A crise mundial

O tempo passou. A crise mundial foi, enfim, oficialmente declarada. Instalara-se com toda força. Necessidades básicas pressionavam a população mundial conduzindo-a ao limiar da sobrevivência. Como consequência, atos de solidariedade e altruísmo tornavam-se cada vez mais raros. Prato vazio, fé, moral e vontade fracas. Tudo fora racionado, até a gentileza. Padarias, mercadinhos e supermercados exibiam avisos como esse:

Prezado cliente

Em cumprimento do Termo de Ajustamento de Conduta, assinado entre o Ministério Público e a ACCR, este estabelecimento é obrigado a realizar venda racionada de alimentos e bebidas. Estamos sempre à disposição para melhor atendê-lo. Assinado: A diretoria.

A ira das pessoas começou a ficar difícil de ser contida. Mensagens apaziguadoras do governo em cadeia nacional atiçavam mais a fúria daqueles que já tinham perdido a confiança num futuro melhor. O centro das atenções continuava sendo os ressuscitados, ou seja, a causa da situação que fizera a estabilidade desandar por completo.

O caos provocado pelo fenômeno somado a privação, geraram uma espécie de sociopatologia. Angústia, insatisfação e incertezas pairavam na atmosfera das cidades.  Quando tais ingredientes se combinaram, coisas boas deixaram de acontecer.

Em protesto à crise, integrantes de um grupo antirressurreição do Rio Grande do Sul fecharam o aeroporto da capital. Isso devido ao boato de que trezentos ressuscitados chegariam à cidade para serem conduzidos à reserva. Viriam de avião, já que os trens já não tinham espaço para conter a nova onda. Soldados da ACCR orientavam os passageiros a deixarem o aeroporto. Aviões eram impedidos de decolar ou aterrissar durante o procedimento de transferência. Os protestos aumentaram e com eles, atos de vandalismo.

—Este tipo de protesto é uma afronta ao país. O governo deveria ter pulso firme para deter essa gente. Como se não bastasse toda a dificuldade que o mundo está passando… – Disse um comandante da linha aérea mais importante do país.

Focos de protestos se multiplicavam e um grupo da Bahia passou a espancar e queimar ressuscitados em frente às câmeras de televisão. As imagens repercutiram em todo o mundo. O grupo propagava a ideia de que estes seres deveriam ser banidos da face da Terra:

“Eles retornaram pelas mãos do diabo. Deus não faria a gente passar por tanta dificuldade. Olhe o mundo como está. Isso é coisa de Deus? Claro que não. Isso é obra do coisa ruim.” – Dizia uma placa colocada diante da fogueira onde um ressuscitado queimava aos gritos.

Cerca de cento e quinze ressuscitados, entre adultos e crianças, foram mortos. Uma verdadeira imolação. Algo que se tornou prática comum apesar da força pública condenar. Agentes da ACCR não se mostravam dispostos a incriminar ninguém. Transformar ressuscitados em cinzas passou a ser atividade valorizada entre os integrantes dos grupos antirressurreição. Na Nova Zelândia uma avalanche atingiu um acampamento militar. A neve soterrou entre cem a cento e cinquenta soldados em treinamento naquela região. Antes mesmo do grupo de resgate chegar, os habitantes locais capturaram os corpos e os incineraram. Enquanto ardiam em chamas, homens, mulheres e crianças, unidos, entoavam repetidamente:

“O fogo é a solução, o fogo é a solução…”

Havia sorrisos de satisfação estampados naqueles rostos. Eles desejavam a limpeza do mundo. E num mundo mergulhado em descrença e falta de valores morais, havia apenas uma coisa que todos eram unânimes: o dinheiro era importante. A taxa de emprego havia diminuído. Ninguém comprava como antes. Contudo, as empresas de matéria-prima apostavam na crise. Teriam tempo o suficiente para reporem seus estoques. As previsões estatísticas indicavam que voltariam a produzir em plena potência. Contudo, a mineração já havia esgotado as reservas naturais de metais preciosos e pedras.

O diamante, por exemplo, há muito disputado, também esgotara. Existia uma demanda reprimida de bilhões de euros já que seu uso passara de simples peça de adorno, para aplicações mais importantes na área de supercondutores, satélites, nanotecnologia, e para as áreas médica e agropecuária.

Diante de tanta conturbação, surgiu de fato o partido político que viria gerar uma profunda transformação, o PSH (Partido de Segurança aos Humanos). E chegava na hora certa, com a promessa de evitar indignações e aliviar as pressões impostas pelos governantes que, segundo eles, negavam tratar do assunto como a potencial causa do extermínio da humanidade. Os membros do PSH se indignavam com a conduta leviana dos atuais governantes, e isso tinha de acabar.

O partido contava com o apoio de políticos veteranos dissidentes, que sabiam que a prospecção ideológica do PSH ocorreria em função da luta para o reaquecimento da economia e a geração de empregos. Mas a ideologia prometia ir além: a utilização da tática do medo para angariar votos.

As eleições no Brasil para presidente e governadores estavam se aproximando. O partido do PSH optou por enfatizar a falta de atitude do governo anterior em relação a crise econômica e a superpopulação para galgar o objetivo de ter um presidente eleito. O seu futuro candidato já havia sido nomeado: Orozimbo Dias que passou a alertar que o Brasil sofreria ataques especulativos no mercado internacional e poderia implodir se continuasse usando de política frouxa para lidar com coisas de tamanha importância.

Durante um discurso na sede do partido, Orozimbo disse que os ressuscitados não nos davam outra opção senão a de concluir que o nosso mundo fora invadido. E que tal invasão nos aterrorizou e está destruindo a economia mundial. Mas, se eleito, transformaria o “limão em limonada”. Disso poderiam todos ter certeza.

Seus colegas de partido o aplaudiram durante dois minutos seguidos. Todas as pesquisas confirmavam que Orozimbo Dias não só devia vencer a eleição no primeiro turno como seria o presidente mais votado na história do país. A estratégia de explorar o medo da crise e da superpopulação nunca fora usada antes. Aquilo era inédito para o país e supria emocionalmente o que agora se torna o terror de todo o brasileiro, seja ele a favor ou contra a ressurreição.

Líderes mundiais observavam de perto a candidatura de Orozimbo e esperavam que ele tivesse condições de não só manter o crescimento econômico do país como encontrar uma forma criativa de lidar com a problemática dos ressuscitados.

—A eventual vitória de Orozimbo Dias colocaria muitos países do continente europeu e americano de joelhos. – Disse o atual presidente da Venezuela.

—Orozimbo conhecia muito bem os problemas causados pelos ressuscitados. Ele surgiu dos grupos de rua que protestavam e zelavam pela segurança dos humanos. Ele sabe o que faz. – Ressaltou o primeiro-ministro inglês.

Entretanto, o discurso antirressurreição de Orozimbo, instigou uma reação contrária nos esparsos grupos de proteção aos ressuscitados. Depois de receber críticas de alguns partidos, de analistas políticos e até de analistas financeiros, foi aconselhado pelos conselheiros do partido a mudar o teor de sua fala. Enfatizou que seria possível, em seu governo, lidar com o fenômeno e que provavelmente, nem Deus nem o diabo previram que ele teria a resposta para a crise que um dos dois criou. O comentário foi que Orozimbo nada mais tinha do que uma simples promessa eleitoreira.

O PSH rebateu as críticas alegando que um projeto seria apresentado em breve, e que, também, não só tiraria o Brasil, mas o mundo dessa miséria. E mais: que nossas vidas seriam efetivamente restauradas. Ele tinha a solução.

O rebate caía como uma luva já que a crise causada pelos ressuscitados tornou milhões de consumidores inadimplentes. O não pagamento de mercadorias financiadas batia o recorde e o aperto dos bancos de crédito causava nada mais que o esvaziamento das lojas. O mercado mergulhava num verdadeiro limbo. Para resolver o problema, muitos consumidores optaram por uma solução prática: repassar a mercadoria e a dívida à outra pessoa. Na maioria das vezes até de graça.

“O mercado financeiro está de cabeça para baixo. A facilidade que os bancos promoveram, reduzindo muito os juros e ampliando demais as condições de financiamento fez a inadimplência subir. O problema é que ninguém esperava por uma explosão populacional.” – Disse o presidente da Associação Brasileira de Bancos (ABB), Nilton Ribeiro Peres.

E realmente o mundo estava de pernas para o ar. A cada dia, mais e mais ressuscitados emergiam. O trabalho de mantê-los confinados e controlados exigia um empenho técnico e financeiro acima do normal. Até a economia chinesa desacelerou. Suas exportações caíram e as importações, principalmente as de produtos alimentícios tiveram de aumentar.

Já a Grécia cortou o orçamento até de seus museus. Talvez aguardassem a ressurreição de Aristóteles ou Arquimedes para auxiliá-los a sair de tamanha confusão. A crise simplesmente arruinou a herança cultural grega. Peças históricas foram furtadas, sítios arqueológicos saqueados e o mercado negro em plena prosperidade.

“O berço da civilização se aprofunda no mar da vergonha. É incrível ver como um país, considerado um dia O Império Ocidental, e que se gabava de seu povo elitizado, hoje se reduz a um punhado de cacos chafurdados por oportunistas ladrões.” – Comentou o presidente do Fundo Monetário Internacional (FMI).

“Não, não é isso que o mundo quer da Grécia. O mundo quer o seu retorno ao seu brilho áureo de intelecto e força.” – Disse emocionado o presidente do Brasil em entrevista dada a um importante jornal.

“Deveríamos, por respeito àqueles que um dia estiveram entre nós, prestar-lhes um grande reconhecimento pelo mundo que ajudaram a construir. Temos de ser-lhes gratos por tudo o que fizeram. Os ressuscitados gregos devem ser respeitados.” – Defendeu em tom agressivo o presidente da Argentina em entrevista a uma importante agência de notícias.

A cada declaração sobre a crise, mudanças e novas regras somadas à onda de inadimplências, mais um estopim era aceso nos grupos antirressurreição. E eles, além de também demonstrarem suas opiniões com agressividade, já se encontravam infiltrados na política e até no governo. Os governantes não viam mais como cortar o mal pela raiz. A ACCR fora consultada inúmeras vezes. Até o serviço de inteligência contou com agentes especiais infiltrados, mas pouco ou quase nada fora revelado. As ações dos integrantes dos grupos eram bem esquematizadas e sigilosas. Nenhuma informação era trocada por e-mails ou telefonemas.

Atualmente, os integrantes dos grupos infiltrados chegam a barrar projetos de lei e influenciam nas votações de senado. Estimulam ondas de violência e monitoram tudo o que é feito ou discutido em reunião de deputados. Fiquei sabendo de um projeto de extermínio em massa que já tem sido cogitado pelo grupo. Facções criminosas deveriam assumir a ação sem mesmo terem o conhecimento de tal ação.

—Eles criaram uma fundação legal para lavagem de dinheiro cujo propósito é contrabandear armas e extorquir políticos e empresários. – Revela um integrante dissidente que não quis se identificar. E complementa: – Orozimbo Dias, aquele filho da mãe, é o representante número um dos grupos antirressurreição.  Ele chegou lá com a ajuda dos infiltrados que vão servir de cabos eleitorais assim que iniciar a candidatura presidencial. O PSH deveria ter nascido como um partido que ajudaria a encontrar uma solução para o país, mas não é bem assim que funciona.

Para o dissidente, a eleição de Orozimbo seria uma farsa. Algo manipulado por um sistema acima do sistema que nós desconhecemos. Estaríamos, segundo ele, sendo manipulados por uma força maior para se atingir algum objetivo oculto.

Alguns poucos dissidentes corajosos foram motivados a procurar os meios de comunicação.  Assim o fizeram quase como um desabafo, mas com receio de serem desacreditados por não possuírem provas concretas de seus testemunhos. Alguns deles foram cassados, capturados e mortos pelos próprios grupos. Outros se escondem, atormentados por pensamentos obscuros do que viram e do que iriam ver num futuro próximo.

Um deles, o primeiro a recusar a tomar partido das torturas e imolações de ressuscitados, por pouco não foi pego depois que salvou uma ressuscitada de ser violentada e dissecada para o mercado de órgãos. Acusou o próprio conselho federal de medicina de acobertar o mercado paralelo. Conseguiu se salvar quando disse que levaria a moça para usá-la como bem entendesse. Dessa forma foi liberado sem maiores questionamentos. Minutos mais tarde ele a liberou.

São poucos os dissidentes, mas ajudam a engrossar o caldo junto a grupos pró ressurreição, os quais buscam amparo nos direitos humanos. Tais grupos se baseiam em argumentos bíblicos, filosóficos e humanitários no intuito de colocá-los em forma de carta, cuja tentativa é a de sensibilizar a Organização das Nações Unidas quanto a necessidade de se ter uma ação mais efetiva contra os grupos antirressurreição.

Segundo os grupos pró ressurreição, o número de cartas enviadas chegava a oitenta de duas, uma delas contando com mais de duas mil assinaturas a favor de leis que reconheçam os ressuscitados como pessoas comuns. Não houve nenhuma resposta. Apesar da premissa da ONU ser: “A fé nos direitos fundamentais do homem…” e basear-se na declaração universal dos direitos humanos de mil novecentos e quarenta e oito, parece que isso não se aplicou àqueles que já se foram e ressurgiram. Deixaram, portanto, de serem gente.

A própria constituição brasileira, segundo uma pessoa bastante letrada, fora vetada por uma lei. Os ressuscitados são considerados mortos. Participante assíduo de um grupo pró ressurreição, alegou que as letras eram claras quando diziam: …no artigo quinto, caput, pelo qual se garante a inviolabilidade do direito à vida, e o artigo duzentos e vinte e sete que diz: “… é dever da família, da sociedade e do estado assegurar a criança, com absoluta prioridade, o direito à vida…” Além de colocá-la a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência…  Tudo o que é ruim.

Porém, aos ressuscitados isso não se aplicava, pois, quando em vida, na sua primeira vez, já desfrutaram totalmente e plenamente de seus direitos os quais perderam ao falecerem. E enquanto as leis de proteção nem sequer eram cogitadas, o mundo via de braços cruzados um massacre contínuo. Era um mal-estar constante, individual e coletivo, fermentando uma sociedade pessimista e permissiva. A intolerância que levava à destruição de algo que não se entendia. Somente o que era tradicional era o certo. Nada de diferente tinha o direito de existir.

A humanidade estava diante de um inquietante fenômeno que mexia com as bases fundamentais da razão e tirava a capacidade de raciocínio em bases consideradas absolutas e imutáveis. A fé fora abalada, fé dos narcisos que sabem tudo e que tudo explicam. Nada existia além do próprio umbigo.

O custo-benefício do fenômeno chamado morte fora substituído pela morte da morte. Para isso não podia haver lei, e que, os que representavam aquilo deviam pagar, senão com a morte, pelo menos com o sofrimento no seu mais alto grau. Assim pensava a humanidade, a infantil humanidade.

O Homem não decidia mais? Teria a natureza assumido como as coisas deveriam ser? O que fazer com a lógica e o racionalismo? A inveja do mortal diante da eternidade. Criaturas que surgiam da morte, que não tinham voz, às centenas eram maltratadas. E se a morte lhes era dada novamente, caminhariam a passos certos para o novo holocausto.

O que se sabia era que uma pequena e inesperada ação moveu a ONU no sentido de auxiliar os grupos pró ressurreição. Secretamente a organização aprovou o envio de observadores para monitorar as reservas. Fora constatado abusos cometidos tanto por parte de grupos antirressurreição quanto por parte de soldados da ACCR. Mas pouco a ONU pôde efetivamente fazer. Somente um relatório em tom de advertência foi emitido e enviado diretamente à Presidência da República e aos demais países que prometeram agir. Quando perguntado sobre sua opinião em relação a posição do atual governo, Orozimbo Dias reagiu dizendo que o partido era terminantemente contra grupos de torturas.

O presidente brasileiro convocou para uma reunião em seu gabinete o general Kauffmann, para que tomasse conhecimento do relatório:

—Precisamos amenizar os conflitos. Esse tem sido o objetivo do exército brasileiro numa ação conjunta com a ACCR. Estamos apurando o envolvimento de alguns soldados, por nós considerados covardes de antemão e que, caso seja comprovado algo contra eles serão julgados, e se condenados, não pertencerão mais à força. Mas tudo deverá ser minuciosamente investigado. Acreditamos que sejam apenas casos isolados. – Comentou o general acompanhado do coronel Petracca Melo que aproveitou para sugerir que as investidas contra algumas reservas, provavelmente foram provocadas por grupos isolados, mas que portavam ilegalmente armamento pesado utilizado somente pelas forças armadas:

—O tipo de bala usada contra os ressuscitados é a de explosão pós impacto. Ela explode dentro do corpo. Isso só pode ser fruto de contrabando.

Relatos de feridos dão uma outra impressão. Alguns descrevem investidas contra os ressuscitados e que muitos eram usados como alvos vivos, por simples diversão. Já alguns descrevem rotinas de tortura.

Uma família de ressuscitados, pai, mãe e duas filhas, tinham acabado de tomar o café da manhã na reserva do Rio Grande do Sul, quando um grupo de cinco homens encapuçados arrombaram a porta do alojamento, os renderam, ataram as mãos do pai ressurreto. Ele suplicou que não fizessem mal às moças e à esposa. Ele foi arrastado para fora até o muro que delimitava a reserva e começaram a espancá-lo violentamente. – Contou o ressuscitado ao coordenador da reserva:

—Aconteceu de repente. Minhas filhas e minha esposa viram tudo. Depois eles foram embora rindo, como se nada tivesse acontecido. – Relatou o ressuscitado com dificuldades de articular as palavras devido aos traumas na mandíbula inferior.

Dentre vários tipos de torturas e ataques, o que mais chamou a atenção foi o, assim apelidado: aperta tórax. Tratava-se de um aparelho que comprimia o peito até quase quebrar os ossos. Depois batiam nas costas da vítima para que voltasse a respirar.

Muito embora os ressuscitados se regenerem das contusões e até das dilacerações, eles sentem dor e sofrem. Quando questionados sobre tais atrocidades na reserva, os soldados, agentes e fiscais insistiam em dizer que nunca presenciaram nada:

—Acho improvável que isso ocorra por aqui. Estamos vigilantes vinte e quatro horas do dia. – Disse um dos soldados que era sentinela dos muros da reserva.

No entanto, um dos fiscais que não quis se identificar disse que alguns ressuscitados entravam em plena condição física. Passados alguns dias, apareciam com feridas profundas. Quando indagados a respeito, eles simplesmente se calavam.

Um deles relatou que fora forçado pelos soldados a espancar o próprio companheiro de quarto. Depois deitou a vítima de barriga no chão com as pernas dobradas. E passou a golpear os pés com cassetete até induzir o desmaio. Os soldados faziam apostas para ver em quanto tempo o ressuscitado recobraria os sentidos.

O governo brasileiro foi alertado. Um relatório acabou sendo entregue aos senadores e após vinte dias de apuração, o presidente da ACCR renunciou ao cargo. Quando interpelado sobre a renúncia, ele simplesmente se justificou dizendo que estava cansado demais para lidar com fofocas populares, e que, sem citar nomes, sabia que muita coisa ainda iria acontecer:

—Mas ao que o senhor se refere? – Perguntou os jornalistas. Com um sorriso sinistro no rosto respondeu:

—Vocês verão em breve. O que se sabe, enfim, é que nunca o ser humano chegou ao ponto de tamanha insensibilidade. Os freios da moral foram liberados. Agora, ninguém mais segura a carroça. – E partiu sem dizer mais nada.

Um famoso sociólogo sul-americano, Gurgel Borges Camargo, avaliou o comportamento das pessoas diante do evento da ressurreição. Sua entrevista foi veiculada pela TV Cultura, no programa Roda Viva. Ele disse que diante de um fenômeno do qual o ser humano não tem controle, e diante de uma catástrofe iminente, torna-se até natural que a condição patológica social, antes embutida na mais profunda camada subconsciente (uma herança do nosso passado selvagem), agora surja com força, pois as travas punitivas, como as leis reguladoras de comportamento, já não se aplicam neste caso. Segundo o sociólogo, devemos lembrar que somos todos violentos por natureza. Foram as guerras e os massacres que imprimiram mudanças na história de nossa evolução. Na realidade, as leis não foram criadas somente com a finalidade de punir o infrator, mas também para lembrar que todos nós somos infratores em potencial. As leis representariam uma coleira no pescoço que nos controla. Porém, numa situação como a que estamos vivendo, os porões da mente humana se abrem, e é de lá que eclodirão todos os tipos de demônios.

Um dos entrevistadores, o chefe de edição da Folha de São Paulo, Agostinho Gomes, fez a seguinte pergunta:

—Como o senhor vê a situação atual? A população mundial está quase duplicando, além do racionamento de alimentos etc. Há como mudarmos isso, ou melhor, nos adaptarmos de forma equacionada?

—Não. Não temos como mudar isso no momento. Mas tenho a certeza de que uma solução será encontrada. A história mostra que foi da situação caótica que muitas nações se reergueram. Em breve uma ideia brilhante surgirá. O que ocorre é que todos os governos do mundo estão sob forte pressão popular. E isso não é bom. Movimentos revolucionários estão surgindo. Disso devemos nos precaver.

A entrevista deu muito o que falar. Inclusive os telespectadores enviaram centenas de mensagens eletrônicas pedindo sugestões sobre como investir melhor e até como se tratarem psicologicamente para lidar com a situação.

Uma das mensagens dizia o seguinte:

“Será que o futuro candidato a presidente Orozimbo Dias conseguirá lidar com as oscilações do mercado mundial? Se aqui já está tão difícil…”

O sociólogo inclinou levemente a cabeça, esfregou a mão na testa e respondeu:

—Tive a oportunidade de conversar com os candidatos à Presidência da República. Todos pareciam convictos quanto a questão de atacar o problema com o aumento de produção. Mas confesso que não tive boa impressão do candidato Orozimbo Dias. Não sei bem dizer, mas ele pareceu ter uma estratégia diferente e que preferiu não revelar. Como sociólogo, acho que um candidato que almeja governar um país, deve ser transparente. Não no sentido de desaparecer feito fantasma quando questionado sobre algo importante, mas no sentido de ter ideias claras sobre o que fazer numa situação tão difícil.

Um dos jornalistas do programa contra-argumentou:

—Tive um encontro com Orozimbo Dias em Brasília. Pareceu-me bastante ambicioso. Ele me disse que possui planos que proporá à ACCR no sentido de solucionar não só a situação brasileira, mas a situação do mundo. Eu o achei otimista demais. Bem, quem sou eu para duvidar, não é mesmo?

E o Roda-viva terminou ao som de risadas irônicas. Dúvidas importantes ficaram no ar. E a principal delas: O que fazer? O que pensar? A reserva do Sul estaria realmente servindo para a capacitação dos ressuscitados ou o local seria apenas um depósito de corpos? Que solução poderia existir para mudar a situação?

Os G vinte se reuniram novamente para discutirem tais questões e mais uma vez não chegaram a nenhuma conclusão. Pensou-se em fortalecer o caixa do Fundo Monetário Internacional. Porém, frente ao ambiente hostil mundial, a diretoria do FMI alertou que este não seria o momento adequado. Empréstimos numa situação de crise global, colocaria todos em risco maior, pois, nenhum país possui garantias de que conseguirá pagar.

Muitos líderes de governo criticaram a decisão do FMI. A decisão sobre o empréstimo foi postergada. Líderes dos G vinte iriam retomar a conversa em aproximadamente trinta dias no México.

Enquanto isso, estudos nas universidades brasileiras apontavam para os novos avanços genéticos para aumentar a produção de alimentos com o mínimo de desperdício causado por pragas e alterações climáticas. As descobertas levariam o Brasil à posição do maior fornecedor de alimentos do mundo. Países europeus, árabes e asiáticos protestaram contra tal possibilidade. Alguns insistiram na abertura de patentes por tratar-se de uma situação emergencial e que ninguém se sentiria à vontade de ficar nas mãos de um único fornecedor. O ministério de relações exteriores rebateu as críticas alegando que o Brasil tem o compromisso moral de ajudar todos os países, mas que não renuncia a suas descobertas. E também não desistirá de elevar sua receita, já que o país também sofreu retaliações num passado próximo e nem por isso emitiu sequer uma nota de insatisfação contra países que se comportaram dessa maneira. No entanto, a eleição para presidente se aproximava. Será que Orozimbo manteria esta mesma postura para garantir a soberania nacional?

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