Este episódio contém narrativas de gatilho e de conteúdo sensíveis que podem causar desconforto:
abuso infantil / automedicação / homofobia internalizada / transtornos mentais.
Há uma garota sentada no chão. Está bastante eufórica e feliz brincando com os índios, cowboys e cavalos que fazem parte do forte apache que havia ganhado dos pais. A menina não deve ter mais do que seis, sete anos e enquanto viaja pelo universo do seu minifaroeste, não percebe a aproximação de um homem que, aparentemente, não lhe causa qualquer surpresa por estar ali, permitindo, inclusive, que ele se entretenha por um bom tempo ao lado dela e dos seus índios, cowboys e cavalos.
— Que tal brincarmos de outra coisa?
O homem questiona, por fim, ou melhor, sugere. Sim, sugere com um sorriso largo no rosto, atraiçoando sua obstinação, ao passo que a garotinha segue indiferente, totalmente voltada para o seu forte apache, se dando ao trabalho apenas de responder com um aceno negativo da cabeça.
— Poxa, você vai me deixar triste, muito triste…
Como se um gatilho tivesse sido acionado, de pronto a menina ergue o rosto para o homem e se depara com olhar dele um tanto cabisbaixo, a boca ligeiramente virada para baixo e um semblante estampando um profundo lamento, ensaiando a chegada de um choro. Ela se comove instantaneamente e ato contínuo deixa de lado os cowboys e os cavalos para se atirar no colo do homem, daquele homem, que a aguarda de braços abertos, agora sorrindo, sim, sorrindo com os lábios fechados e levemente curvados para cima.
No instante seguinte, a garotinha se vê deitada sobre uma cama, sem roupa, apenas com uma gravata envolta de seu pequeno pescoço enquanto sente mãos e lábios passeando sobre sua pele conforme começa a lidar com uma desorientação espaço-temporal acompanhada de uma inegável sensação de súbito despertar, além de pontadas na testa que reverberavam na nuca. Não demora a olhar para baixo, para a cabeça que se move num vai e vem frenético sobre o seu corpo franzino, nu, até se deparar com o rosto do homem, daquele homem, um rosto, agora, com uma expressão algo embaciada que lhe sorri um sorriso sem dentes, debochado.
— Você é lindo, sabia?
O homem se põe de pé num salto, passando a fitar a menina com olhos afiados à medida que a garotinha também o observa, entre assustada e curiosa, ao mesmo tempo que se questiona, se esforça para lembrar de como havia ido parar ali, sobre aquela cama, como havia ficado sem roupa e em que momento exatamente aquele homem tinha ficado somente de cueca vermelha…
— Você é lindo, sabia?
O homem repete, uma voz gentil conforme se deita ao lado da menina, que, súbito, não consegue mais enxergá-lo, tão somente sente sua presença, algo etéreo, e as mãos dele voltando a acariciá-la.
— É bom, não é?
Um calafrio de inquietação e temor percorre todo o mirrado corpo da garotinha numa velocidade inimaginável, entretanto, algo dentro de si parece pedir para que se acalme e satisfaça as vontades do homem, daquele homem, daquela figura etérea, que brinque com ele para não deixá-lo zangado como das outras vezes.
Outras vezes? Que outras vezes? A menina se questiona. Nada em sua cabecinha, nada em sua pequena mente, por mais que se esforce, consegue lhe confirmar de que aquilo, aquela estranha dança, aqueles estranhos carinhos possam ter acontecido outras vezes…
Os dedos do homem, os dedos daquele homem seguem avançando, deixando a garotinha cada vez mais vulnerável, aflita, desconfortável e mergulhada num mar de confusão mental, como se algo tivesse se quebrado dentro de si, ao passo que uma pressão absurda toma progressivamente conta de sua cabeça e de suas articulações ao ponto de não permitir que ela perceba que está sendo observada por um menino, um garotinho que está volitando à altura do teto e que parece ter a mesma idade que a sua. E esse menino, esse garotinho, ao que tudo indica, consegue manter uma distância emocional de tudo aquilo que está acontecendo ali, tão próximo, enquanto flutua, manipulando apenas com a força da mente o forte apache da garotinha com seus índios, cowboys e cavalos.
22 de fevereiro, 1977, terça-feira de carnaval
Ronaldo, apenas com uma toalha em volta da cintura, subiu com os pés descalços vagarosamente cada degrau rumo ao primeiro andar da casa dos pais, ao passo que murmurava, sem perceber, a letra daquela canção setentista que Norma e Antoniel adoravam, mas que ele sempre odiara e que jamais fizera questão em aprender de maneira espontânea, ao mesmo tempo que acarinhava, com certa afetação, os corrimões que ladeavam a escadaria. O rosto, ele podia sentir, estava afogueado. Assim como também podia sentir a adrenalina sendo descarregada na sua corrente sanguínea, o raciocínio se tornando mais rápido, as pupilas dilatadas, os pulmões trabalhando a mil, e não obstante, à margem de todas aquelas sensações aflitivas, também experimentava, sabia-se lá Deus como, uma calma absurda.
Degrau por degrau…
A canção setentista, a maldita canção setentista sendo balbuciada por seus lábios…
Súbito, uma pressão absurda tomou conta progressivamente de sua cabeça e também de suas articulações, até que, sem alternativa, se viu forçado a estacionar, revirando os olhos em seguida, movimentos involuntários e repetitivos, de maneira bem dramática, para, no instante seguinte, voltar à sua morosa escalada, empertigando as costas até então ligeiramente curvadas.
Agora sim, Ronaldo ouviu em sua mente, estou no controle, antes de ser arremessado de forma mais que inesperada para um cenário de completa escuridão.
— Agora sim, estou no controle — Lucas repetiu entredentes, triunfante, após finalmente ter conseguido emergir.
Ele era mais forte, mais ágil, mais firme, mais decidido. Tudo o que Ronaldo não poderia ser. Nem se quisesse.
— É preciso de colhões pra fazer o que precisa ser feito — Lucas asseverou, já alcançando o topo da escadaria — Situações extremas, medidas extremas — estufou o peito, arqueando um tanto afetado uma das sobrancelhas — Eu bem que tentei manter o pamonha longe de todo esse inferno, mas a ideia fixa de resgatar a Bruninha, a Bruninha… — repetiu o nome da menina num tom entre jocoso e revoltado — Espero que essa garota não crie problemas. Já não basta a outra.
Concluiu, dando de ombros, para tão logo deixar o último degrau para trás e atravessar, também sem pressa, um curto corredor até, por fim, estacionar frente à porta entreaberta do quarto dos pais de Ronaldo.
— Francamente — sussurrou com desprezo — O pamonha aguentou muita coisa desses dois porcos. Para o bem ou para o mal já estava mais do que na hora de alguém intervir. E no final das contas, não vai ser a primeira vez que eu tenho de assumir o comando simplesmente porque esse idiota não consegue enfrentar alguma coisa.
Nem bem terminou seu escrutínio, Lucas respirou fundo, ajeitou o sexo sob a toalha e então escancarou a porta da alcova, daquela infame alcova sem sequer se dar ao trabalho de relancear o entorno, encontrando Antoniel e Norma, sentados à beira da cama, seminus: ele, de cueca vermelha; ela, vestindo um conjunto de lingerie branco.
Os pecados da alma, esses sim, são vergonhosos e a alma desses dois está chafurdada na lama, Lucas repetiu e repetiu dentro de sua mente, de sua consciência, dentro da mente de Ronaldo, do subconsciente de Ronaldo, ao passo que massageava a toalha, passando a mão descaradamente sobre a virilha, sobre o sexo…
— Caralho. Pelo jeito lavou até a alma.
Observou Antoniel, mordiscando os lábios, não deixando de medir de cima a baixo o corpo seminu do filho, até ordenar para que se aproximasse, indicando o espaço na cama entre ele e Norma.
Lucas atendeu de pronto, caminhando a passos firmes enquanto tratava de assegurar um sorriso cínico nos lábios repuxado para um dos lados do rosto. No entanto, antes de se sentar entre os pais de Ronaldo, pôde vislumbrar um vestido disposto atrás dos dois, estirado sobre o lençol; um vestido da cor vermelha, o mesmo tom de vermelho da cueca que Antoniel usava. E nitidamente aquele não era um vestido para uma mulher adulta, isso qualquer um podia perceber em questão de segundos.
— Tire isso.
Lucas mal teve tempo de voltar a atenção para o que estava acontecendo, pois a toalha que trazia envolta da cintura já havia sido arrancada, liberando o caminho para que as mãos dos dois, dos pais de Ronaldo, começassem a percorrer todo o seu corpo, o corpo de Ronaldo, o corpo franzino do adolescente. Gestos que iam e vinham, ora com serenidade, ora com violência, à medida que Antoniel e Norma trocavam olhares carregados de volúpia e cumplicidade.
Olhando para baixo, para a infâmia, para o lamaçal que os pais de Ronaldo teimavam em se afundar mais e mais, Lucas respirou fundo e então começou a cantarolar a canção setentista, aquela mesma canção setentista que Ronaldo odiava.
Ronaldo abriu os olhos e os moveu de um lado para o outro sem a mínima noção de onde pudesse estar enquanto sentia uma comichão começando a tomar conta de seus pés. Baixou, então, a cabeça, obstinado, encontrando os pés descalços e daí, num rompante, passou a mexer com cada um dos seus dedos, estimulando-os, como se para ter certeza de que ainda mantinha o controle da coordenação sobre aquela parte do corpo, até constatar, num misto de obviedade e absurda surpresa, à medida que examinava com um quê de estranheza a toalha que envolvia sua cintura, que além de ele estar seminu, aqueles eram os seus pés, sim, eram os seus pés. Mas não compreendia o motivo daquela dúvida um tanto descabida e tampouco as razões para estar apenas vestindo uma toalha.
Ergueu a cabeça e então passou a olhar para frente e para trás repetidas vezes, inspirando e expirando com uma força descomunal, conforme analisava o local que o cercava, sem ainda conseguir reconhecê-lo, não demorando a constatar, finalmente, que estava parado em frente a uma porta aberta e que diante de si havia um cômodo que mais se assemelhava a um quarto.
E nada mais que isso.
Às suas costas, um corredor, curto, com alguns poucos quadros emoldurando imagens desconfortáveis, bizarras, deformadas, aflitas, impressionantes de se ver.
Respirou fundo, de novo e de novo, e então decidiu se locomover, entretanto, não conseguiu dar um passo sequer. Mas, veemente, insistiu, lutando contra uma inesperada inércia das articulações, dos músculos, até se dar conta de que já não se encontrava mais parado defronte àquela porta aberta. Por incrível que pudesse parecer, ele estava dentro do cômodo, daquele cômodo que de fato era um quarto, com uma cama de casal, poucos móveis, duas janelas, cortinas e tapetes, apesar de não se dar conta de como fora parar ali.
Onde estou? O que está acontecendo?, questionou, por fim, um tanto vulnerável, enquanto começava a lidar com a desorientação espaço-temporal acompanhada de uma inegável sensação de súbito despertar, assim como também se sentia tomado por um latente pressentimento de hesitação, algo dentro de si que lhe dizia para não seguir adiante, para recuar sem nem pensar duas vezes.
Mas para onde?
Realmente Ronaldo não queria avançar ou sequer regredir. Na verdade, não tinha noção do que pretendia fazer naquele momento a não ser entender o que estava acontecendo.
Cerrou os olhos, inspirando fundo, bem fundo, expirando, de pronto, sem pressa, tentando manter uma respiração consciente e controlada ao passo que sua mente foi sendo foi dominada por um sem-número de sensações, algumas delas desconhecidas por completo, como se pertencessem a outra pessoa, a um terceiro. Impressões seguidas de pensamentos mal formados e dinâmicos e também de uma sucessão de imagens insuportáveis, ora estáticas, ora potentes, se alternando aleatoriamente.
Sim. Lembro-me muito bem dos instantes finais daqueles dois porcos e vou confessar que não sinto nenhum remorso pelo que fiz. Nada. Nem uma ponta de arrependimento. E ainda consigo enxergar nitidamente os olhos deles enquanto suplicavam pela vida, amarrados à cama, buscando desesperadamente se verem livres dos nós dos lençóis que estavam prendendo suas mãos e seus tornozelos, e também das fronhas que eu havia enfiado nas suas bocas.
Ronaldo abriu os olhos, abrupto, balançando a cabeça, forte, para, então, começar a esquadrinhar o seu entorno, sendo invadido por uma sensação de desrealização, como se tudo ao seu redor, aquela cama de casal, aqueles poucos móveis, aquelas duas janelas, cortinas e tapetes fossem irreais, assim como ele próprio.
Estava sonhando? Estava perdido em algum momento entre um devaneio e a realidade? Será que havia morrido?
Olhou para trás, mirando a porta aberta e fez menção em se virar, tomar a direção da saída, mas desistiu após ser assolado por uma sensação de vertigem, discreta, ligeira, nada que lhe fizesse perder o equilíbrio, ao mesmo tempo que também, por alguns instantes, sentiu que naquele cômodo, naquele quarto, havia alguém que o estava observando, alguém que de alguma forma não conseguia distinguir e por mais absurdo que pudesse parecer, a tal pessoa, o tal terceiro, a tal entidade ou o que fosse, começou a impulsioná-lo para que seguisse adiante, em direção à cama de casal, ainda que ele se recusasse a realizar aquela marcha, enquanto uma voz dentro de si voltava a ecoar, aconselhando-o a fugir de onde estava e o mais depressa possível.
Mas prosseguiu. Sim. Ronaldo prosseguiu mesmo a contragosto, mesmo sentindo suas pernas e seus pés descalços se tornando blocos de concreto, pesados demais para que pudesse movê-los, mesmo com a advertência anônima pulsando em algum lugar de sua mente, até finalmente estacionar a cinco, seis passos de distância da cama de casal, conforme um calafrio quase incontrolável começou a tomar conta de si, acompanhado de uma crescente aceleração no ritmo da respiração e de uma opressão gigantesca no peito.
— Onde eu estou?
Como se não bastasse o contrassenso de tudo que estava acontecendo, aquele cenário absurdo se tornou ainda mais paradoxal quando Ronaldo involuntariamente se viu cantarolando uma canção setentista que seus pais adoravam, mas que ele sempre odiara e que jamais fizera questão em aprender de maneira espontânea, apesar da insistência de Norma e Antoniel. Todavia, a letra e a melodia daquela canção se foram tão rápido como surgiram e Ronaldo então começou a sentir pontadas na testa que acabavam por reverberar na nuca, a sentir dores nas costelas, no couro cabeludo, a sentir um incômodo na virilha. Da mesma maneira como também voltou a ser assolado por uma recorrente sensação de súbito despertar acompanhada da desorientação espaço-temporal, de ansiedade, instabilidade, de um mal-estar crescente escoltados por uma falta de ar, uma sudorese intensa, espasmos musculares, frio e calor.
Onde estava? E há quanto tempo? O que estava acontecendo com ele, afinal?
Nada. Exatamente nada…
Uma voz… Uma voz…
Nenhuma pena, nenhum segundo sequer de pesar diante daqueles pares de olhos que pareciam órbitas prestes a saltarem das cavidades, divisando o desprezo, o ódio e o escárnio que eu lhes desferia.
Uma voz que parecia preencher todos os cantos e recantos daquele quarto…
Que prazer imensurável a repercussão em meus ouvidos, proporcionada pelo som dos gemidos abafados daqueles dois porcos…
Ronaldo esquadrinhou novamente o seu entorno, aguçando a audição à medida que sentia a dor na testa que reverberava na nuca, começar a se intensificar.
Não. Não. Eu não fui culpado, doutora. Nem eu e tampouco minha irmã, Laura. Ela fez o certo ao fugir, ainda que tenha me deixado para trás, ainda que tenha NOS deixado para trás…
— Quem está aí? — Ronaldo questionou; um gosto vagamente metálico tomando conta de sua boca.
Os sonhos são uma loucura passageira e a loucura um sonho que dura, não é mesmo?
— Quem está aí?
Ele voltou a perguntar enquanto, com os olhos semicerrados, seguia com a busca no seu arredor, acreditando, realmente, que não estava só.
Onde ela estava? Aquela pessoa? Aquele terceiro? Aquela entidade ou o que fosse? Onde estava aquela maldita voz?
Precisamos evoluir. Eu quero te ajudar e para que isso aconteça você precisa me ajudar. Há quatro meses permanecemos estagnados em um pedaço de caminho sem antes e nem depois.
A tal voz prosseguiu e sem se alterar, começando a deixar Ronaldo um tanto intimidado. Era uma voz rouca, ele pôde distinguir; uma voz cavernosa, uma voz masculina se esforçando em distorcer a própria voz, tornando-a mais aguda, mais delicada; tentando parecer feminina, desagradavelmente feminina.
A dor nos induz a agir…
Era uma voz feminina. Sim. Sim. Sim. A voz não era masculina e não estava tentando parecer o que não era, Ronaldo concluiu, por fim, abrindo os olhos, o peito arfando, a dor na testa ainda reverberando na nuca; a crescente sensação de um mal-estar cada vez mais pungente.
Fuja!
A advertência, aquela anônima advertência voltou a pulsar em algum lugar de sua mente…
Ronaldo inalou o ar com certa dificuldade, um medo profundo se enraizando… Ao menos os espasmos musculares e os tremores haviam sumido…
Controle. Controle.
De repente, um silêncio, um longo silêncio e a voz, a tal voz que rompia por todo o quarto, havia desaparecido, Ronaldo apurou, tal como a voz que pulsava em algum lugar de sua mente. Ambas se diluindo até não deixar nenhum rastro, evaporando como um líquido superaquecido mesmo sem atingir o seu ponto de ebulição. Ele, então, decidiu aproveitar aquela trégua para resgatar o mínimo que fosse de sua percepção sensorial e intelectual. Precisava interromper o sistema, reiniciar o seu cérebro, precisava ultrapassar a névoa mental que teimava em não se dissipar dos corredores labirínticos de sua consciência.
Fechou e abriu os olhos, e de novo, de novo e mais uma vez, se esforçando para colocar tudo e todas as coisas em seus devidos lugares ao mesmo tempo que se sentiu impelido a olhar para trás e para todos os lados a fim de confrontar quem quer que fosse que o estivesse observando.
Nada. Um nada se estendeu diante de si até começar a tomar formas embaçadas e reticentes, até ele, Ronaldo, se ver perscrutando um foco disforme no reflexo de um espelho. Imagens e sensações escoltadas por um calafrio repentino e quase incontrolável que percorreu todo o seu corpo numa velocidade inimaginável, à medida que uma opressão gigantesca voltava a apoderar-se de todo o seu peito, potencializando o arquejar de sua respiração conforme toda a cabeça ia sendo tomada por uma dor excruciante, parecendo que iria se partir em mil pedaços até, novamente, uma sensação de vertigem assolá-lo, discreta, ligeira, nada que lhe fizesse perder o equilíbrio.
A cama de casal…
Por um instante, breve, talvez, Ronaldo vislumbrou a cama à sua frente, que estava vazia…
Ou talvez não.
Semicerrou os olhos para ter certeza e percebeu que na verdade duas pessoas jaziam sobre ela. Porém, de súbito, sentiu a visão turvar, acompanhada por uma dificuldade enorme de concentração, dificuldade que não se prolongou, e daí, com notável nitidez, entreviu, deveras, que realmente havia, sim, duas pessoas deitadas, uma mulher e um rapaz, não, não, ele examinou com um pouco mais de atenção, era uma mulher e um homem, um homem corpulento, rosto redondo… E estavam nus… E com os olhos arregalados, parecendo divisar algo terrível.
Instintivamente, Ronaldo baixou os olhos e observou admirado o seu próprio corpo nu, sem saber, sem conseguir se lembrar de quando havia tirado a toalha que envolvia sua cintura. Os pés seguiam descalços, constatou tomado novamente por um misto de obviedade e absurda surpresa, conforme voltava a ser assolado pela falta de ar, pela sudorese, pelos espasmos musculares, assim como o gosto metálico na boca retornava com mais intensidade. Estava de fato se desestabilizando, certificou-se, erguendo os olhos na direção da cama.
Quem eram aquelas pessoas? Por que estavam ali, daquela forma, nuas e por incrível que pudesse parecer alheias à sua presença? Precisava sair daquele quarto. Sim. Sim. Em definitivo precisava fugir e acordar, tomar consciência do que fosse preciso.
Decidiu se locomover, entretanto, não conseguiu dar um passo sequer. Mas, veemente, insistiu, lutando contra a inércia das articulações, dos músculos, lutando contra a dor excruciante na cabeça. Foi quando, de novo, notou a estranha presença de um terceiro, de uma pessoa que novamente o impulsionava a seguir adiante, só que com a determinação de fazê-lo se aproximar de vez da cama de casal.
Nesse instante, por um nanossegundo, talvez, Ronaldo estranhamente acreditou não ser mais um garoto de quinze anos, mas, sim, um homem de meia-idade aprisionado no corpo de um adolescente, como uma punição por ter ousado considerar se sua vida, preenchida por um sentimento de abandono e vazio, merecesse ter sido vivida ou não, tal qual a de Sísifo, personagem de Albert Camus.
Mas ele prosseguiu — como determinado por aquela estranha presença —, sim, mesmo a contragosto, mesmo sentindo cada vez mais suas pernas e seus pés descalços se tornando blocos de concreto, pesados demais para que pudesse movê-los até, por fim, alcançar a beirada da cama, passando naturalmente a observar com um pouco mais de atenção os dois corpos nus, notando, inclusive, que havia um vestido vermelho estirado sobre eles.
Quem eram aquelas pessoas? Por que estavam ali, daquela forma, nuas e inacreditavelmente ainda alheias à sua presença?
Ronaldo titubeou ao mesmo tempo que sentiu a visão turvar mais uma vez. O gosto metálico na boca persistia, seguido por uma inesperada sensação de sonolência e daí fez menção em fechar os olhos, mas não, não podia cerrá-los. Precisava manter-se vigilante, contudo, tinha certeza de que não conseguiria assegurá-los abertos por muito tempo, pois suas pálpebras estavam ficando extremamente pesadas…
Só teve tempo de vislumbrar a imagem de uma mulher sentada no final de uma escadaria, segurando um celular, olhando na sua direção com um interesse gentil antes de ele sentir uma pancada surda nas costas.
Até você se tornar consciente, o inconsciente irá dirigir sua vida e você vai chamá-lo de destino, Ronaldo, afinal, a mente reina, mas não governa.
Sanidade… Loucura… Qual a linha que as separa? O que define a lucidez? O que sentencia as alucinações? Quem são os verdadeiros sãos? Aqueles que têm olhos para ver e coragem para expor o que foi visto e sentido, enfrentando toda sorte de descrédito? Ou aqueles que se adéquam a parâmetros e limites impostos por um sistema cuja finalidade é tão somente explorar a mente humana, testando capacidades e delimitando fronteiras, reduzindo essas mentes em meros experimentos? Ou será a própria mente humana tão poderosa a ponto de criar um mundo, um micro universo dentro de si, enquanto você, “o louco”, ouve uma voz dentro de sua cabeça que se passa por você, que finge ser você, que é tão familiar que parece de fato ser você?
Psicopatia… Esquizofrenia… Remédios e mais remédios tentando silenciar as vozes em nossas mentes, mas somos partes de um quebra-cabeça que não conseguimos entender ou talvez sejamos impedidos de compreender, de mover uma peça, aquela peça, a fundamental que nos fará entender tudo, enxergar o todo.
Ou talvez não.
Talvez a nossa mente, assim como o universo, esteja muito além da nossa compreensão e o sistema, o tal sistema, exista apenas para nos poupar de possíveis frustrações e até mesmo da autodestruição.
A dor… As dores… A verdade…
A verdade é algo estranho que buscamos desesperadamente esquecer enquanto suprimimos, cerceados por um silêncio mordaz, determinadas lembranças para sobreviver. E as consequências dessa fuga? Dor e agonia!
Sentimentos que pautam o nosso destino, conduzindo-nos em algum momento de nossas vidas para uma direção inadequada, consciente ou inconscientemente, pois só podemos ver o que podemos tolerar. E então ela surge, a escuridão, e com obstinado prazer puxa a luz pra dançar, afinal, enquanto o consciente vacila, o inconsciente age.
10 de fevereiro, 2017, sexta-feira à noite
Ronaldo desperta, abrindo os olhos num sobressalto. Há um choro de uma criança, um lamento longo, cheio de dor que não sabe ao certo de onde vem. Ele meneia a cabeça — que dói um pouco —, rápido, tentando identificar a origem daquele pranto, mas diante de si há apenas escuridão, total, nenhum filete de luz, nada.
Ao menos é o que lhe parece.
O choro da criança segue, contudo, não dura por muito tempo, ele constata, à medida que desorientação e debilidade valsam em sua mente de um canto ao outro conforme vai se deixando preencher por um oportuno e bem-vindo alívio ao notar a textura do sofá da sala, onde está deitado; assim como também, aliviado, vê dissipar a escuridão do seu entorno, usurpada subitamente pela luz da TV ligada à sua frente, sem som.
A TV ligada à sua frente…
A TV ligada à sua frente…
A sensação de repentino conforto é substituída no mesmo instante por uma inquietação avassaladora tão logo Ronaldo percebe-se, por fim, de volta à realidade após ter sido tragado violentamente pelo brilho da TV. Ele, a sua mente e o seu corpo estavam num lugar, sim, num estranho lugar, num espaço-tempo indefinido onde haviam se refugiado, evocou, alguma coisa aturdido, ao mesmo tempo que tomava conhecimento — e acreditava estar quase certo disso — daquele mecanismo de fuga, ainda que não soubesse como o havia acionado, como sua mente o havia ativado, porém, constatando no instante seguinte, após vaguear numa sintonia alarmante entre a epifania e a aflição, que o estressor que desencadeara aquela reação havia sido, sim, havia sido a imagem de uma mulher cujo rosto estampava muito bem as marcas do tempo.
“Depois que o primeiro véu vai ao chão, é uma questão de tempo para que os demais o acompanhem. E a partir daí, quando passamos a treinar os nossos olhos, notamos que eles se recusam a aceitar qualquer tipo de venda”.
Ronaldo balança a cabeça, rápido, e começa a piscar, uma, duas, três vezes, reiterada e demasiadamente, parando, consciente, decidido a não mais piscar, o que acaba durando não mais do que quatro segundos, pois o efeito rebote faz com que seus olhos voltem a piscar com uma frequência ainda maior para compensar a perda.
— Não, não. É impossível — ele repete num sussurro doído, os olhos fixados sobre a TV ainda sem identificar o que estava sendo exibido enquanto gesticula no ar com uma das mãos, como se afastasse algo do seu campo de visão — É impossível… Não era. Não podia ser ela… Não podia ser Gaby… Gaby…
Ronaldo se coloca de pé num salto e se dirige para a cozinha a passos largos à medida que vai lidando com a sensação crescente de que está sendo observado ao tempo que começa a ouvir as vozes, as mesmas vozes que o vem acompanhando, intermitentes, por toda a vida: primeiro a voz de uma mulher, em seguida a de um garoto, um adolescente, uma voz que sem demora é substituída por um timbre grave, mais adulto. Logo depois a voz de um homem, sim, uma voz masculina que não demora a ser substituída pela voz da mulher, retornando imperativa, tentando se sobressair entre as demais, entretanto, sem sucesso. Todas essas vozes se manifestando quase que simultaneamente, contribuindo ainda mais para a desorganização, para a desconexão de seus pensamentos.
— Eu não a vi. Eu não a vi. Eu não a vi. Ela está morta! Gaby está morta! — Ronaldo repete e repete agressivo, confuso, suado, até alcançar a pia e abrir a torneira com uma força brutal.
A medicação… Precisa tomar a medicação, sua “automedicação”… O antidepressivo… Talvez um ansiolítico, talvez, mas só se as vozes continuarem, talvez…
Ronaldo aperta a borda da pia com uma força descomunal enquanto observa as juntas dos dedos ficarem vermelhas conforme sentimento de culpa e tristeza, mas também raiva, ódio, mágoa e repúdio lhe invadem ao mesmo tempo e de uma só vez — emoções lutando entre si para impor-se às demais; cada uma delas presentes e concretas em sua consciência.
Eu não preciso de um psiquiatra. Eu não preciso de um psiquiatra. Mas é claro que você não precisa de um psiquiatra, ele repete e repete, contudo, tem a sensação de que as palavras, essas palavras, cada uma delas não saíram de sua boca. Tem certeza de que não moveu os lábios, nenhuma corrente de ar vibrou em suas cordas vocais…
— Bipolar. Depressivo. Ansioso… — desta feita seus lábios se movem, sente o combustível, o ar passando pela laringe fazendo-a vibrar… — É isso. Sempre foi isso. Bipolar. Depressivo. Ansioso…
Ronaldo cerra os olhos e instantaneamente imagens diversas e confusas se cruzam à sua frente. De início, linhas retas de tamanhos e formas variados se chocam entre si até começarem a tomar formas, figuras detalhadas de um lugar, um cômodo, talvez de uma casa, de um apartamento, quem sabe? Há poucos móveis nesse lugar, nessa visão, móveis os quais não consegue distinguir, mas sabe que estão ali e então, de repente, surge a imagem de uma mulher, sim, ele consegue reconhecer a forma feminina, todavia, essa mulher não tem rosto. E essa mulher o empurra com força, está com medo…
Mas por quê? O que ele fez?
E daí, ela, essa mulher, dispara, correndo o quanto pode, mas ele a alcança e a imobiliza, e a mulher, a tal mulher, a tal visão sem rosto, parece falar alguma coisa, está pedindo algo, suplicando, ofegante, à medida que o encara com firmeza, Ronaldo pode constatar nos olhos dessa mulher, dessa tal mulher, olhos aterradores, os cantos da boca repuxados para trás, o rosto como se estivesse sofrendo uma contração…
Mas o quê ela está implorando? O quê?
Gaby!
Gaby!
A tal mulher sem rosto se transforma de um instante para o outro em Gaby, sua companheira de anos atrás.
Gaby…
Gaby…
Ronaldo abre os olhos. Por um instante não sabe se está vivenciando o ilusório ou a realidade.
— Bipolar. Depressivo. Ansioso — dispara; a respiração ao mesmo tempo curta e acelerada — Bipolar. Depressivo. Ansioso… E também com uma tendência absurda para fantasiar situações, criar memórias falsas.
Com os dedos comprimindo mais e mais a borda da pia, reproduz e insiste no autodiagnóstico como sempre faz quando se depara com essas oscilações, essas alternações, esses cenários. Precisa se manter calmo, mas não está conseguindo, não está.
— Eu não preciso. Nunca precisei desses psicólogos, desses psiquiatras, desses idiotas. Eu sou bipolar. Depressivo. Ansioso. E também com uma tendência absurda para fantasiar situações, criar memórias falsas.
Ronaldo segue afirmando e reafirmando entredentes, um olhar distante, selvagem.
— Gaby… Gaby… Não era ela na TV. Não era. Apesar dos seus cabelos louros, não tão curtos como foram quando convivemos naqueles cinco anos; apesar do seu olhar, daquele olhar que eu conseguiria identificar ainda que em meio a uma multidão… Não. Não era. Não era a minha Gaby.
A medicação… Precisa tomar a medicação, a sua “automedicação”… O antidepressivo… Talvez um ansiolítico, talvez…
“Você já tem algum plano para o carnaval?”.
JP… Por que cedeu ao desembargador? Por quê?
“Ronaldo, você foi abusado sexualmente e agredido por pessoas cuja função era te amar e proteger. Não foi sua culpa. Respostas fisiológicas são involuntárias”.
— Preciso me acalmar. Preciso me acalmar.
Ronaldo diz a si mesmo, afastando-se da pia num átimo e começando a andar de um lado ao outro da cozinha, passos firmes.
— Eu não a vi. Eu não a vi. Eu não a vi. Gaby está morta! Gaby está morta!
Suas idas e vindas continuam com uma fúria crescente, enquanto, de assalto, surgem em sua mente imagens do desembargador e Márcio Antônio na cama, realizando fantasias, buscando prazer forte, intenso e revigorante como adolescentes movidos por uma overdose de testosterona ao invés de dois homens maduros, no alto dos seus cinquenta e cinco anos.
— Uma tendência absurda para fantasiar situações, criar memórias falsas… É isso. É isso… Uma tendência absurda para fantasiar situações, criar memórias falsas…
Ronaldo ecoa e ecoa e ecoa, ao passo que em sua mente, agora, surgem imagens de Márcio Antônio no colégio onde leciona. Ele está parado diante da mesa de Lucas, descansando entre uma explicação e outra enquanto folheia um livro ou um gibi… Não, não, folheando um livro ou um mangá, isso, mangás que o garoto deixa ou esquece sem querer, conforme ambos, professor e aluno trocam olhares ambíguos, convergentes, conflitantes, cúmplices, conforme ele, Ronaldo, começa a piscar, uma, duas, três vezes, reiterada e demasiadamente, parando, consciente, decidido a não mais piscar, o que acaba durando não mais do que quatro segundos.
“Nós iríamos nos arrepender… Eu iria me arrepender…”.
“Arrepender do que, professor? Podemos ser amigos…”.
“Não. Não podemos…”.
Ronaldo estaca tão logo se sente invadido por um mar de emoções e sensações contraditórias, com sua mente indo atrás de alguma referência, um nome, um sinal, um bordão, à medida que num nanossegundo, talvez, passa a estranhamente acreditar ser um garoto de catorze, quinze anos aprisionado no corpo de um homem de meia-idade conforme imagens pálidas, confusas, qualquer coisa disforme, começam a se formar, alinhando-se e reunindo-se aos poucos, ao tempo que é atingido por um pressentimento híbrido, uma sensação mesclada a um déja vu, remetendo-o a um passado que faz seu coração acelerar diante de uma recordação perdida… arbitrariamente perdida.
No entanto – escutem bem -, todo homem mata aquilo que ama;
Com galanteio alguns o fazem, enquanto outros com a face amargurada…
Camiro… Camiro…
A imagem bela e instigante do professor de geografia, bem, bem diferente dos outros professores caretas, monocromáticos, surge de assalto.
Uns matam o próprio amor quando ainda jovens,
Outros o fazem na velhice…
Camiro… Camiro…
Ronaldo vislumbra, sim, ele pode divisar com perfeição os cabelos do professor, os cabelos castanhos, levemente desgrenhados lhe cobrindo as orelhas, não passando da altura do pescoço; assim como também pode avistar os olhos grandes de Camiro, olhos de um castanho claro arrebatador, hipnótico… E ele, Ronaldo, está lá, de volta, sentado em sua carteira, no colégio, um adolescente de compleição magra, pele clara, as costas ligeiramente curvadas, detentor de uma personalidade introvertida, de uma timidez alarmante, extremamente afetado pelos abusos de seus pais.
Ronaldo sente o ar faltar e daí se lembra de que é preciso respirar, forte, para que possa se manter vivo, constatando, um tanto aliviado, não, não, angustiado, sim, infelizmente ainda angustiado, que a distância de quatro décadas que o separam do seu eu adolescente, que o distanciam do professor Camiro, não passou; manteve-se inerte, petrificada pela dor, pelas dores… Ele, o tempo, ao contrário do que dizem, não detém o poder de tudo curar.
Camiro…
Camiro…
Camiro…
As recordações seguem girando em sua cabeça, perseguindo-o como sombras indesejadas, torcendo em seu peito como uma espada viva.
Ele me salvou… Mesmo que… Mesmo que…, Ronaldo balbucia, sentindo-se mal e desorientado. Há quarenta anos não se recordava dele, do professor de geografia. Há quarenta anos ele aprendera, ele se condicionara a não se lembrar, pois a dor, as dores, a verdade é algo estranho que as pessoas buscam desesperadamente esquecer enquanto suprimem com um silêncio mordaz determinadas lembranças para, enfim, sobreviver. E as consequências dessa fuga? Dor e agonia! Conscientes ou não.
— A TV está ligada, na sala, sem som… Gaby… Eu não a vi. Eu não a vi. Eu não a vi. Gaby está morta!… A dor, as dores, a verdade é algo estranho que as pessoas buscam desesperadamente esquecer.
Ronaldo balança a cabeça, forte, uma violência quase desmedida ao passo que ouve as vozes, elas, as vozes que estão voltando, as mesmas vozes que o vem acompanhando, intermitentes, por toda a vida.
“Meninos e meninas, as aulas de hoje estão suspensas. O professor Camiro, infelizmente…”.
Camiro, Camiro, ele não conseguiu salvá-lo…
Camiro…
Ronaldo reinicia a batalha para reprimir aquelas recordações até que o choro de uma criança, um lamento longo, cheio de dor, volta a inundar os seus ouvidos…
Precisa salvar Márcio Antônio, Ronaldo conclui num átimo, retomando seu ir e vir numa fúria crescente. Sim. O amigo está em perigo e precisa ouvi-lo, pois ele, Ronaldo, sabe como essa história irá terminar… Lucas e o pai, o desembargador e o filho, eles se parecem, eles se fundem, os limites entre eles se confundem, se combinam, se separam, se misturam… Sim. Sim. Márcio Antônio tem que escutá-lo de uma vez por todas!
“O que seu pai fez foi horrível, Ronaldo. Entretanto, a orientação sexual de uma pessoa não pode ser causada ou sequer modificada por abuso ou agressão sexual… Você não deve acreditar nessa questão. É mais um sofrimento que você não precisa carregar”…
JP… Por que cedeu ao desembargador? Por quê? E por que cedeu a todos os outros, a todos aqueles jovens? Ele não é gay, não é. Não! Não é um homossexual, um mulherzinha, um veadinho, um mariquinha. Não é!
Por um instante, por um breve instante, Ronaldo tem a impressão de não conseguir ver mais nada à sua frente ou ouvir qualquer coisa ao seu redor, até ser despertado mais uma vez pelas vozes, as mesmas vozes que o vem acompanhando, intermitentes, por toda a vida, se manifestando quase que simultaneamente, contribuindo ainda mais para a desorganização, para a desconexão de seus pensamentos.
— Fodam-se as doses de uísque que tomei.
Ronaldo dispara tão logo alcança a gaveta de remédios, engolindo o antidepressivo e em seguida o ansiolítico, que descem queimando, arranhando sua garganta.
— Eu não a vi. Eu não a vi. Eu não a vi. Ela está morta! Gaby está morta! Camiro está morto!
De repente, um som…
A merda de um som…
Um som que parece familiar, contudo, distante…
É o celular, Ronaldo finalmente consegue distinguir e num salto abandona a cozinha e corre na direção do sofá, na sala, se atirando esbaforido sobre o estofado: no visor do aparelho, quatro ligações perdidas de JP.
15 de março, 2017, quarta-feira
Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro
— Está tudo bem, Ronaldo? — Júlia Mathias se inclina um pouco para frente, tentando encontrar o olhar do paciente, porém, não obtendo sucesso, retorna ao encosto da cadeira — Podemos continuar?
Ronaldo segue sentado sobre um pequeno sofá, não muito distante da cama de solteiro e do criado mudo, únicos móveis permitidos — além da cadeira onde está a psiquiatra lhe observando — no quarto de 3.20 x 3.20 que ocupa no Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro, desde sua chegada ali, há quase duas semanas. Absorto, está encarando a doutora já há alguns minutos, enquanto em sua mente tanto ela, a psiquiatra, quanto Bruna, a pequena Bruna, com sua estatura minguada para os onze anos que carrega, lhe sorriem um sorriso amável, convidativo.
Um silêncio desalentado segue preenchendo o quarto durante os minutos que se passam à medida que Júlia Mathias prossegue estudando o paciente, esquadrinhando atentamente sua expressão, aguardando, ao menos por um tempo, que ele exteriorize o que seja. Em contraponto, Ronaldo a observa de soslaio vez em quando, constatando a cortesia lutando com a ansiedade, sentindo-se um pouco desconfortável até que decide, por fim, se manifestar.
— Estou sedado, não estou? — o timbre vocal de Ronaldo ressurge um tanto claudicante, parecendo arranhar sua garganta, uma variação extrema entre grave e agudo, como um instrumento musical desafinado.
— Medicado. Sim.
Ronaldo baixa os olhos e com pesar fita os seus pulsos atados deixando escapar um suspiro dramático seguido por um gemido para, tão logo, fixar novamente a atenção sobre a psiquiatra.
— Mas nada que o impeça de elaborar perguntas e respostas compreensíveis — Júlia Mathias complementa enquanto faz algumas anotações em sua agenda — Nada que rebaixe o seu nível de consciência — conclui, voltando a encarar o paciente.
Imagens da pequena Bruna começam a desfilar na mente de Ronaldo. Em todas elas a irmã caçula está sorrindo, brincando, tentando parecer o mais feliz possível, um esforço que Ronaldo reconhece estar fazendo a fim de evitar trazer à tona o mundo de ansiedade, medo e aflição que Bruna presenciava.
— A senhora se parece demais com uma pessoa, doutora…
Júlia examina rapidamente algumas notas na agenda e em seguida volta a se inclinar na direção de Ronaldo.
— No nosso primeiro encontro, há uma semana, você disse ter me reconhecido…
Ronaldo não responde, não expressa nenhuma reação. Limita-se a olhar para a psiquiatra de forma estranha. Em suas pupilas dança um brilho de dúvidas enquanto Júlia Mathias retorna ao encosto da cadeira, juntando os dedos sob o queixo conforme os segundos se eternizam.
— E as dores na cabeça? — Júlia decide seguir adiante — As raras alucinações auditivas?
Ronaldo permanece mergulhado em sua mudez. Na fisionomia, o retrato de uma piedade ardorosa; a respiração, ritmada. Está lutando com sua mente, com seu cérebro, com suas lembranças para garantir uma alegria quimérica para a irmã caçula, que desapareceu de sua vida logo depois que ele a salvou dos algozes que o destino lhes dera como pais, ao mesmo tempo que, de súbito, as duas, a pequena Bruna, e a doutora sentada à sua frente, começam a se assemelhar. As imagens de ambas parecem se fundir, se confundir, se combinar e se misturar cada vez mais…
— Está tudo bem, Ronaldo? — Júlia Mathias, recolhendo os dedos de sob o queixo, questiona ao perceber as mãos do paciente agarradas aos braços do pequeno sofá.
— Por que você fugiu Bruna? — Ronaldo, determinado, lança sua pergunta enquanto meneia a cabeça e aperta com mais força os braços do sofá. Em nenhum instante ele deixa de encarar a médica, contudo, seu olhar parece vislumbrar algo além dela — No final das contas, você foi tão ingrata quanto a Laura…
O paciente parece estar seguindo para um polo mais acima. Um lado oposto do estado depressivo que vem mantendo até então.
Júlia Mathias anota rapidamente em sua agenda voltando a atenção de pronto ao paciente.
— Bruna… Bruna… — Ronaldo segue fitando a psiquiatra com um olhar desconfiado — Eu a salvei das mãos daqueles verdugos, daqueles algozes que o destino nos presenteou como pais. Você se lembra, não é mesmo?
— Ronaldo, quem é Bruna?
— Você — Ronaldo não titubeia em responder. Lágrimas começam a se formar no canto dos seus olhos enquanto ele coça nervosamente a nuca.
Surto psicótico?
O paciente, segundo registros, é filho único.
Júlia Mathias assinala novas anotações em sua agenda.
— Ronaldo — ela se mantém ereta e a uma distância necessária do paciente. Não deve confrontá-lo por agora e tampouco demonstrar dúvidas de seu delírio — Eu estou aqui para ajudá-lo — Júlia busca transmitir calma num tom de voz circunspecto.
Ronaldo, agora, a encara com um olhar sombrio, distante. A psiquiatra lhe sorri. Sim. Ele tem certeza que ela agora está sorrindo para ele enquanto a pequena Bruna está sentada à sua frente, enquanto as mãos da doutora se contorcem e se tornam serpentes enlaçando a irmã caçula… Elas, as duas, Bruna e Júlia Mathias se parecem, os limites entre ambas se confundem, se combinam, se separam, se misturam…
— Não a quero aqui, doutora. Pode parecer que não tenho escolha, mas a senhora, eles… Eles a convenceram, não foi? Estão enganados. Todos vocês. Onde está Gaby? Ela não morreu. Eu a vi… eu… eu…
Ronaldo não consegue terminar o que tem pra dizer, pois lágrimas escorrem em profusão sobre o seu rosto enquanto Júlia Mathias insere mais um registro em sua agenda.
Gaby… Ela realmente está certa: ele não a esqueceu!
17 de setembro, 2017, domingo
Hospital das Clínicas Juliano Pereira de Aguiar
Sob o olhar perscrutador do enfermeiro alto e truculento que o acompanha a poucos passos de distância, Eve caminha, sem pressa e num mutismo absoluto, naquele espaço destinado à interação, com seus sofás, mesas e aparelhos de som e televisão — todos desligados —, em seguida pelo ambiente multifuncional reservado às refeições, aos atendimentos individualizados e também às atividades de terapia ocupacional, tomando de volta, por fim, a direção rumo ao pavilhão da ala vermelha do hospital, passando pelo espaço reservado à Administração, que ainda permanece vazia, sem a presença da enfermeira-chefe ou qualquer outro profissional responsável pelo plantão. Aliás, uma área tão vazia, estranhamente vazia como cada um dos espaços pelos quais havia jornadeado desde que seu ilustre companheiro o tinha buscado no quarto para aquele passeio, sem lhe responder pergunta alguma, avançando ambos, mergulhados no silêncio atroz daquele lugar compartilhado por mortos e sobreviventes.
Onde estão todos? Os outros pacientes? Os outros funcionários?, Eve se questiona, sem mover os lábios, enquanto segue examinando o seu entorno, buscando, absurdamente, uma certeza, um aval de que ainda estava, de fato, naquele maldito hospital psiquiátrico. Um contrassenso, óbvio, tentar encontrar um discernimento num lugar como aquele. Mas era o que lhe restava, afinal, o Hospital das Clínicas Juliano Pereira de Aguiar é o seu terreno, é o lugar onde decidira se refugiar…
Márcio Antônio…
Eve suspira um lamento tão profundo que chega a lhe doer na alma.
Márcio Antônio, o que não daria para reencontrá-lo… Quando tudo isso acabar…
Eve respira fundo mais uma vez ao passo que faz menção em estacionar e só não o faz devido o olhar reprovador de seu ilustre companheiro, um fantasma todo vestido de branco, firme, circunspecto, que o encara sempre com o mesmo cenho cerrado, carrancudo. Quando tudo isso acabar, Eve retoma o pensamento e as passadas, Márcio Antônio terá de ouvi-lo, custe o que custar. Terá de entender que Ronaldo fez o que fez para salvá-lo, que Ronaldo não suportaria ver o amigo seguir pelo mesmo caminho que o levaria ao mesmo abismo do desespero, da desolação… e da autodestruição. Não suportaria perdê-lo mais uma vez como aconteceu há anos…
No entanto – escutem bem -, todo homem mata aquilo que ama;
Com galanteio alguns o fazem, enquanto outros com a face amargurada…
A dor… As dores… A verdade… A escuridão puxa a luz pra dançar.
Uns matam o próprio amor quando ainda jovens,
Outros o fazem na velhice…
Eve deixa os ombros caírem e então segue pelo corredor, observando as paredes com flores pintadas como personagens deformados em muros de escolas infantis, segue esquadrinhando outros desenhos, traços diversos, mágicos e divergentes — realidades distorcidas que escapam às palavras —, expondo as vivências demasiadamente dolorosas dos seus autores, transmitindo suas inconvertíveis e paulatinas deteriorações psíquicas.
Por um instante tem a impressão de que esses desenhos estão mais claros, alguns deles lhe parecem meros rabiscos, como se tivessem sido submetidos a alguma espécie de limpeza, como se alguém tivesse esfregado e esfregado por sobre eles a fim de removê-los. Mas não. Os traços fortes deixados pelos pacientes permanecem ali, como desde sempre. Os traços registrando seus distúrbios e transtornos, seus traumas… Traços que lhe parecem tão familiar… Um dia, quem sabe, talvez tome coragem para também deixar sua marca, a marca dos monstros que o acompanham.
Eve balança a cabeça, desolado. Está cansado, um tanto sonolento e começando a ter dificuldades de concentração, reconhece, mas segue adiante, reduzindo um pouco suas passadas, retardando o máximo possível o seu retorno àquele quarto, o mesmo quarto no qual se sentia protegido de tudo e de todos tão logo chegara ali, mas que nos últimos tempos o vem deixando irritado, muito, muito mais irritado e, algumas das vezes, até mesmo exasperado.
“Para nos conhecermos é preciso nos questionar”.
A voz de Júlia Mathias, uma voz firme, com propriedade, irrompe em sua mente.
“Em qualquer experiência de sofrimento, existe uma parte de realidade”…
Não.
“Evoluímos bastante, Ronaldo. Mas agora, já há algum tempo, você estacionou. O que te impede de continuar?”.
Não. Não.
Eve meneia a cabeça com força enquanto é assolado por uma ligeira sensação de falta de ar.
Não. Eu não a quero, Júlia Mathias… Ele repete balançando a cabeça de novo e de novo e de novo conforme se deixa recostar na parede atrás de si. Eu não a quero, eu não a quero. Por que você insiste? O que você está fazendo comigo? Por que venho me permitindo ceder?… Eve, entredentes, reincide nos seus questionamos, em sua determinação, enquanto o enfermeiro alto e truculento, com o mesmo cenho cerrado, carrancudo, apenas o observa sem se mover.
Os pulsos… Uma dor repentina nos pulsos faz com que Eve, ato contínuo, baixe os olhos. Por que seus punhos estão enfaixados? Não se recorda de tê-los vistos atados já há algum tempo, pondera, sentindo a falta de ar se tornando cada vez mais constante, pesada, até ser revertida num incomodo aperto no peito que sobe dos pulmões para o cérebro com a velocidade de um relâmpago, paralisando de imediato seus braços e pernas.
O enfermeiro continua em pé, não muito distante, tão somente contemplando o paciente, como se estivesse aguardando algo contundente acontecer ou uma ordem para interceder sobre ele, à medida que Eve começa a enxergar sombras e vultos transitando por trás do homem alto e truculento. Sombras e vultos que, sem demora, vão tomando forma, corpo, transformando-se um a um até assumirem as feições dos demais pacientes do hospital, alguns transitando aleatoriamente, outros parecendo saber muito bem onde estão.
A sensação de sono e a dificuldade de concentração estão cada vez mais fortes… Eve não quer… ele não quer desabar, não quer…
Eve respira fundo, fechando e abrindo os olhos repetidas vezes. Precisa enganar sua mente, seu corpo… Sim… Sim… Vai continuar resistindo até onde for possível, apesar de seus braços e pernas continuarem paralisados. Não irá contribuir com mais nada até que ela, Júlia Mathias desista, até que ela, Júlia Mathias entenda, por fim, que é a doutora Gabriela a responsável por ele. Até quando vai precisar insistir?
Gabriela… Há quanto tempo não a via? O que fizeram com ela?, Eve recapitula parecendo mais tenso que o necessário, os outros pacientes continuando a circular por trás do enfermeiro que passa a encará-lo, franzindo o cenho com mais convicção, chegando mesmo a semicerrar os olhos como se quisesse descobrir o que se passa em sua mente.
Súbito, em meio aos pacientes, às suas idas e vindas, Eve nota uma jovem de cabelos louros, curtos, bem cortados que com passadas um tanto claudicantes, lentas até, parece ir à sua direção ou em direção ao enfermeiro. Eve tem a sensação de que a conhece, uma sensação que só faz aumentar conforme a presença daquela jovem vai se tornando cada vez mais próxima. O semblante dela, ele agora pode constatar, está inexpressivo; seu olhar, absorto, amargurado; há um vinco vertical entre as sobrancelhas; ao redor da boca linhas proeminentes um tanto recuadas; as maças do rosto, menos definidas…
“Sedação e indução ao sono; redução de ansiedade e da agressão; redução do tônus muscular e da coordenação; efeito anticonvulsivante”.
Não. Não. Ele não quer desabar, não quer.
A jovem agora está bem, bem próxima, o suficiente para não deixar dúvidas de que está realmente seguindo em direção a Eve, contudo, ela o ignora veementemente, passando por detrás do enfermeiro e seguindo adiante, se misturando por entre os outros pacientes até desaparecer. Eve, então, sente garras comprimirem os músculos, obrigando-o inclinar a cabeça para trás até sentir o concreto frio da parede tocando o seu couro cabeludo.
É ela! É Gabriela! Ele constata, inesperada e surpreendentemente, como se um interruptor tivesse sido ligado em seu cérebro, antes de ser envolvido pela escuridão.
28 de março, 2017, quarta-feira
Gabriela desperta sentindo-se esgotada; a cabeça parece extremamente pesada e leva algum tempo até conseguir se localizar, estirada sobre o pequeno sofá, defronte à mesa, no pequeno escritório do seu pequeno apartamento. Um gosto vagamente metálico toma conta de sua boca, tal como também sente espasmos na laringe e uma sensação, ainda que um tanto distante, de irritabilidade. Prováveis efeitos adversos de barbitúricos que decerto identificaria em um paciente sem demora. Porém, não consegue concatenar o porquê do seu organismo estar reagindo daquela forma. Não se recorda de ter ingerido qualquer medicação, do mesmo modo como também não se recorda de como foi parar ali, naquele sofá, no pequeno escritório do seu pequeno apartamento. Aliás, não se recorda principalmente de como ou quando chegou ao apartamento.
Inspira e expira. Não sente a mínima vontade de se mover. E se pudesse, parava de respirar, agora, neste exato momento enquanto os olhos vagueiam pelo teto do pequeno escritório à medida que começa a enumerar, arbitrariamente, as sensações que vem lhe fazendo companhia já há algum tempo: cansaço físico; mudanças repentinas de humor; dificuldade de raciocínio; dificuldades no trabalho; dificuldades gástricas e intestinais… Dificuldades, dificuldades… Definitivamente está esgotada, acaba por concluir.
Ou não.
Quando essas sensações começaram a agir de fato sobre o seu organismo, sobre o seu humor, sobre sua mente? Por que lacunas parecem ocupar espaços em suas memórias?
De repente, move a cabeça, vagarosa, sem afastá-la do encosto do sofá ao mesmo tempo que começa a piscar, uma, duas, três vezes, reiterada e demasiadamente, parando, consciente, decidida a não mais piscar, o que acaba durando não mais do que quatro segundos, pois o efeito rebote faz com que seus olhos voltem a piscar com uma frequência ainda maior para compensar a perda.
O pestanejar de olhos é um instrumento preciso e útil para o estudo de certas doenças do cérebro, e a dinâmica desse movimento se torna mais elevada em pacientes esquizofrênicos ou com a síndrome de Tourette, ou ainda em portadores de discinesia tardia, Gabriela se recorda, mas não sabe ao certo como teve acesso a essa assertiva.
E se esse conhecimento efetivamente não lhe pertencesse, tivesse sido plantado em sua mente, pré-desenvolvido? Assim como todas essas sensações desagradáveis? E essas lacunas mentais? O que elas omitem?, Gabriela se permite questionar, ainda que um tanto insensata, conforme faz menção em se levantar, porém, sente a cabeça girar e desiste.
Não. Não. Isso é ridículo. Pensamentos não podem ser adulterados, forjados. Ponto. Estresse e ansiedade. É isso. São essas as atribulações reais que estão pesando sobre si, fazendo-a alimentar questões descabidas, Gabriela arremata sem mais delongas enquanto, por fim, consegue se afastar do encosto do sofá, contudo, sem se colocar de pé, assumindo, então, uma posição ereta com as mãos sobre as pernas. A preocupação excessiva que vem depositando no encontro que acontecerá dali a dois dias com o diretor do Hospital das Clínicas Juliano Pereira de Aguiar é, sem sombra de dúvida, o agente estressor responsável por desencadear todo esse mal-estar.
Por que foi convidada a assumir um caso abandonado por ninguém menos que Júlia Mathias, uma profissional conceituada na comunidade psiquiátrica e psicológica, responsável pela equipe de capacidade e sanidade para processos criminais de um centro de Saúde Mental que é referência em todo o país? Ainda mais num caso como esse, que envolve um desembargador ligado aos altos escalões da política e que tomou proporções alarmantes nas mãos da mídia sensacionalista.
Gabriela engole em seco o gosto vagamente metálico que permanece em sua boca.
Há 24 horas simplesmente sua vida deu uma guinada de 180 graus… Óbvio que ao receber aquela ligação, aquele convite, e diretamente do diretor do Hospital das Clínicas Juliano Pereira de Aguiar, ela não pôde deixar de se questionar sobre os motivos da escolha de seu nome:
- Gabriela Coutinho, 32 anos;
- Terminou a Residência Médica em Psiquiatria tão somente há dois anos;
- Ainda não tem o seu próprio consultório e possui pouquíssimos pacientes.
Com certeza outros colegas poderiam estar ocupando aquele que possivelmente será o seu lugar, colocando em prática toda a bagagem que ela ainda não possuía, Gabriela volta a ponderar, mas essa é a sua chance, a sua grande chance e jamais poderia ter recusado. Ninguém em sã consciência o faria.
Gabriela sente uma tensão no ar, nos movimentos que faz com a cabeça e nas suas próprias convicções à medida que corre os olhos em seu entorno, no pequeno escritório do seu pequeno apartamento onde, mais uma vez, por mais que tente, por mais que vasculhe sua mente, não consegue lembrar-se de como ou quando chegou até ali, como ou quando chegou àquele apartamento, ao mesmo tempo que os olhos voltam a vaguear pelo teto do pequeno escritório enquanto uma sensação de estar rodeada por um vazio, como se habitasse um nada, lugar nenhum, lhe invade progressivamente, como um copo que está sendo enchido aos poucos, como se estivesse sendo medicada em doses homeopáticas, porém, com intervelos ínfimos, tempo necessário para experimentar o avanço daquela estranha impressão de solidão mais que absoluta.
Dorlan… Dorlan… Onde ele estava?
Ele?…
Uma súbita sensação aflitiva de que precisa rever o companheiro toma conta de Gabriela ao passo que uma curiosa noção de conforto por não saber onde ele se encontrava a arrefece no mesmo minuto. Em verdade, Gabriela conclui, com certa desconfiança, que não se recorda da última vez em que estiveram juntos e simultaneamente é tomada pela impressão de que a ideia da existência, da presença de um companheiro, do seu companheiro, lhe pareça nova. Contudo, também parece sentir que essa ideia, a ideia de não estar sozinha não seja uma novidade.
Novamente ela faz menção em se levantar e novamente é tomada pela vertigem, pela sensação de que tudo está rodando, ora indo para frente, ora para trás, acompanhada de um zumbido no ouvido, náusea, espasmos na laringe, um gosto vagamente metálico na boca… da sensação, agora um tanto mais distante, de irritabilidade.
Gabriela inspira, expira, inspira e expira pausadamente pelo diafragma ao invés do peito até reunir forças o suficiente para voltar à sua empreitada de se colocar de pé, conseguindo, enfim, passando a caminhar inicialmente um bocado trôpega, apoiando-se no que podia, até alcançar a saída do escritório, parando sob a ombreira da porta aberta, de onde esquadrinha o pequeno apartamento e seu mobiliário multifuncional feito de madeira compensada, que serve de divisória entre os cômodos, sala, cozinha e quarto, como também se permite rapidamente observar o piso, inspirado nos bistrôs parisienses, com tons e padrões marcantes, erguendo a cabeça no instante seguinte antes que perca de vez o equilíbrio.
O apartamento… Uma inusitada sensação de deslocamento, de que aquele lugar não lhe pertencia cruza sua mente como um raio em noite de tempestade. Por um instante, um breve instante, Gabriela tem a forte impressão de que aquele lugar parece não se conectar com ela; tudo ali dentro, desde o mobiliário multifuncional até o piso inspirado nos bistrôs parisienses parece não fazer sentido. Como um cenário montado às pressas para o início de um espetáculo que também foi concebido tão rápido quanto. O que é um absurdo. Óbvio. Como esse apartamento pode lhe parecer estranho se é onde mora com Dorlan há… há… há quanto tempo mesmo? Cinco anos?
Ela meneia a cabeça e dá de ombros. O cérebro é uma caixinha de surpresa que pode processar lembranças e impressões que nunca existiram, repete para si mesma, impaciente e sem muita convicção, como se também essa observação não lhe pertencesse ao mesmo tempo que avista o chão próximo à porta da entrada do apartamento, o que lhe causa um súbito incômodo, quase insuportável, conforme tenta, e sabe-se lá o porquê, identificar as origens daquela sensação desagradável que está fazendo seu coração transbordar de pesar, medo e aflição. Mas não consegue. Alcança apenas a certeza, ou talvez uma contestável certeza, de que Dorlan esteja conectado, de alguma maneira, àquela sensação de mal-estar enquanto o coração arrefece.
Gabriela inspira, expira, inspira e expira de novo e mais uma vez, pausadamente, pelo diafragma ao invés do peito, engolindo em seco enquanto divisa o sofá, na sala, não muito distante, disparando, então, em sua direção, a passos largos, chegando a cambalear em algum momento até alcançar com louvor o seu objetivo, despejando o corpo sem qualquer cerimônia sobre o estofado. Suas pupilas se dilatam; o gosto metálico na boca parece estar aumentado; uma dor repentina irradia pelo baixo-ventre ao tempo que ela cruza as mãos sobre o peito, sentindo a ondulação provocada pela respiração.
Precisa focar no seu primeiro encontro com o doutor Orlando, diretor do Hospital das Clínicas Juliano Pereira de Aguiar, dali a dois dias.
17 de setembro, 2017, domingo
Hospital das Clínicas Juliano Pereira de Aguiar
Doutor Orlando observa Eve, deitado, adormecido em sua cama. Seis meses e quase nada mudou. O infeliz permanece agarrado à ideia de que Gabriela deve permanecer ali e isso só vem prejudicando a evolução do tratamento com Júlia Mathias. Tudo, tudo está a favor dele, deles: a médica, o defensor público…
Orlando respira lenta e profundamente e então, um tanto afetado, aperta o nó da gravata, ajeitando-a sobremaneira conforme corre o olhar no entorno, naquele quarto de 3.20 x 3.20, nos únicos móveis ali permitidos, a cadeira, o criado-mudo, a cama de solteiro, até fixar o olhar novamente sobre Eve.
— Situações extremas exigem medidas extremas — Ele balbucia mesmo tendo a certeza de que Eve está sedado, completamente sedado — Resta apenas um dia. Sempre restou e sempre restará. Ele nos é dado de madrugada e tirado de nós ao anoitecer… Não somos eternos… Somos o que pensamos. Tudo o que somos surge com os nossos pensamentos. Com nossos pensamentos, fazemos o nosso mundo. Sou o tempo que se esgota e só tenho essa existência para ser quem sou.
Orlando segue mirando Eve.
— Não posso e não vou perder essa guerra. Não cheguei até aqui pra nada — remata num timbre grave, carregado de indignação — Gabriela… Se ela pudesse transitar pelas três instâncias, assim como aquele professorzinho de merda, não sei o que seria de nós, o que seria de você, Eve. Aliás, se depender de mim, de nós, você numa mais verá Márcio Antônio.
27 de março, 2017, terça-feira
Um turbilhão de sensações e sentimentos domina a mente de um homem de compleição magra e costas ligeiramente curvadas enquanto ele caminha um tanto hesitante por entre as lápides de um cemitério. A cada passo a angústia, a frustração, o medo e a maldita culpa parecem fortalecer suas raízes em cada canto daquele seu coração que segue em pedaços, incapaz de aceitar aquela perda, a perda por ele supostamente provocada, ainda que não consiga entender, com o devido discernimento, o que possa ter acontecido naquela tarde, há quase vinte anos, por mais que tente se recordar, juntar as peças daquele quebra-cabeça…
Ele segue seu trajeto passando por lápides desgastadas, cruzes, querubins de pedra, asas, santos, palmas, vasos, tochas e mausoléus. Por um instante tem a sensação de que talvez também esteja morto. Sim. Que ele não exista mais, tão somente em essência, uma essência disforme, nociva e que esteja vagando, condenado, assim como Sísifo, a empurrar uma pedra até o cimo de um monte só para vê-la, então, rolar de volta, e daí repetir esse processo por toda a eternidade.
Uma chuva fina começa a cair no exato momento em que o homem se depara com o túmulo a que estava procurando. Ele para a alguns passos de distância do jazigo enquanto sente todo o seu corpo ou sua essência estremecer; enquanto sente uma dor lancinante queimá-lo como brasa, acompanhada pela insegurança, pelo mal-estar, por uma tristeza sem fim e, claro, por ela, pela maldita culpa. E tudo isso é o seu castigo. O inferno interior que carregaria para todo o sempre, a pedra que deve levar de volta e de volta e de volta ao cimo da montanha. Nos raros momentos de paz, ainda que de uma paz astuciosa, ele conseguia se questionar se algum dia ficaria livre de toda aquela dor, de todo aquele pesar…
A dor… As dores… A verdade… A escuridão puxa a luz pra dançar, Eve pondera ao passo que se ajoelha, devagar, à medida que lágrimas escorrem pelo rosto, à medida que a dor se estende de dentro de si, imensa, se alastrando por todo o seu entorno rapidamente, assumindo forma, corpo e alma conforme ele encara a lápide à sua frente.
Gabriela Coutinho
1967
1999