O Capitão Silva nunca imaginou que um dia cataria lixo pelo espaço. Quando trabalhava nas instalações de Houston, desenvolvia projetos sustentáveis na Amazônia. A praga fizera com que viesse para a Júpiter III e nunca mais voltasse. Era bem verdade que ninguém voltou. Vivia no espaço com seus colegas há mais de dez anos.

Desde o infortúnio com o vírus, passou a recolher coisas na órbita terrestre para que pudessem ser reaproveitados em projetos de sustentabilidade da Júpiter III. Os materiais eram escassos na Estação Espacial, e ninguém queria descer ao Planeta para buscar por minerais. Sentia-se um reciclador; uma evolução dos catadores de lixo do antigo império, como costumava dizer. Se sua mãe estivesse viva, perguntaria: Pra que tanto estudo se acabou no lixo? O Capitão Silva daria de ombros para sua ignorância torpe. O que importava para os cientistas da NASA era a sobrevivência da raça humana. Algo que sua mãe não entenderia.  

Com o sol batendo nas asas de sua XP631-7 (os aparelhos de rastreamento obsoletos perdiam seu eixo de direção com a  luz, o que dificultava o recolhimento dos objetos no espaço), o Capitão Silva precisava aprumar os olhos e contar com a sorte para reconhecer alguma coisa que prestasse. Isso o deixava de mau humor pelo resto do dia. Não gostava de perder tempo e insumos com bobagens. A objetividade fazia parte do pacote aeroespacial para os novos tempos.  

Mesmo aborrecido com sua má sorte, viu algo grande vindo na sua direção. Estava fora da rota de costume, quase perto da atmosfera da Lua. Ninguém se aventurava por aquelas bandas há muito tempo. O Satélite da Terra tinha fama de ser agourento. Uma besteira que não era compartilhada pelo Capitão Silva. Não transitava por lá porque achava desnecessário vasculhar aquele espaço. O Lua não tinha segredos  para a NASA. Era apenas uma rocha sólida planando sobre a Terra. Mas o que planava sobre ela agora era grande, maior que qualquer satélite que vira nos últimos dois anos.

_ Reconhecimento padrão, Mary. _ O BOT feminino do Capitão era uma exceção entre os astronautas. A maioria preferia os masculinos pela sonoridade da voz.    

_ Afirmativo, Senhor. Objeto feito de alumínio com alto teor de oxigênio no seu interior.    

_ Especifique, Mary. Preciso de dados.

_ É uma cápsula de sobrevivência.

_ O quê? _ O Capitão Silva deixou cair a maçã que estava comendo. _ Por que não me disse isso antes.

_ O Senhor não perguntou.

_ Às vezes tenho vontade de extirpá-la do meu cérebro!

_ Eu entendo, Capitão. A despeito do que disse, não viveria sem mim.

_ Convencida.

A nave cargueiro se aproximou do objeto sobre à luz forte do sol.

_ Meu Deus! _ O astronauta refez os cálculos para acoplagem. _ Preparando a aproximação em 3, 2, 1 … Soltar comandos, Mary.

_ Afirmativo.

_ Faça o rastreamento padrão novamente.

_ Com prazer, senhor. Manobra 357 em curso.

Um scanner robótico chamado de viúva negra fora ejetado para dentro da Cápsula de sobrevivência. O escaneamento durou cerca de vinte minutos.  O BOT Mary demorou mais dois para decodificar os dados.

_ Oxigênio limpo. Acoplagem permitida.  

_ Ok, manobra em 5, 4, 3, 2, 1.  

Os tripulantes da XP631-7 esperavam pelo Capitão no setor de recolhimento de lixo aeroespacial. Todos olhavam para ele roendo as unhas e loucos para cair fora daquela enrascada.

_ Fiquem calmos. Nenhum vírus foi catalogado na nave.

_ Não podemos confiar nos dados da Viúva Negra.  São obsoletos e com memória pouco expansiva. _ Disse um cientista recém saído das fraldas.

_ Eu sei Tenente André. Mas vamos acoplar assim mesmo. Preciso ver o que tem lá dentro.

_ O Senhor acredita que estão vivos? _ Perguntou Patty Bananinha, a única cientista da NASA com menos de 1,50. _ É uma cápsula de sobrevivência. Deve ter gente lá dentro.

_ Não me diga? _ O Capitão Silva cruzou os braços sobre o peito. _ Isso não é um filme de ficção, Tenente. Ninguém foi lançado de uma nave nos últimos dois anos. Não há registros sobre isso na NASA.

_ Exceto pela XP324 _ disse André.

_ O quê?

_ Isso mesmo, senhor. _ André tinha o semblante de um adolescente. _ Os tripulantes nunca foram encontrados. Nem a nave.

_ Houve buscas, Tenente. E para seu governo, não recebemos um pedido de S.O.S na Júpiter III. Concluímos que a nave se desintegrou na atmosfera da Terra. Esse assunto já foi superado superado há muito tempo.

_ Mas é um hipótese, não é?

_ Vamos descobrir quando entrarmos lá _ o Capitão Silva descruzou os braços para encarar sua tripulação. _ Alguém como voluntário?

Ninguém quis levantar as mãos.

_ Bando de bundões! _ Ele preparou um café. _ Você vem comigo, André.

_ Eu, senhor? Mas …

_ A hipótese é sua. Nada mais justo que confirme-a para a gente. Se estiver certo, pagamos o seu jantar.

O cientista recém-saído das fraldas engoliu sua saliva densa. O Capitão da velha guarda sorriu. Que dia lindo! Pensou com seu botões.

 

***

Steve perdera a esperança de mandar um MAYDAY para a Júpiter III. Sua condição física não permitiu que tentasse subir novamente nas torre de comunicação. Não havia como consertá-la. Da última vez que tentou derrapou numa das escadas de acesso ao nível 5, despencando de uma altura de 2 metros. Por sorte não quebrara uma perna. Outras tentativas também se mostraram infrutíferas.  Então ele desistiu e procurou por um lugar seguro para passar seus dias e noites. Sentia fome e frio, além do desconforto com a doença. Havia feridas por seu corpo, algumas já cicatrizadas. Ele tentou usar alguns medicamentos que encontrara nas subestações de pouso. A doença se esparramava lentamente, afetando o raciocínio e a motricidade. A despeito dos efeitos dela no seu corpo, o astronauta não perdera de todo à memória. Conseguia se lembrar da missão e de Margareth. Steve não conseguiu ver o rosto daquilo  que o atacara na noite do acidente. Sentia apenas as lufadas de sua putrefação. Ele conseguiu se desvencilhar graças a uma barra de ferro que encontrara perto de uma mesa. Independente do que fosse, acertou aquilo na cabeça, fazendo com que rolasse para o lado. O cientista da NASA fugiu para o deserto, tentando subir na torre somente durante o dia. O monstro que o atacara fora humano um dia. Disso Steve tinha certeza.

Margareth Fassbender e Carl Stephen viviam juntos há muito tempo. Eram amantes e cúmplices. Gostavam das mesmas coisas, dividiam os mesmos costumes e eram respeitados pela NASA e ONU. O brilhantismo do casal fez com que a Júpiter III organizasse uma missão a Marte mesmo com a escassez de insumos.  

_ Isso é Loucura! – Disse Kaleb, Presidente da ONU, numa das inúmeras reuniões que tivera com a NASA. _  É uma missão muito arriscada.

_ Temos que tentar alguma coisa – Margareth mantinha o seu discurso firme. _ Não podemos ficar aqui em cima esperando pela boa vontade de Deus.

_ Os satélites de observação que estão sobre Marte serão úteis – argumentou um dos astronautas de velha guarda. _ Precisamos dos equipamentos para monitorar a terra.

_ Neste caso, meus argumentos não são mais necessários – Kaleb mantinha o semblante sisudo.

_ A NASA se compromete a dar o suporte para a missão. Diga isso para o pessoal da ONU.

A autorização veio quinze dias depois da reunião. Em seis meses, Steve e Margareth já sobrevoavam a atmosfera de Marte para recolher satélites e insumos reaproveitáveis. Três jovens cientistas os acompanhavam.

_ Como nos velhos tempos _ disse o Capitão Stephen para sua tripulação.

Havia muito lixo espacial em Marte – desde placas de titânio a robôs de transmissão. Nada fora deixado para trás, nem mesmo os satélites mais antigos.

_ Precisamos mesmo levar isso? _ Perguntou Margareth para um desligado Steve.

_ Talvez tenha alguma utilidade _ ele olhou torto para as sucatas. _ Vou refazer os cálculos antes do lançamento.

Fora o peso da nave que comprometera a missão. A pane elétrica os jogou no Terra. Um descuido bobo por falta de atenção. Por que não refiz os cálculos? Por quê? Esse pensamento ainda o afrontava. Ele se lembrava do rosto preocupado de Margareth na cápsula de sobrevivência.

_ Não se preocupe. Vou dar um jeito.

O destino não pode ser mudado, minha Maggie. Eu sinto muito.

Agora o Capitão sente fome. Muita fome.

Havia pouca caça no deserto – alguns animais pequenos e roedores. Frutos selvagens ainda brotavam do solo; coisa pequena, mas de fácil acesso. Steve saía de seu esconderijo com o nascer do dia, e ao cair da noite, voltava para sua oca. Havia seres o observando. Isso não o  preocupava. Eram como ele – os filhos do fim do mundo.

Steve não se lembrava do fogo. Comia sua comida crua. A doença se alastrava com lassidão pelos labirintos da sua memória, trazendo a febre que fritava seus miolos. Quem dera pudesse ver Margareth  novamente. Quem dera fosse capaz de nunca mais esquecê-la.

***

_ Cuidado com meus dedos, Tenente _ Silva e André tentavam abrir a porta da cápsula de sobrevivência. _ Preciso deles para seguir com minha vida.

_ Estou tomando todos os cuidados, Senhor. _ André mantinha firme o desmineralizador de alumínio. _ Ligando o BOT Richard, auxílio no controle das mãos.

_ Afirmativo, Tenente. Abertura programada para cinco minutos.

_ Okay, no Aguardo.

_ Outro rastreamento, Mary.

_ Operante, Capitão. Preparando instrumentos.

No tempo programado pelo BOT, a porta se abriu. Havia uma luz bruxuleante do lado de dentro e um cheiro de metal desgastado.

_ Dados do rastreamento, Mary.

_ Nenhum vírus e 98% de oxigênio.

_ Obrigado.

Os astronautas tiraram seus capacetes. A ligação com a nave cargueiro iluminou o interior da cápsula. Havia roupas esparramadas pelo chão.

_ Não vejo identificação, Senhor _ observou André quando perto da sala de comando.

_ Nem eu. _ O Capitão suspirou profundo. Mais um dia tranquilo de trabalho. _ Mary, ilumine as paredes.

_ Sim, Senhor.

_ É a cara de Steve _ Silva lembrava muito bem do seu gênio arredio. _ Agia segundo os seus preceitos. Um bom amigo, mas bem exibido.

_ Então o Senhor concorda comigo? Essa Cápsula de sobrevivência pode ser da XP324?

_ Eu nunca duvidei, mas gosto de ver com meus próprios olhos – ele abriu espaço para que André pudesse passar. _ Vamos confirmar sua hipótese.

Os dois atravessaram o pequeno corredor de acesso aos módulos ainda ativos.

_ Meu Deus! _ O que viram deixou-os com os cabelos em pé.

_ Bingo, garoto! _ Silva caminhou entre os módulo. Reconheceu Margareth dentro de um deles. Havia aquela beleza arrogante no seu semblante.

_ Que prazer em revê-la, Marge.

_ Só têm cinco, Senhor. _ André falava do fundo da sala.

_ O quê?

_ Tá faltando um.

_ Faça o check list, Mary.

_ Afirmativo.

_ O módulo do Capitão está vazio.

_Merda! Merda! Merda!

_ Apenas um módulo respirando, Senhor – a voz do BOT mantinha o controle da missão.

_ Especifique.

_ Há apena um sobrevivente.

Silva apagou sua lanterna.

_ Me repasse os dados.

_ Astronauta Margareth Fassbender, Matrícula 87443-1, segunda em comando da nave Espacial XP324.

_ Obrigada, Mary. Repasse os dado para a Júpiter III.

_ Afirmativo.

_ Você ganhou o seu jantar, rapaz.

O jovem astronauta assentiu com a cabeça. Havia trabalho a ser feito e relatórios a serem preenchidos. Deixaria seu BOT ligado até o fim das coisas. Com certeza, teria a presença da Tenente Alice no seu jantar. Isso deixou-o animado. Até que o dia não fora tão ruim assim, pensou com seus botões.

 

 

 

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