A oficial Margareth Fassbender fora levada para a Júpiter III sobre quarentena. Os médicos da ONU acharam melhor deixá-la em hipersono por mais algum tempo, para que seu corpo pudesse se recuperar da desnutrição. Os outro tripulantes da XP324 foram lançados ao espaço num enterro cheio de pompas e honrarias. Ninguém quis ver seus corpos murchos pela despressurização, nem mesmo os oficiais mais curiosos. O Presidente Kaleb da ONU não ficou satisfeito ao ver o rosto bonito de Maggie (como era conhecida) depois de anos perdida no espaço. Cabia a ele dar à notícia da morte do noivo quando fosse restabelecida sua condição física.
_ Não temos bola cristal aqui em cima, Coronel _ disse para um dos manda-chuva da NASA. _ Acreditamos nos dados que nos foram enviados pelo BOT Owen do Capitão Stephen. Ele foi bem claro quanto vez a transmissão: nave se chocando com o Planeta Terra.
_ Fomos omissos, Kaleb, e você sabe disso. Tínhamos por obrigação investigar melhor.
_ Se eu me lembro bem, velho amigo, foi você quem autorizou a Missão até Marte e não eu _ Kaleb suava pelo colarinho da gravata. _ Fui contra desde o início. Essa loucura colocou em risco toda a tripulação da Júpiter III!
_ Não seja exagerado, Presidente. Missões espaciais tão errado o tempo todo. Sempre foi assim e sempre o será.
_ É mesmo, Richard? Explique isso para a Oficial Margareth quando ela acordar e procurar pelo noivo.
Margreth despertou do hipersono três dias depois. Sentia cansaço e dor nas pernas. Perdera a memória por um tempo, mas logo se lembrou da missão e do seu lançamento na cápsula de sobrevivência. Sabia que algo dera errado, mas recusava-se a acreditar.
_ Eu sinto muito, Margareth _ Kaleb mantinha o semblante sisudo. Não quis demonstrar medo na frente dela. _ Foi uma sucessão de erros. Creio que o BOT desconfigurou na reentrada.
_ O peso … _ disse num sussurro. _ … havia sobrepeso na nave.
_ Não temos como saber. A XP324 não foi recuperada.
_ Você não procuraram por Steve na terra? Não fizeram uma busca no perímetro do acidente?
_ O BOT Owen fez uma transmissão antes do acidente. Relatou uma provável explosão na reentrada.
_ Provável explosão? Acreditaram na transmissão de um robô com indícios de desconfiguração?
_ Foi um acidente, Oficial, não temos motivos para desacreditar o BOT.
_ Um robô não pode fazer o nosso trabalho. Eles estão longe de serem precisos.
_ Tenho que discordar, Oficial. Nossa última geração de BOTs provou ser bastante eficiente.
_ Não me diga? – Margareth cruzou os braços sobre o peito. _ Então onde está o meu noivo? Por que não foram buscá-lo?
Os olhos da oficial se encheram de lágrimas. Ela não queria chorar, mas chorou. Kaleb sentiu um aperto no peito, uma coisa ruim na garganta. Já passara por dor parecida, só não tinha coragem para admitir que também sentia, que se compadecia com a perda da oficial.
_ Eu sinto muito, Maggie. O que aconteceu com Steve foi um acidente lamentável _ Kaleb tocou seu ombro. Ela se esquivou de forma brusca.
_ Você sente muito, Kaleb? _ Ele emitiu um muxoxo torpe. _ Me conta outra.
_ Posso não demonstrar, mas me preocupo com vocês.
_ Me deixe sozinha, por favor.
Margareth rolou para o outro lado da cama. As lágrimas teimando em escorrer no travesseiro.
_ O Tenente Angus tem uma proposta para lhe fazer, Maggie.
A Oficial fechou os olhos. Não queria ouvi-los. Precisava de tempo para digerir a morte de Steve. Não lhe interessava às propostas da NASA. Queria seu homem de volta. Queria que tudo voltasse a ser como era antes. Seus olhos se encheu de lágrimas novamente. Por que não refez os cálculos, meu amor. Por quê?
***
ESTAÇÃO ESPACIAL JÚPITER III – ANO 2065
SEGUNDA-FEIRA, 20 DE SETEMBRO
20h27
A Oficial Margareth descia apressada às escadas de acesso ao Centro de Pesquisa das Nações Unidas para o desenvolvimento Sustentável da Terra. Misantropa de carteirinha, não perdeu um minuto sequer de seus dias na confortável Estação Júpiter III para tentar salvar os esqueléticos da Terra. Enquanto seus colegas faziam cálculos, a astronauta da “velha guarda” pesquisava a atmosfera de outros planetas também “sustentáveis”.
Tediosa, odiava as reuniões com seus oficiais das antigas. Odiava ouvi-los falar sobre o óbvio. Assistia a tudo com certa ironia, com afetada despreocupação. Seus últimos estudos sobre o planeta colocariam um fim nessa história de “repovoar” os continentes. Estavam condenados. Era o fim do mundo.
Para quem acreditou que sucumbiríamos às intempéries de governos totalitários, se viu contrariado pelo vírus modificado da varíola. Corria a boca pequena que outra mutação fora catalogada nas últimas amostras de sangue trazidas da terra, mas que o assunto era mantido em segredo para segurança de todos. Margareth pouco se importou com os boatos. Se fosse mesmo verdade, que sofressem por suas teses e dissertações vazias. Estava pouco se lixando para os figurões encharcados de álcool da ONU. Não lhe tocava nenhum pouco o futuro dessa gente.
Todos conheciam os destemperos de Margareth quanto as Instituições. Mas poucos entendiam seus motivos. Era sabido seu desequilíbrio por aqueles que lhe enviaram para Marte trazendo-a de volta em frangalhos, tanto física como emocionalmente. A brilhante e promissora astronauta nunca os perdoou. As lembranças dessa viagem insistiam em fazê-la sofrer, quase desistir. Se não fosse por seu BOT nada a teria impedido de colocar fim em sua própria vida, nem mesmo sua carreira brilhante dentro da astrofísica.
Mesmo sabendo da importância da NASA para sua vida profissional nunca deixou de odiá-los. Queria fazê-los sofrer, assim como ela sofreu. Viu por acaso em seus estudos a possibilidade de fazê-lo. Então, dedicara uns dias de suas férias para tornar real o pesadelo de perder o planeta para sempre. Adoraria ser a primeira a lhes dar essa notícia encantadora.
Com a cabeça ligada em 220 volts entrou com passos firmes na sala de Reunião Científica. Descabelada, sofrendo com dores nos joelhos, mal teve tempo de ouvir seu BOT, tão enérgico quanto ela.
_ Calma, Maggie – aquela voz a encantava, mesmo tocando-a apenas ao pé de um dos ouvidos. _ Eles vão esperá-la. É a dona da Festa.
_ Eu sei, Ariel. Mas não gosto de chegar atrasada. Tenho que dar o exemplo.
_ Exigente como sempre. Você insiste em carregar o mundo nas costas. Não sei o que seria de você sem mim.
_ Não me importo com o mundo.
_ O mundo de que falo é o seu, minha cara. O único que me interessa.
Margareth soltou um sonoro “Ha Ha Ha do Coringa”. Adorava filmes antigos; os grandes vilões, as grandes tragédias. Lembranças de um lar esquecido.
BOTS, abreviação carinhosa de ROBOTS. São pequenos chips robóticos nano tecnológicos implantados na parte frontal do cérebro de todo cientista da ONU e NASA. Possuem a capacidade de orientar decisões, controlar o sono, a fadiga e avaliar situações de perigo. Dificilmente algo de errado acontecia com as missões espaciais quando guiadas pelos BOTS. Segundo as estatísticas da NASA, apenas astronautas que recusaram sua implantação sofreram algum tipo de transtorno em voo. Não foi o que aconteceu com Steve. Mesmo com seu BOT, perdera a vida por uma pane elétrica da Nave XP324. Margareth nunca se perdoou. Assim que fora resgatada do espaço buscou refúgio em Ariel, um ROBOT do sexo masculino moderno e gentil; um protótipo em desenvolvimento. Apesar dos 3 meses que passou perdida em sua cápsula de sobrevivência, ainda conseguia ouvir os conselhos de Steve, mesmo sabendo que sua nave fora arremessada em direção a Terra. A NASA foi omissa, os amigos também. Não houve buscas pela nave e isso o condenou. O fato de tê-la resgatado do espaço não os transformavam em heróis. Não para ela. Foi mais um golpe de sorte proporcionado pelo destino.
Na sala de Reunião, cientistas se esparramavam uns em cima dos outros. Todos tinham algo para falar, argumentos de anos de estudo sobre a Terra, sobre o vírus da varíola e clima. Margareth sentou-se num canto afastado, sem muitas perspectivas de contato. Ela sabia muito bem que todos estavam lá para ouvi-la. Sua nova tese punha fim ao sonho de repovoar a Terra.
_ Não concordo com você, Maggie _ disse Ariel. _ Devemos ter esperança.
_ Do que está falando?
_ Não se faça de desentendida.
_ Já conversamos sobre isso. Fiz todos os estudos possíveis. Você ficou comigo o tempo todo. Não há salvação para o planeta.
_ Já vencemos essas coisas antes, podemos fazê-lo de novo.
_ Um vírus modificado pode até ser, mas um planeta na menopausa duvido muito.
_ Mas Maggie …
_ Não vou discutir isso agora, Ariel. – Com um gesto de cabeça desligou seu BOT. Os cientistas levantaram os olhos de seus computadores para vê-la sem seu robô. Algo difícil em se tratando de Margareth.
O Prefeito da Estação Espacial, e Presidente da ONU, kaleb Yussef, fez as primeiras considerações. Era um homem alto, até bonito. Encontrava-se sério, vestindo seu uniforme de gala. Tinha o semblante da “velha guarda” _ burocratas obsoletos e chefões do nada. Simples ornamentos de um mundo comandado por cientistas e BOTS.
_ Senhores e senhoras, estamos reunidos para discutir o futuro do planeta Terra. Segundo os cálculos mais recentes, os voluntários continuam na proporção de 1/3. Novas amostras de sangue serão recolhidas semana que vem. Precisamos quantificar tudo para analisarmos melhor o DNA que causa a mutação. Os resultados serão de evidente importância para os estudos futuros de uma provável vacina e repovoamento.
_ Como sabe disso? _ Todos olharam para Margareth. _ Desses voluntários? Quem são eles? Há quanto tempo não descemos lá para conferir? Como saber se o que diz é mensurável? Como são recolhidas estas amostras de sangue?
_ A Terra continua sendo monitorada pela ONU, Oficial. Nossos mantimentos são lançados e recolhidos todos os dias. Os robôs da NASA fazem a coleta do sangue. A Senhorita teve acesso aos arquivos. Os viu recolhendo a comida. Desconfia de mim, Margareth?
_ Não desconfio de ninguém. Mas pode-se forjar arquivos. Lembra-se da Lua?
Todos ficaram abismados com o atrevimento da cientista de nariz arrebitado.
_ Estão vivos, Maggie. Poucos sem dúvida, mas resistindo. E por enquanto com perfeita saúde mental.
A astronauta da “velha guarda” retirou do bolso um pequeno drive, conectando-o a todos os canais da sala de comunicação.
_ Peço que desliguem seus BOTS. _ Ao falar soltou uma sonora gargalhada. É claro que só ela viu graça na piada. _ Ok! Vamos lá.
Um imenso painel se abriu em todos os cantos da sala. Os continentes se projetaram em 3D.
_ A terra vem sofrendo com uma doença viral de constante mutação. Começou com surtos isolados na África e depois na Ásia. Uma doença até então considerada de terceiro mundo. Descartamos aquilo que temos em abundância, no caso, pessoas pobres e negros em países subdesenvolvidos. Sempre fora assim e esse foi o nosso erro. Não olhar para o lado, para nossos semelhantes.
_ Essa denominação de Terceiro Mundo não é aceitável. Não usamos mais esses termos, Capitã. _ Preveniu Kaleb.
_ Para mim é muito aceitável. É para vocês?
Ninguém ousou contestá-la. Conheciam o seu mau gênio.
_ Como disse, foi um erro desprezarmos aquele vírus besta. Por nossa arrogância, a doença se esparramou pela Europa Central e do Norte. Muitos mortos, sarcomas, pessoas com imunidade alterada e blábláblá. _ Margareth suspirou profundo. _ Diante do blábláblá, o que fizemos? Fugimos. As mentes mais brilhantes do mundo abandonaram o barco deixando um monte de fodidos lá embaixo _ o som do silêncio. Bingo! _ Por fim quero apresentá-los aos dados mais recentes _ Margareth mudou sua projeção. _ A população vem diminuindo consideravelmente na Terra. Menos de um terço dessa gente perambula por lá, certo? Mentira! Creio que estamos indo rumo à extinção.
Um buchicho acentuado surgiu entre os cientistas. Todos olhavam para a tela 3D sem compreender o porquê dos dados.
_ Como chegou a essa conclusão? – Perguntou Kaleb franzindo a testa.
_ Pelo nível de CO2 no ar. Estamos parando de respirar, de poluir. A Terra passa por transformações. Talvez uma nova Era do Gelo, sei lá. Resumindo: Estamos lascados. Mesmo sem a doença, não poderemos voltar para lá. Está frio. Nossas tentativas desordenadas de conter o vírus definiu nosso futuro. Sinto muito.
Tão simples e tão óbvio. Pensou a astronauta no alto do seu pedestal.
O prefeito continuou mudo diante dos dados. As palavras engasgadas em sua boca escancarada.
-Pois bem – Margareth recolheu suas coisas. – Vou deixá-los analisando os dados. Quaisquer dúvidas sabem onde me encontrar. Como sei sobre o clima? Me procurem. Terei prazer em explicar.
Dando meia volta com seu salto alto, deixou-os com seus problemas. Pouco se importou com os pobres humanos cheios de bexigas lá debaixo. A única coisa que quis foi provar para aqueles babacas o quão definitivo é o seu estudo. Por um fim nessa história de repovoar a Terra. O futuro estava em outros planetas também sustentáveis.
Com a chave do seu apartamento nas mãos, lembrou de Ariel. “Pobre coitado. Desligado há horas, seus circuitos tão frios como de uma geladeira; ”. Com um movimento de pescoço ligou-o novamente.
_ Foi maldade sua me desligar. _ Disse com voz embargada pela emoção.
_ Não fique assim, Ariel. Foi para o seu bem.
Houve um momento de silêncio entre os dois. Algo raro para os BOTS.
_ Chegou uma mensagem para você.
_ Não me diga que já estão me procurando?
_ É da terra.
_ Como é que é? – Margareth arregalou os olhos – Só pode ser brincadeira.
_ Não mesmo. A mensagem vem da terra. Precisamente de Houston. Deseja ouvi-la?
Da terra? Houston? Quem poderia ser? Não havia transmissores conectados com a Jùpiter III por lá. Algum robô tentava entrar em contato com ela.
_ Tudo bem. Pode soltar.
“Maggie, Maggie! Sou eu, Steve. Preciso de você. Se ainda me ama, venha me ver.”
Margareth deixou a chave do seu apartamento cair no chão. Ela desmaiou no corredor da Estação Espacial Júpiter III.
ESTAÇÃO ESPACIAL JÚPITER III – ANO 2065
SEGUNDA-FEIRA, 20 DE SETEMBRO
22h45
Ah,Margareth, você não sabe no que mexeu ou com quem mexeu. Não é fácil para mim tomar certas decisões, mesmo assim as tomo. Estamos travando algumas batalhas, minha querida. Preciso me cercar por todos os lados e você está no meu caminho. Por que se meteu nessa história? Por que não ficou quieta no seu canto?Deseja sua vingança pelo que aconteceu com Steve? Não me culpe por isso , estou limpo quanto ao que aconteceu com ele. Fora uma fatalidade e você sabe disso. Só que sua arrogância não permite que veja a imperfeição em vocês. Os dois erraram e as consequências foram graves demais. Se você descesse até lá me entenderia. Mas creio que não posso salvá-la. Terei que sacrificar um peão para salvar o rei. Não gosto de tomar atitudes tão drásticas como essa, mas você não me deixou alternativas. Vamos repovoar a Terra , minha querida. Só precisamos arrumar a casa primeiro. Não queremos os sermões da NASA quanto as nossas atitudes para conter o vírus. O passado deve ser esquecido. Estamos dando um jeito, Margareth. O nosso jeito. Para isso preciso que mantenha o seu narizinho arrebitado fora das minhas coisas.
Kaleb deixou seu escritório com às luzes acesa. Havia uma iluminação branda nos corretores de acesso aos laboratórios da nanotecnologia. Das janelas da Júpiter III via-se o Terceiro Planeta. Lembrava-se de sua mulher e dos filho que ficaram em Houston. Não havia lugar para eles na Estação Espacial. Foi difícil de superar a dor de perdê-los. Mas o tempo abrandou sua perda, como de todos naquele lugar. Margareth deveria ter feito o mesmo; regurgitado seu sofrimento e seguido em frente. Mas não, tornou-se uma pedra no sapato. Que assim fosse! Não havia nada que pudesse fazer para mudar o destino dela.
No laboratório de Nível 6, usou sua chave de acesso para entrar sem ser percebido. Se o vissem perambulando pelos corredores da NASA fariam perguntas. Tudo que ele não queria era ter que se explicar para os cientistas da velha guarda o que estava fazendo alí. Não eram bobos. O conheciam muito bem.
Margareth encontrava-se em hipersono. Estava vestida com seu traje espacial e ligada ao aparelhos de monitoramento. Kaleb percebera que ainda era bonita. Tanto faz. A beleza não importava para esse novo mundo. Havia muita coisa em jogo, inclusive o seu pescoço.
_ Relatório da missão, Capitão – Pediu Kaleb para um jovem cientista de pele salpicada por espinhas.
_ Preparando arquivo para implantação, Senhor Presidente.
_ Okay _ Kaleb respirou fundo. _ Seguir com a missão em 5, 4, 3, 2, …