Aquilo que fora humano um dia caminhava pela relva seca de um mundo em colapso. O solo esfarelava com o peso do seu caminhar arrastado. Havia fogo nas montanhas e um vento frio no deserto. Não se encontrava água ou comida por quilômetros e quilômetros de terras áridas. Os sobreviventes se devoravam num canibalismo selvagem. A natureza tornou-se bruxuleante e submissa aos agentes tóxicos lançados do espaço pela ONU. Alguns sobreviventes se transmutaram em seres bizarros com corpos deformados. Um leigo diria se tratar do apocalipse. Tanto faz as dominações para o fim do mundo. O Terceiro Planeta padecia aos poucos; sem organização e pela selvageria dos novos tempos. O planeta Terra tornara-se um lugar de extinta beleza.  

Aquilo que fora humano um dia não se lembrava da sua vida passada. Caminhava com os outros; sem destino e à deriva. Procurava por comida. Necessitava do sangue para matar sua sede e de carne para fortalecer seus músculos. Carregava no corpo cheio de marcas os vestígios do que fora um dia: o emblema da NASA na camiseta surrada.  Algo falava com ele, ao pé do ouvido, bem dentro do seu cérebro desgastado pela doença. Ele balançava a cabeça tentando se livrar do barulho. Seu único objetivo era de continuar caminhando, buscando por comida e se arrastando pelo frio que vinha das montanhas.

O que via no horizonte era um menino? A besta não sabia dizer. Algo caminhava ao lado do garoto; tinha quatro patas e sarnas pelo corpo. Procuravam por comida e água assim como ele? Não interessava o que procuravam. Eram a caça.

O cachorro e o menino subiram uma montanha íngreme. A besta os seguia com olhos de uma rapina. Eles conheciam a fome daquele que um dia fora humano. Viviam num mundo em que monstros habitam as colinas da Terra, e que se alimentavam deles. Viviam nas cavernas do deserto, bebendo a água tóxica da chuva e se alimentando do que sobrara da natureza. A existência humana tinha prazo para acabar.

Mesmo conscientes do fim iminente, os que enganaram a morte lutavam para se manterem vivos numa sociedade em colapso. Uma luta desigual para aqueles que sobreviveram ao vírus. Os monstros se multiplicavam como baratas no esgoto – e a cada dia avançavam mais e mais sobre o deserto de Houston.

Havia outros vivendo com o menino? Se permitiu perguntar a besta. Aquilo que fora humano estreitou os olhos para observá-los pela penumbra do deserto. Sua bocarra escancarada se preparava para abocanhar a vítima mesmo se sentindo acuada pelo latido do cão. Chegaria primeiro que os outros na comida.

O cachorro percebeu sua aproximação e avançou sobre ele, dando tempo para que o menino alcançasse uma conhecida trilha de sobrevivência. Aquilo que fora humano um dia gritou pelas ribanceiras que abrigavam os outros monstros. Muitos saíram de suas ocas arrastado seu pé sobre o chão árido da Terra. O cão foi puxado de cima dele por mãos poderosas. Um urro de sofrimento fez com que o menino parasse de caminhar. O cachorro tentava morder aqueles que tentavam devorá-lo. O animal também era um sobrevivente. Sabia lutar contra os caçadores.

 

O menino continuou correndo até não ouvir mais o grito do seu cão. A besta foi atrás dele, se arrastando pelo deserto, deixando que o sangue do seu braço sujasse o chão que um dia ofertara alimentos para os seres humanos. A trilha feita há muito tempo pelos primeiros sobreviventes atravessava o outro lado da planície. Um lugar de difícil acesso para as bestas que agora dominavam o mundo.

Aquilo que fora humano um dia correu por entre os destroços de uma nave que há muito se espatifara no chão. Ele não se lembrava dela. De tê-la construído, colocado-a em voo ou de pilotá-la até Marte. Não existia memória nos monstros. Apenas uma pálida lembrança do que fora aquilo. Um tempo ilusório, de imagens desfocadas e constante zumbido na cabeça. Havia pesadelos? Muitos. Mas as bestas não sabiam discernir entre realidade e ilusão. Havia apenas a fome. Eles tinham que comer; se alimentar do puro, de carne fresca.

O Menino tentou se esconder nos destroços daquela nave, nos pequenos vãos retorcidos de ferro. Só que a besta conhecia o caminho, e mesmo agindo por instinto, farejava o cheiro da presa.  A despeito dos desejos do monstro, a caça era valente e sabia lutar. Aquilo que fora humano um dia sentiu a barra de ferro na cabeça quanto da investida do sobrevivente. Mas não foi o suficiente para fazê-lo recuar. Ele avançou sobre a caça, jogando-a numa mesa de titânio retorcida pela queda. O menino tentou escapar. Não havia fuga possível quando pegos pelas bestas.

O monstro se alimentou.  Sua sede e fome foram saciadas sobre a penumbra do deserto. Ouvia-se sons do lado de fora em harmonia com a bruma fria. O silêncio bruxuleante da Terra ressalta o arrastar dos pés e os muxoxos ocos dos BOT’s. Eles não tinham o domínio sobre as bestas. Não mais.

Outros como ele entraram na nave. Se olharam pelos espaços vazios dos destroços. O caçador deixou que se aproximassem. Sentia-se satisfeito e sobrara muito da caça. O alimento seria dividido. Ainda havia algo de humano em Steve? Ele não sabia dizer.

 

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