar-me do incômodo formigamento.

Lauro. Num milésimo de segundo tive a impressão de ter divisado Lauro a minha frente, parado, com as mãos na cintura, o cenho cerrado, a região acima dos olhos tensionada, criando vincos. Segundos, nada mais que meros segundos para que o espectro desaparecesse da mesma forma que havia surgido, ou para que meu cérebro desistisse daquela alucinação…  

Fundo. Bem fundo inspirei e expirei antes de olhar para trás e vislumbrar minha avó se esforçando na tentativa de manter meu pai de costas para mim enquanto discutiam ao passo que minha madrasta e Adoniran assistiam a tudo, impassíveis e gesticulando na minha direção. De supetão me voltei, passando a mão no trinco do portão, abrindo-o, decidido a fugir o mais depressa possível, e qual não foi minha surpresa ao ver-me diante de uma plateia formada. Provavelmente quase toda a cidade de Arena estava lá reunida, imóvel, em silêncio, mesmo sem saber os motivos (eu acreditava) de todo aquele pandemônio, ouvindo os gritos de meu pai que ressoavam como trombetas anunciando o apocalipse. No mesmo instante pensei em Eva e em Donana e tentei imaginar se elas teriam passado por aquilo tudo, protagonistas de uma peça mórbida sendo encenada no teatro dos vampiros e de imediato corri os olhos rapidamente por sobre a aglomeração, não demorando a constatar a indiferença e o desprezo estampados em seus semblantes, tendo a mais convicta das certezas de que nenhuma daquelas pessoas moveria um músculo sequer a meu favor, afinal quem ousaria enfrentar a figura do pastor Ezequiel?

– Onde você pensa que vai seu infeliz?

Ao ouvir o tom grave da voz de meu pai invadir meus ouvidos, meneei a cabeça, arrebatado, a fim de escolher a melhor direção a tomar para colocar definitivamente em prática o meu plano de fuga, entretanto não cheguei nem mesmo a dar o primeiro passo, pois fui empurrado com extrema violência, e tropeçando em meus próprios pés, não tive a menor chance de me equilibrar, indo novamente de encontro ao chão, ralando ainda mais os cotovelos e as mãos ao tentar proteger o rosto.

– De hoje em diante você não é mais meu filho, seu ordinário. Não é nada meu. Metade do sangue que corre nas suas veias, infelizmente, é o mesmo da minha família. Nunca mais quero te ver. Não ouse colocar os pés de novo dentro dessa casa. Você não faz mais parte dessa família. Eu te odeio e até o dia em que Deus levar minha alma desse maldito mundo vou maldizer a hora em que você nasceu…

Diferente da reação de autodefesa que vinha tentando manter, decidi não mais resistir; talvez por fraqueza, ou desespero para que tudo acabasse logo, simplesmente não resisti, permaneci caído, retraído, não demorando a sentir o metal frio da fivela do cinto de meu pai bater forte no meio das minhas costas, me dando a impressão de que estava sendo partido ao meio. Naquele momento conclui que já não tinha mais forças para chorar. Juntei meus braços e pernas e me fechei, como uma concha, enquanto o velho Ezequiel continuava a me bater.

– Pelo amor de Deus, Ezequiel. Você vai matar esse menino – ouvi um novo clamor na voz de minha vó – Ele é seu filho, homem de Deus, não um animal pra você tratá-lo desse jeito. Onde está toda a religião que você prega? Que você diz trazer em seu coração?

Senti uma das mãos de meu pai enlaçando o meu pescoço e em seguida com a outra me forçando a virar o rosto na sua direção para encará-lo. Sem escolha, respondi numa reação moto contínuo, não demorando a me deparar com seu punho se aproximando, rápido, me cegando por alguns segundos após desferir um soco no lado esquerdo da minha face. Um gosto de sangue e muco tomou conta da minha garganta de imediato e então voltei a cobrir o meu rosto com as duas mãos ao mesmo tempo em que uma crise de tosse tomava conta de mim, me forçando a puxar o ar com toda força para dentro dos pulmões.

O metal frio da fivela do cinto novamente, só que atingindo minha nuca. Sucumbi e deixei escapar um grito baixo, abafado, encoberto pelas minhas mãos para em seguida sentir meus cabelos sendo puxados. Não foi difícil entender que meu pai queria que eu ficasse de pé e com muita dor diante da pressão sobre o meu couro cabeludo, que mais parecia estar sendo arrancado, o atendi e aos poucos, tomado por um medo irracional, fui abrindo os olhos e logo me vi diante de seu olhar transtornado. Uma aversão palpável e assustadora se estampando dentro deles.

– Você vai embora dessa casa, mas não vai levar nada. Nada aqui te pertence. Nem mesmo a roupa do corpo.

Mal acabou de despejar sua sentença, o velho Ezequiel agarrou com força a barra da minha camisa e a puxou para cima, tirando-a sem demora, chegando mesmo a me arranhar um pouco. Em seguida suas mãos chegaram à minha cintura, no elástico da bermuda que estava vestindo e a abaixou até abaixo do meu joelho, junto com a minha cueca, forçando-me a tirá-las em definitivo, me deixando completamente nu. Comecei a tremer, aterrorizado e coberto de vergonha enquanto com as mãos tentava esconder minhas partes intimas, evitando olhar para a plateia formada a poucos metros de onde eu estava.

Um silêncio sepulcral pairou no ar.

– Vá já lá dentro e pegue um lençol pra cobrir o seu irmão, Adoniran.

O pedido de minha avó infelizmente soou em vão diante da despótica autoridade de meu pai.

– Não ouse dar um passo sequer, Adoniran, ou então você vai fazer companhia pra esse degenerado.

Humilhado, não tive forças para erguer a cabeça ao mesmo tempo em que o tremor do meu corpo só fazia aumentar; Roguei a Deus que me fizesse parar de respirar naquele exato instante…

– Vamos, moço. Venha com a gente.

Um tecido bastante macio tocou minha pele, cobrindo todo o meu corpo enquanto busquei reconhecer a voz feminina que se dirigia a mim ao mesmo tempo em que tentava imaginar quem teria tido coragem para se aproximar…

– Vamos?

Só depois que um braço envolveu os meus ombros tomei coragem para levantar os olhos. Era Salomé Esperanza e ao seu lado uma de suas meninas… Receoso, corri os olhos sobre o seu semblante. Estava carregado de ternura, algo que jamais imaginei encontrar naquela mulher, que levava uma vida tão errante, sinônimo da perdição e detentora do baluarte de todos os males do inferno, caso este se abatesse sobre a Terra… Suspirei e fitando-a em completo silêncio, tentei preveni-la do perigo por estar me ajudando, porém ela sorriu e com um tom de voz bastante alto, talvez o suficiente para que todos a escutassem, e de certo o meu pai, disparou um tanto amarga, um tanto desafiadora, passando a encarar o seu entorno.

– Os escribas e fariseus levaram à presença de Jesus uma mulher surpreendida em adultério e, fazendo-a ficar de pé, no meio de todos, lhe perguntaram o que fazer com aquela pecadora, já que a lei de Moisés mandava apedrejá-la.

Senti meu coração disparar. O que madame Esperanza estava fazendo? O velho Ezequiel iria trucidá-la por estar ousando proferir aquelas citações…

– Jesus permaneceu em silêncio e como os escribas e fariseus insistiram na pergunta, ele se inclinou e escreveu na terra com o dedo e em seguida se levantou, respondendo: aquele que dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro a atirar a pedra.

Nenhuma resposta, apenas murmúrios indecifráveis pulularam ao meu redor. Nem mesmo o som da voz de meu pai se fez presente e então voltei meu rosto para baixo e me permiti ser levado. Enquanto caminhava na direção do bairro do Bico Doce, uma angústia invadiu minha alma ao saber que estava deixando para trás a casa onde cresci, deixando para trás minha avó sem ter a certeza do dia seguinte, se algum dia eu conseguiria retornar para lá… De repente uma raiva insana também cresceu dentro de mim ao ser tomado pela imagem de Dionísio e a certeza de que ele estaria no meio da multidão, observando de perto o estrago que havia feito…

   

 

 

 

 

 

– Senhor? Senhor?

Ouço longe uma voz que insiste e tento, sem sucesso, abrir os olhos. Minhas pálpebras se agitam rapidamente, posso sentir. Meus pensamentos flutuam e flutuam durantes longos minutos, ou segundos? Meu cérebro parece que deu um nó…

– O senhor está bem? Gostaria de uma água?

Novamente a voz e então, por incrível que possa parecer, sem grandes esforços eu consigo abrir os olhos.

– Desculpe – respondo ainda meio desorientado, inicialmente para o nada, esquecendo-me, por alguns instantes, onde estou, porém ao olhar para o lado não demoro a identificar uma das comissárias de bordo que havia me recebido – Sonhando… Distraído… Estava distraído, estava sonhando… Uma água… Uma água, isso mesmo. Apenas uma água…

Inclino a cadeira para frente e apanho o copo descartável que me é servido. A comissária sorri de modo amigável e logo se afasta. Ato contínuo sorvo a água ao passo em que meneio a cabeça na direção do corredor. Do outro lado, onde também estão duas cadeiras vazias, uma senhora está, como eu, sentada ao lado da janela. Mais alguns goles no copo descartável e volto a reparar, discretamente, na tal mulher: está com os olhos fechados e as mãos cruzadas sobre as pernas. Tenho a impressão de que está rezando… A cena me faz recordar imediatamente minha querida vó Teresa, sua estatura baixa, a cara miúda, sempre usando o cabelo grisalho penteado para cima, apertando-o sobre a cabeça num coque bastante rígido e que jamais abandonava suas orações, sua rotina religiosa, suas imagens, suas novenas e as missas, passando pela vida alimentando um eterno exercício de paciência ao suportar os infortúnios que sua crença proporcionava no seio de sua própria família.

Respiro fundo e reclino minha poltrona um pouco para trás, novamente, enquanto contemplo o vidro da minha janela, constatando que o avião não levantou voo.

A aproximação de Arena está me trazendo efeitos colaterais que não sei se vou suportar… Dizem que devemos antecipar a dor para neutralizá-la, mas não sei se é possível. Não quero mais lembrar as coisas ruins que me aconteceram. É só isso o que tenho feito nesses últimos seis meses e nada do que eu sinto, mudou.

Olho para a minha janela e permaneço assim, quieto, sem me mexer, apenas observando uma nesga do céu azul, límpido, que timidamente toma conta da parte superior do vidro oval. Aramis me disse uma vez, depois de ter ouvido a minha história, caso eu não me esforçasse para tentar esquecer, ou até mesmo perdoar, as chances de me tornar uma pessoa triste, rancorosa e amargurada seriam imensas…

– Senhor? Queira retornar o seu assento à posição vertical e fechar o cinto de segurança, pois já iremos decolar.

Agora ouço uma voz bem próxima a mim, também gentil, porém grave e aveludada. Volto-me e encontro um rosto jovem, masculino, me fitando com um sorriso singelo e com a mão direita estendida, ao mesmo tempo em que sinaliza com os olhos na direção do copo descartável que seguro. É um comissário de bordo. Não penso duas vezes e lhe devolvo o sorriso e o copo vazio ao passo em que acato sua instrução me permitindo mergulhar num êxtase profundo. De onde saiu esse deus grego, me pergunto, seguindo-o com o olhar discretamente enquanto ele se afasta para fiscalizar os outros assentos. Minha ansiedade e meu estresse contra o fogo que nunca se apaga! Que rosto! Que voz! Que pele! Tenho certeza que ele não tem mais do que 27 anos, concluo suspirando admirado ao mesmo tempo em que tiro o boné e os óculos escuros num gesto rápido, tentando desesperadamente fazer desaparecer o estilo ermitão que eu decidira ostentar desde que sai de casa pela manhã. Bem feito! Por que não coloquei uma regata ao invés dessa camisa social cinco vezes maior que o meu tamanho? E essa barba por fazer? Talvez se eu for ao banheiro… Merda! Esqueci que meu aparelho de barbear está junto com a bagagem despachada…

O avião decola finalmente.

Adoro a breve sensação de vertigem somada ao prazer de estar deixando o chão sem me locomover. A visão da baia de Guanabara é sempre inspiradora, chegando ou saindo da Cidade Maravilhosa, e nenhuma outra se compara a toda essa sua exuberância, nem o extraordinário deserto do Atacama com suas paisagens que nos remetem a sensação de estarmos em outro planeta, nem as deslumbrantes planícies cobertas de neve dos Alpes Franceses, nem mesmo, por incrível que possa parecer, as encantadoras águas do mar do Caribe… Parece que foi ontem que cheguei por aqui, descendo da boleia de um caminhão, tomado pelo medo, desesperado e perturbado ante a expectativa do desconhecido, sem saber o que me aguardava…

Sim. Jamais me esquecerei de todas as agruras as quais tive que enfrentar… Cada canto do centro do Rio de Janeiro sempre me lembrará de cada uma delas… Os lugares pelos quais eu passei minhas noites, dividido entre o sono e o medo; as pessoas que tive a alegria de conhecer, outras nem tanto; os becos dos quais eu precisei fugir para não me submeter a caprichos sexuais de homens que acreditavam poder comprar a dignidade de pessoas que não tinham para onde ir… A caridade de alguns seres humanos… O Mosteiro de Santo Antônio, aonde por três vezes na semana eu me lavava com água gelada, num tanque encardido enquanto minhas únicas peças de roupas adquiridas por doação secavam ao sol junto com minhas duas cuecas puídas e quase sem elásticos… O albergue que me abrigou…

Hoje, quase trinta anos depois, olho para trás e me pergunto como consegui forças para levantar minha cabeça da lama e da humilhação e chegar aonde cheguei. Por mais determinação que meu coração magoado e minha alma revoltada me dessem, carregando o fardo da tristeza e do rancor por jamais conseguir perdoar, alimentando lembranças e pensamentos negativos sobre mim e sobre o meu passado, no fundo eu duvidava da minha capacidade de seguir em frente…

Ainda duvido…

Alguns traumas são tão avassaladores que nos controlam a vida inteira.

 

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