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O Dia da Faxina – Capítulo 8

 

Meses se passaram. A explicação da prefeitura e do estado quanto ao motivo da “implosão” do Carandiru teve que ser engolida. Época de eleição… certamente boatos suspeitos não cairiam bem para nenhum candidato. A construtora recebeu sinal verde para prosseguir com as obras, mas ao invés do novo prédio futurista da prefeitura, um parque institucional, com teatro aberto, jardins e um centro de exposições. Um projeto certamente de caráter eleitoreiro.

Durante as novas construções, Atílio visitou com regularidade o local. Caminhando pelos escombros, viu no chão, misturado ao entulho, uma carteira de identidade. Pertencia a uma moça de vinte cinco anos de nome Célia Almeida. Subitamente, uma ideia lhe ocorreu. Só precisaria verificar alguns outros detalhes. Assim que retornou para casa, fez a busca do nome. Descobriu que a moça faleceu ao cair na cratera. Residia nas redondezas e trabalhava como doméstica.

Depois de colher os dados, Atílio foi a uma loja popular e comprou um notebook em nome da falecida. Com ele, cadastrou-se na internet como a própria. No intuito afastar ainda mais qualquer suspeita, Atílio criou um perfil falso nas redes sociais.

Demorou pouco para que Lúcia, o perfil falso de Célia na internet, começasse a ter voz ativa nas redes sociais. Tudo era falso: fotos, músicas, filmes que dizia adorar. Fez fotomontagem para que Lúcia parecesse frequentar shows de cantores famosos. Chegou até mesmo fotografar o “campus” da universidade onde supostamente estudava. Tudo fora meticulosamente criado, até mesmo um namorado de quem alegou sentir saudades, pois, fora fazer um curso na Rússia.

Lúcia, com seus vinte e cinco anos, demonstrava ter personalidade e iniciativa. Contagiava quem a seguia com seus textos politizados e ávidos por mudanças. Uma verdadeira ativista digital. Apresentava-se com um quê de falsa modéstia. Dizia ser apenas uma observadora política e social. Participante ativa das discussões no centro acadêmico da universidade onde estuda, cujo nome procurava não revelar por motivos de segurança. Vivia de aulas particulares de língua portuguesa, e também é bancada pelo pai que mora no Nordeste.

As coisas tomavam forma, conforme os planos de Atílio. Certo dia, pela TV, soube de uma notícia horrenda. Tratava-se de uma mulher grávida que levava o filho de quatro anos ao posto de saúde. Subitamente, foi abordada por dois criminosos. Queriam a bolsa. Esta foi entregue sem resistência. Por ter apenas dez reais na carteira, ela e a criança foram arrastadas para um beco. Um dos ladrões a violentou. Em seguida, mãe e filho foram executados.

Aquele hórrido caso deixou Atílio transtornado, principalmente quando soube que ambos os assaltantes eram menores e, por não terem sido pegos em flagrante, responderiam em liberdade. Atílio incorporou a personagem Lúcia que criara, e acessou seu perfil na rede social. Postou um desabafo na esperança de que da população se rebelasse contra a onda de violência.

“Sou uma cidadã comum, que trabalha e estuda, mas me sinto como um cordeiro prestes a ser sacrificado. Meu grito será calado, mas este não é o mundo no qual desejo viver. Nem quero que meus filhos vivam nessas condições. Vocês sabiam que depois que o Carandiru foi implodido, o crime na cidade diminuiu quarenta e dois por cento? Isso porque os esquemas criminosos foram desarticulados. Por que só nós, população honesta e trabalhadora, devemos sofrer com o terrorismo? Por que não eles? Proponho organizar um abaixo-assinado para protestar contra a ação violenta dos bandidos e a ineficácia da polícia.”

Em menos de uma hora o texto ganhou mais de mil e duzentas visualizações. A ideia inicial era enviar um apelo à presidente da república, mas a situação tomou outro rumo. O rumo que Atílio verdadeiramente gostaria que tomasse. Milhares de internautas se organizaram para traçar uma estratégia que pudesse ganhar as ruas. A maioria, jovens, que se sentiam aviltados pela violência nas cidades.

Lúcia, a avatar de Atílio, propôs uma ação que pudesse ser mais eficaz. Por não se conhecer quem é, e quem não é criminoso solto nas ruas, o movimento deveria ir onde bandidos estão concentrados: nos presídios. “Lá é a fábrica de demônios”. Ressaltou Lúcia em nova postagem.

“Não podemos mais suportar essa pressão. Transformaremos o nosso mundo num verdadeiro paraíso. Acho que os bandidos tiraram todas as nossas esperanças de um mundo melhor, um mundo que nos foi dado por Deus.”

O movimento tomou um vulto gigantesco, o que deixou a central de inteligência do governo em alerta. Imediatamente rastrearam a fonte das mensagens, e chegaram à identificação do computador de onde partiam. Agentes descobriram, então, que uma tal de Célia era a verdadeira dona das mensagens, o perfil offline era de uma doméstica e não a de universitária de nome Lúcia.

Enquanto isso, protestos se espalhavam. Eram ainda virtuais, mas a situação já atingia uma massa crítica. Um mantra poderoso tomou conta dos internautas: “Queremos paz.” Todos concordavam que era hora de irem às ruas. Um movimento contra o crime organizado fora criado. Todos irmanados pelo mesmo ideal de paz, mais de vinte mil pessoas atenderam ao chamado de Lúcia. Tudo estava pronto. O ponto de encontro: Cadeião do ABC, em Santo André.

“Se a vontade de mudar o mundo é legítima, então, que se faça conforme a nossa vontade, homens de boa fé.”

Esta foi a frase foi o estopim do movimento. No dia seguinte, mais de trinta mil pessoas cercaram o cadeião do ABC. Em meio ao manifesto, autoridades locais se mobilizaram. Tropas de choque foram posicionadas em pontos estratégicos. O movimento se autodenominou: “Anjos do bem contra o crime.” Líderes pediam que fosse uma manifestação pacífica. Mas o movimento era composto pela maioria que fora vítima de violência causada por bandidos. O grito por justiça engasgado não conteria aquela gente. Na rede social, Lúcia continuava a despejar sua ânsia de mudança e que bandidos deveriam receber um tratamento mais severo.

O movimento falava cada vez mais alto. Atílio, para dar cabo ao seu plano de vingança, deflagrou, através de sua avatar, uma informação falsa, que se tornou viral. Alegou que alguém do movimento teria sido ameaçado de morte por um dos detentos. Aquela foi a gota d’água.

O que antes era apenas uma manifestação, converteu-se numa verdadeira guerra. Tropas de choque dispararam balas de borracha e bombas de efeito moral. O ódio cresceu. Cerca de quarenta mil manifestantes se acotovelavam para garantir que não seriam reprimidos pela força policial. Diante da TV e com o computador no colo, Atílio digitou a última frase em nome de Lúcia:

“O dia da faxina começou.”

Rapidamente fechou o notebook, pegou um martelo e o destruiu. Desmagnetizou o hd. Todo o conteúdo se foi. De volta à zona de conflito, a população reivindicava uma posição do governo. Queriam que os policiais fossem mais bem equipados, melhor remunerados, e que o contingente fosse triplicado. Entre gritos e cartazes, surge o grupo radical. Este exigia o extermínio de todos os criminosos. A princípio o grupo não foi encarado muito a sério. Mas tanto provocaram que o movimento tomou uma proporção maior e tumultuou. O ódio inflamou juntamente com as bombas molotov que foram arremessadas contra o presídio.

Diante da confusão, a tropa de choque intensificou os disparos de balas de borracha e bombas. O grupo conclamava:

“Vamos em frente. Eles só têm borracha e pimenta. Nós temos a fé de um mundo melhor.”

Cerca de trinta rapazes tiraram das mochilas estilingues especiais, daqueles usados em competição de tiro ao alvo, e se armaram com esferas de aço. Dispararam contra os soldados. À eles, somaram-se os lançadores de bombas molotov. Foi um ataque massivo. A tropa de choque precisou recuar para o interior do presídio.

Mas a população não se deu por satisfeita. Queria entrar no presídio a todo custo. Forçou a entrada. Não conseguiu. Só restava escalar os muros. Escadas e cordas foram usadas. Dezenas de manifestantes subiram os muros. A cena mais lembrava um filme da época medieval.

A polícia continuou a atirar balas de borracha contra os escaladores. Mas a ação não os fazia recuar. Contudo, algo inédito aconteceu. Os policiais e a tropa de choque se retiram. Não se sabe quem liberou as travas das entradas principais do presídio e a população invadiu.

Foi um massacre jamais visto na história. Mais bombas molotov foram lançadas. Nas celas, prisioneiros apinhados e aterrorizados, gritavam e se debatiam em chamas. Enquanto uns eram queimados, outros eram arrancados das celas e linchados até a morte. O requinte da destruição não parava por aí. Os corpos eram dilacerados e partes, como cabeças e membros, eram lançados para o lado de fora dos muros. A população se divertia como num jogo de futebol.

“Agora é que a copa vai começar.” – Gritavam.

Pela TV, o que se via era uma zona de guerra em pleno ABC paulista. E o frenesi só fez aumentar o número de revoltosos composto basicamente de pessoas comuns, donas de casa, estudantes e trabalhadores. Todos unidos e fartos da violência. Agora era: Olho por olho. Segundo a polícia militar, já eram sessenta mil pessoas a cercar o presídio. A multidão invadiu e, enfim assumiu o controle do cadeião.

Ninguém, no entanto, tocou um dedo sequer nos policiais que ali se encontravam. Ao contrário, foram protegidos e até agradecidos por terem aberto espaço. O exército, com carros tanques e jatos d’água, interveio, mas acabaram recuando. Atenderam ao clamor popular de se afastarem para que a justiça efetivamente fosse feita.

O céu ficou coalhado de helicópteros que filmavam a barbárie. Um jornalista em terra flagrou um grupo de presidiários, cerca de oito, que fugiam pelos fundos das instalações. Desesperados, correram para a avenida. Com microfone em punho, o jornalista tentou obter informação de um deles:

– O que farão agora?

– Sei não. Só quero sair daqui. Esse povo tá loco, senhor. Eu só tava aqui, senhor, pagando minha pena sossegado e de repente… Ó, não dá pra falá agora não. Eles vão me matá.

– Foi preso por quê?

– Matei, senhor. Mas foi legítima defesa, tá ligado, senhor.

– E você vai fugir pra onde?

– O senhor acha que eu vou falá? Sei lá, senhor, vô me metê em algum buraco por aí e esperá o povo ficá mais calmo.

Neste mesmo instante, manifestantes viram o preso e rapidamente o cercaram. Em poucos segundos foi dilacerado como um animal atacado por um cardume de piranhas. O jornalista entrou em choque ao presenciar a cena.

Depois de aproximadamente oito horas de carnificina, já não existia mais um preso sequer para contar a história. Funcionários e policiais foram poupados.

As imagens correram o mundo. E isso gerou um profundo silêncio dos políticos e até mesmo dos Direitos Humanos. Ninguém teria coragem de contradizer um movimento que viera espontaneamente do povo.

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