Este episódio contém narrativas de gatilho e de conteúdo sensíveis que podem causar desconforto:
abuso infanyojuvenil / abuso parental / confusão mental / homofobia internalizada / linguagem imprópria / violência psicológica
Janeiro, 1973…
Antoniel terminava de se vestir à medida que esquadrinhava o filho, fitando-o com um olhar afiado, ao passo que Ronaldo permanecia imóvel sobre a cama, ainda sem roupa e uma postura cabisbaixa.
— Vou até à cozinha buscar algo pra gente comer — Antoniel informou; um sorriso de satisfação no canto dos lábios — Enquanto isso pode voltar pros seus livros, Ronaldo, ou seus brinquedos, tanto faz — determinou e de pronto se virou na direção da porta do quarto do adolescente.
— Por que está me chamando de Ronaldo? — o menino questionou genuinamente e com indubitável convicção num tom de voz calmo e macio.
— Como é que é, garoto? — Antoniel, que chegara a dar os primeiros passos, se voltou imediatamente, sendo surpreendido com a firmeza inabalável com que o filho o encarava — O que é que você disse? — questionou ao mesmo tempo que avançava na direção de Ronaldo, mirando-o com incredulidade, parando, por fim, a poucos centímetros da cama — Acho que não ouvi direito.
— Eu perguntei por que está me chamando de Ronaldo.
— Que brincadeira é essa, Ronaldo?
— Por que está me chamando de Ronaldo? — o menino insistiu, os braços cruzados sobre as pernas fechadas resguardando o corpo nu.
— Realmente acho que não estou te entendendo — Antoniel devolveu um tanto confuso.
— Você entendeu, sim, querido — o garoto respondeu sem pestanejar num timbre inicialmente instável — Por que está me chamando de Ronaldo se esse não é o meu nome? — a quebra de sonoridade perpassando do extremo grave ao extremo agudo, tornando a voz mais delicada, feminina… desagradavelmente feminina.
Antoniel mediu o filho de cima a baixo; no olhar, a perplexidade ante aquele absurdo. O que Ronaldo estava fazendo? O que ele estava tentando dizer? Que postura era aquela?
— Esse é o nome que eu e sua mãe te demos quando você nasceu — completou sem demora, começando a ficar irritado, intrigado, o semblante sendo tomado pela irascibilidade conforme se aproximava ainda mais do filho.
— Não, querido — o adolescente não se intimidou mesmo diante da alarmante aproximação de Antoniel, enquanto assumia uma expressão desafiadora — É claro que esse não é meu no…
Ronaldo se calou. Precisou se calar. A mão pesada do pai, num dos lados de seu rosto, o impediu de continuar.
03 de setembro, 1976
Hoje aconteceu algo estranho.
Sinto que estou ficando cada vez mais próximo do meu limite. Sinto que a qualquer momento vou explodir. Alguma coisa dentro de mim, em algum lugar, e eu não sei se em minha mente ou no meu corpo, parece estar se rebelando, uma conspiração parece estar se formando… Só que não consigo identificar. Entender. Tenho a impressão de que tudo isso não está acontecendo comigo, mas, sim, com outra pessoa, um terceiro… Um absurdo, claro!
Ontem à noite foi terrível! E ele disse algo que me deixou muito, muito preocupado: se eu contasse para alguém o que vinha acontecendo dentro dessa casa, possivelmente não iriam acreditar em mim, mas caso considerassem minha denúncia, minha masculinidade seria alvo de deboche, pois iriam me chamar de mulherzinha, de veadinho, de mariquinha e isso ia se tornar progressivo até alcançar um status de possível verdade e então eu iria me destruir e em seguida destruir a minha família.
Será que ele notou alguma coisa? Será que percebeu algo de diferente em mim que nem eu mesmo ainda percebi? Em verdade ele já vem sugerindo isso há tempos, porém, nunca havia dito com todas aquelas palavras, cruas, que me disse ontem à noite.
Não dormi direito. Fiquei remoendo e remoendo. Será que realmente estou entre a cruz e a espada? Será que realmente estou preocupado com a reputação dessa família? Cada vez mais me convenço de que Laura fez a coisa certa… E Bruna?… E Bruna?… E o professor? Será que o que sinto por ele é errado? Ou talvez em não sinta nada por ele. Sim. Talvez eu esteja equivocado… Mas, e os olhares? Os olhares cúmplices que trocamos enquanto ele, C., folheia meus livros e meus gibis que finjo esquecer sobre minha carteira?Os mesmos olhares carregados de certa conivência quando cruzamos pelos corredores do colégio…
Eu não sou mulherzinha! Não sou!
Hoje, antes de começar o último tempo de aula, eu pedi para ir ao banheiro. Não estava com a mínima vontade de fazer nada, apenas queria sair do meio de todo mundo para pensar, para fugir de mim mesmo… Consegui subir até o terraço da escola. Um milagre não ter encontrado ninguém para me impedir. Ao mesmo tempo que caminhava para a beira da laje, mil pensamentos cruzavam minha mente. E vozes. Sim. Até vozes pareciam conversar comigo. Vozes dentro da minha cabeça. E elas estavam confusas, assim como tudo dentro de mim e ao meu redor. Por um instante até mesmo cheguei a acreditar estranhamente que não era mais um garoto de quatorze anos, mas, sim, um homem de meia-idade aprisionado no corpo de um adolescente, como uma espécie de punição atrelada a um absurdo sentimento de culpa em resposta à minha dificuldade, à minha insistência, à minha resistência em deixar para trás um passado doloroso que ainda é o meu presente.
Subi na amurada do terraço e me sentei, olhando fixamente para baixo. Enquanto minhas pernas balançavam, os pensamentos vertiginosos tomavam uma velocidade ainda maior, assim como as vozes, que pareciam se multiplicar, ficando cada vez mais caóticas. Num relance decidi, sem qualquer resquício de dúvida, sem medo, de que a única solução para me ver livre do inferno em que eu vivia e das várias camadas de dor com as quais precisava lidar, seria me atirar, acabar com tudo.
Pedi perdão à Bruna e me projetei um pouco para frente, mas de repente senti um peso absurdo na cabeça, um cansaço extraordinário tomando conta de mim, insuportável. Não conseguia mais sentir minhas pernas e tampouco minha cintura e então tentei bravamente me projetar mais uma vez, sem sucesso, conforme o cansaço seguia invadindo tudo e todos os espaços do meu corpo, da minha alma, à medida que minhas pálpebras se tornavam atormentadamente pesadas.
Acordei, despertei aqui, no meu quarto, na minha cama, sem me lembrar de como havia chegado, de como havia deixado o terraço da escola. Não ouvi nenhum comentário de minha mãe sobre ter sido trazido para casa.
Será que estou começando a enlouquecer?
1985…
Ronaldo caminhava um tanto vacilante em direção à secretaria da Faculdade. Já há algumas noites que vinha deixando o sono de lado enquanto refletia sobre a real possibilidade de desistência do curso de psicologia, a despeito de faltar apenas dois anos para a conclusão. Em verdade, uma sensação de desânimo e desilusão se instalara dentro de si desde o início daquele terceiro ano, uma desolação crescente que o fazia frequentar as aulas cada vez menos e, quando decidia comparecer, não conseguia mais manter a atenção e a concentração devidas, passando a sentar no fundo da sala, longe do campo de visão dos professores, além de se recusar a participar das discussões, de trabalhos em grupos, assim como não entregava mais as atividades individuais ou quando as entregava, decerto, estavam incompletas. E as notas, evidente, refletiam todo aquele seu descontentamento.
Trancar a matrícula!
Trancar a matrícula!
Trancar a matrícula!
Sim! Ali, em meio àquele trajeto, depois de cada passo dado, Ronaldo ia compreendendo, ou tentava compreender, se convencer, lutando bravamente, com efeito, de que essa seria a solução mais viável, até decidir de fato se continuaria o curso de psicologia. Não estava feliz com aquela decisão que fora sendo cimentada depois das últimas semanas quando o desgaste mental alcançara um patamar alarmante com o retorno das dores de cabeça — ainda que intermitentes — que não conseguia extirpar com nenhum remédio, nenhuma droga, e que só desapareciam quando ele aparentemente parecia recobrar o domínio sobre si depois de um período de lapso, de perda de memória.
Em definitivo, seus pensamentos inquietantes não se limitavam mais aos problemas na faculdade, porém, em tudo e em todas as coisas, deixando-o temeroso em perder o emprego na livraria, onde, apesar de não ter um salário como gostaria, ao menos não vivia precariamente como antes.
E a voz… Aquela voz parecida com a sua que começara a invadir suas noites de sono — também ocasionalmente — sugerindo coisas desagradáveis, algumas até mesmo repugnantes, e todas elas, as coisas repugnantes, devendo ser praticadas com outros homens? Sim. Com outros homens. Mas ele não era homossexual, não era. Não seria tratado como um mulherzinha, um veadinho, um mariquinha. Não seria. Não mesmo. Aquela experiência com um cliente da livraria há uns dois, três meses, em verdade aquele equívoco, não significou nada, não quis dizer nada.
Ronaldo, mesmo a contragosto, como que impulsionado por uma obsessão, impossibilitado de escolher qualquer outro caminho a não ser revisitar aquele fim de tarde, aquele maldito fim de tarde, se rendeu, enfim, àquela recordação. Ele estava fechando a livraria e somente o tal cliente permanecia por lá. Já o tinha visto e o observado até mesmo com certa atenção algumas vezes: era um rapaz um pouco mais alto que ele, mais magro e com cabelo sempre bem-penteado e óculos de graus. As poucas palavras que ambos tinham trocado até então acontecera nas ocasiões quando o jovem pagava pelos livros que comprava; livros sobre ficção científica, tecnologia, mitologias, filmes e alguns mangás. Aliás, todas as ocasiões em que Ronaldo se deparava com os mangás, fosse conferindo-os quando chegavam à livraria, fosse quando os arrumava nas devidas prateleiras ou, por fim, quando os clientes decidiam comprá-los, algo dentro de si parecia incomodá-lo. E reações como fadiga, tensão muscular e alguns sobressaltos acompanhavam essa sensação que quase sempre lhe sinalizava, gritava em seus ouvidos para que fugisse. Sim. Não foram poucas as vezes que precisou lutar arduamente consigo mesmo para não deixar para trás tudo o que estava fazendo.
E lá estava ele, se preparando para encerrar mais um dia de trabalho, aguardando o tal rapaz decidir se iria comprar algo, até, por fim, se aproximar e questioná-lo se precisava de alguma ajuda para, de súbito, ser surpreendido pelo cliente, encarando-o firme pela primeira vez e com um olhar ansioso acima de um sorriso obstinado.
— Eu preciso fechar a livraria já, já. Você deve ter visto as portas de ferro, lá fora, baixadas pela metade…
Ronaldo disse, sim, ele disse, ele comunicou ao tal cliente ao mesmo tempo que tentou ensaiar um sorriso enquanto apontava com o queixo a direção da frente da loja por cima dos ombros do jovem, que, por sinal, não moveu um músculo sequer, a não ser para avançar em sua direção, não lhe dando chance de nenhuma reação.
Ronaldo meneou a cabeça devagar, inspirando e expirando enquanto seguia rumo à secretaria sem conseguir abandonar as imagens daquele fim de tarde, daquele maldito fim de tarde ocorrido há uns dois, três meses que não significou exatamente nada, nada, nada, não quis dizer porra nenhuma.
Ronaldo ainda podia sentir as mãos do tal rapaz o apalpando e em seguida o beijado rudemente no pescoço e peito e depois no pescoço novamente até seus lábios serem alcançados para, daí, ser beijado com uma avidez descomunal conforme o tal cliente mantinha uma das mãos apertando sua bunda e com a outra segurava sua nuca ao passo que pressionava o sexo duro contra ele.
Ronaldo relutou sem grandes convicções, mas relutou, tentando afastar o cliente que cada vez mais estava decidido a ir adiante. Por fim, cedeu, por carência ou por medo de nunca mais ter, ou se permitir ter outra chance como aquela, conforme mantinha os olhos abertos, sem piscar, mensurando cada suspiro, cada respiração daquele pervertido grudado em seu corpo, à medida que pensamentos de autorreprovação invadiam sua mente enquanto sentia o tal rapaz, o tal cliente abrindo os botões de sua camisa, descendo pelo seu peito até o seu ventre, passando então a acariciá-lo, a lambê-lo, até começar a abrir o zíper de seu jeans.
“Se contar pra alguém, garoto, o que acontece dentro desta casa, possivelmente ninguém vai acreditar em você. Mas se por acaso alguém lhe der ouvidos, esteja disposto a pagar o preço alto do escárnio, do deboche sobre sua masculinidade, pois irão te chamar e te tratar como um mulherzinha, um veadinho, um mariquinha e outros nomes horríveis e vão te perseguir até destruírem primeiro a sua reputação e depois a da nossa família. É isso o que você quer?”.
A voz pesada, autoritária de Antoniel expandido em cada um dos cantos de seu cérebro, dos seus órgãos e sistemas… A visão de Norma eufórica, incentivadora, fascinada até, enquanto assistia o marido abusar do filho… Aqueles algozes, aqueles algozes que o destino lhe dera como pais…
— Eu não posso. Eu não posso…
Ronaldo balbuciava, vendo-se a partir de então mergulhando num mar de confusão mental, experimentando um estranho cheiro de pele, pele humana, quente e úmida invadindo suas narinas, enquanto sentia a calça e em seguida a cueca sendo puxadas para baixo. Ele sabia que não deveria ter cedido, tinha plena consciência que depois do que aconteceria ali não conseguiria se olhar no espelho, se sentiria um lixo. Por isso havia abandonado a amizade de Márcio Antônio, já há uns quase dois anos, pedindo para que ele fosse embora do apartamento alugado que dividiam. Não suportava mais ver o amigo levando homens para lá, se divertindo, se inebriando. Não aguentava mais ouvir todas aquelas risadas, aqueles gemidos, não aturava mais o desespero proporcionado pela lascívia de Marcio Antônio com seus amantes pervertidos ou fosse lá que denominação cada um deles, ou todos eles teriam… Não poderia mais padecer com uma inevitável e disparatada sensação de culpa que sempre o assolava quando os tais homens iam embora, e alguns deles, quando Ronaldo estava por acaso passando pela sala, ousavam se aproximar para tentar se “despedir”, como se ele tivesse lhes dado o mínimo que fosse de confiança.
“Você é um idiota por ficar se reprimindo”.
De repente uma pressão absurda tomou conta de sua cabeça, dentro e fora daquele mar, daquela enxurrada de recordações e Ronaldo, então, parou, por um breve instante, antes de continuar o caminho rumo à secretaria da faculdade, passando a buscar e rebuscar em sua mente qualquer outro final para aquele infeliz ocorrido na livraria que não fosse o de ter despertado, sim, um súbito despertar acompanhado de uma desorientação espaço-temporal até conseguir constatar que estava só, já com as portas completamente cerradas, sentado atrás do balcão, com a roupa alinhada, sem saber ao certo se o tal cliente teria conseguido o que pretendia — o tal cliente que nunca mais apareceria por lá.
Mas aquele bilhete…
O que lhe deixou estupefato e ainda mais confuso foi encontrar aquele estranho e enigmático bilhete diante de si, escrito com uma letra que desconhecia, uma grafia simples, homogênea, seguindo um padrão uniforme, dando-lhe a impressão de que o autor daquelas poucas palavras seria uma pessoa racional, centrada, serena e calma. Aquelas palavras, ora bolas!, só poderiam ter sido redigidas por aquele cliente pervertido, por quem mais? Contudo, por que razão ele fizera aquilo, deixando registrado uma manifestação que ia de encontro à sua postura descontrolada?
Cuide-se. Não sei se conseguirei estar sempre por aqui.
Ronaldo intensificou suas passadas, decidido a deixar para trás em definitivo aquele incidente. Fez bem em rasgar e queimar o bilhete, não queria guardar nenhum resquício das consequências da sua decadência. Ele não era um mulherzinha, um veadinho, um mariquinha, um pervertido. Não era. Não podia ser. E ainda que fosse, por mais absurdo que aquilo pudesse lhe parecer, não aceitaria aquela condição pelo simples fato de não se enxergar daquela forma.
Trancar a matrícula!
Trancar a matrícula!
Trancar a matrícula!
Ronaldo ajeitou a postura, as costas ligeiramente curvadas. Será que Márcio Antônio e todos os outros não tinham medo da “peste gay” que vinha assolando o mundo? Será que a morte de Rock Hudson, há algumas semanas, não os alarmava?
Não, não e não. Não era problema dele. Não era. Determinou altivo, buscando focar nas suas próprias questões, no mundo de cabeça para baixo que tinha se tornado sua existência dentro daquela faculdade desde o início daquele terceiro ano. O derradeiro sinal da exaustão chegara, havia duas semanas, quando começara a ouvir relatos, abordagens de alguns colegas e professores, afirmando que ele começara a agir, vez em quando, diametralmente oposto ao estado de inércia a que vinha se entregando, sentando novamente nas primeiras fileiras, retomando a interação com os demais, discutindo assuntos diversos que ele, Ronaldo, tinha certeza desconhecer, além de receber surpreendentemente o resultado positivo de alguma atividade ou prova das quais podia jurar não ter realizado.
O que está acontecendo comigo?
O que está acontecendo comigo?
Ronaldo se questionava enquanto continuava a seguir adiante, rumo à secretária da faculdade, ponderando sobre a real possibilidade de buscar ajuda médica, pois não podia mais continuar tentando lidar sozinho com tudo aquilo, até, súbito, ser abordado por um rapaz e um homem mais velho, surpreendendo-o com tamanha amistosidade, apertos firmes de mãos e abraços calorosos.
— E aí, cara, como você está? — indagou o mais jovem com um sorriso rasgando a face.
— Gostou desse último final de semana, lá, na nossa casa? — perguntou o homem mais velho aparentando ser pai do moço ao seu lado, ou algum tipo de parente, tamanha a inegável semelhança física entre os dois — Saiba que será sempre bem-vindo. Não é sempre que o Armandinho nos apresenta um amigo tão simpático, sereno e também extrovertido na medida certa e sem exageros.
Arrematou o tal homem depois de apoiar uma das mãos no ombro de Ronaldo, que tratou de se desvencilhar daquele gesto de maneira sutil e educada, conforme buscava rapidamente na memória a existência daqueles dois em algum momento de sua vida, aqueles dois parados à sua frente que seguiam lhe tratando com alegre intimidade.
— Peço desculpas… — Ronaldo iniciou recuando alguns passos, a barreira da inibição prontamente alicerçada — Mas acredito que deva estar ocorrendo algum engano. Não sou a pessoa que vocês alegam ter reconhecido. Até mesmo porque nesse final de semana, posso garantir, não saí de casa…
— Isso é uma piada, claro — concluiu apressadamente o homem mais velho, riso solto, acompanhado por Armandinho.
Não demorou muito para que aquela situação se tornasse embaraçosa ante a convicção de Ronaldo em desconhecer os dois abordadores, que insistiam o contrário, até o homem mais velho finalmente se indispor, sendo tomado por perplexidade e irritação diante de tamanha desfaçatez.
— Então você, Leonardo…
— Leonardo? — Ronaldo tentou interromper, mas foi ignorado veementemente.
— Meu filho te leva para dentro de nossa casa. Você compartilha um final de semana com nossa família. Diverte-se e nos diverte. Aproveita-se da nossa confiança e generosidade… — o homem respirou fundo antes de prosseguir já notoriamente injuriado — E agora, simplesmente afirma que nada disso aconteceu? Alega que nunca nos viu antes?
Ronaldo decidiu apelar para o tal Armandinho, questionando onde, como e desde quando se conheciam, tentando identificar a origem de toda aquela confusão. O rapaz, ainda que um tanto incrédulo e talvez menos agastado que o pai, afirmou, sem sombra de dúvidas, que há quase um mês eles haviam iniciado uma conversa no pátio da faculdade enquanto aguardavam o término do intervalo das aulas e desde então, apesar de não cursarem o mesmo ano, vinham mantendo, embora esporadicamente, aquela aproximação, histórico que acabou por deixar Ronaldo ainda mais perplexo.
— Com certeza meu nome não é Leonardo…
Ronaldo tentou buscar a identidade, ação bruscamente interrompida pelo homem, que lhe segurou o pulso com uma firmeza inabalável.
— Cretino é o que você é — ele despejou; a raiva incandescente transparecendo no semblante, saltando-lhe os olhos — Ou você mentiu pro meu filho, pra mim, pra minha família ou está mentindo aqui e agora, sabe-se lá o porquê.
O homem, irritadiço, não esperou nenhuma manifestação contrária, se afastando imediatamente com o filho em seu encalço, compartilhando impropérios, enquanto Ronaldo se mantinha estagnado, mergulhado naquela situação assombrosa, sendo invadido por uma sensação de sede junto a dores triturando seus músculos e a região lombar.
10 de agosto, 1976
Não quero transformar esse diário em um confessionário do que enfrento dentro dessa casa. Não quero. Não vou. Até mesmo porque não quero correr o risco deles o encontrarem. E também sei que ao escrever sobre essa insanidade, vou acabar revivendo cada minuto dela. Cada chaga. Cada vontade de morrer.
NÃO QUERO.
Sei que se continuar vivendo nesse inferno em algum momento eu não irei resistir. E eu preciso resistir. Por ela, por Bruna. Preciso arranjar uma maneira de tirá-la de dentro dessa casa… Não vou agir como a Laura, que desapareceu da noite pro dia, sem deixar rastros, sem sequer nos consultar se por acaso também queríamos fugir com ela. Não sei se algum dia vou entender o que alimentou a ingratidão e o egoísmo de Laura, mas acho que não posso julgá-la. Não. Ela fez o certo ao fugir, ainda que tenha me deixado para trás… Ainda que tenha deixado-nos para trás…
Por quê? Por que eles continuam conservando o quarto de Laura? Os móveis? Todos aqueles objetos? Aquelas bugingangas? Será que acreditam que algum dia ela irá voltar para esse inferno?
PS.: será que o professor C. está me reparando o tanto quanto eu o observo? Obrigado por você existir.
02 de fevereiro, 2017, quinta-feira
De olhos fechados, Márcio Antônio passeia com as mãos sobre o couro cabeludo, sobre as costelas, as costas, a boca e o rosto enquanto a água do chuveiro desmorona sobre o seu corpo, sobre seus músculos retesados, dando-lhe a impressão de que sua pele está coberta por uma extensa e pesada camada de gelo conforme apoia a cabeça na parede, pressionando-a; seu crânio parece estar carregado de uma porção de pregos afiadíssimos.
Sim, você me estimará, sempre. Represento pra você todos os pecados que nunca teve coragem de cometer, Márcio Antônio balbucia apertando os olhos com uma força descomunal para tão logo tentar descerrá-los, sem sucesso, pois cada um deles, agora, parece estar sendo perfurados por agulhas, muitas delas.
Por que ainda estava ali, insistindo, acreditando que poderia ajudar Ronaldo a se desvencilhar das correntes que o aprisionavam mais e mais no abismo da própria homofobia internalizada? Depois de todos aqueles anos passados, onde sempre esteve disponível e disposto a ajudar o amigo a se desvencilhar daqueles malditos grilhões, o que recebera de volta? Por que Ronaldo não podia se aceitar e gostar de si mesmo pelo simples fato de ter uma orientação sexual homoafetiva?
Márcio Antônio afasta a cabeça da parede, se vira e então deixa as costas caírem sobre os azulejos atrás de si ao tempo que um cheiro repulsivo e passageiro invade suas narinas e uma dor irradia, ainda que sem grandes alardes, de um ponto a outro de seu cérebro e daí ele respira fundo, bem fundo e abre os olhos, por fim, desligando o chuveiro em seguida. Está cansado. Sim. Reconhece o peso que está carregando sobre os ombros, mas também está com raiva, uma raiva absurda que se projeta em ondas furiosas, arraigando suas entranhas, tomando cada espaço de dentro de si, de sua alma, de sua essência ou o que fosse. Uma energia intensa se acumulando, uma arrebentação prestes a acontecer…
Márcio Antônio volta a respirar fundo uma, duas, três vezes antes de se afastar da parede e desligar o chuveiro e deixar o boxe para trás e se posicionar sem demora diante do espelho, onde confronta uma visão dupla, tripla do seu reflexo à medida que sente a garganta queimar conforme sua imagem, a sua visão, vai retomando o foco, unindo-se.
— Sim, você me estimará, sempre. Represento pra você todos os pecados que nunca teve coragem de cometer, Ronaldo.
Ele diz com um sorriso desafiador que o faz parecer um adolescente enquanto envolve a cintura numa toalha e encara novamente o seu reflexo, uma imagem, agora, de um rosto tenso e contorcido, que lhe deixa irritadiço, incentivando-o a abandonar o banheiro sem demora, encontrando de pronto, tão logo abre a porta, um jovem nu, em pelo e pele, aguardando-o esparramado sobre a cama do motel.
Matheus — ou ao menos esse foi o nome que dera quando abordado na calçada algumas horas antes —, o garoto de programa contratado naquela noite, ao ver Márcio Antônio de volta, logo trata de esboçar um sorriso sacana ao mesmo tempo que coloca as mãos para trás, sob os cabelos úmidos do banho que havia tomado há pouco, e vai abrindo as pernas, bem devagar, até deixar seu sexo, já recuperado da gana quase insaciável do cliente, inteiramente à disposição.
— Levante e se arrume — Márcio Antônio ordena sem pestanejar, já buscando as peças de suas roupas espalhadas pelo chão, ignorando a carne nua, a pele alva e o falo despontando das dobras claras do prepúcio de seu toy boy.
— Mas já? — Matheus questiona de pronto enquanto retira as mãos de trás da cabeça e se apoia sobre os cotovelos, projetando o corpo para frente até se sentar — Não íamos passar a noite…
— Mudança de planos. Iremos à sauna.
— Sauna?
— Sauna — Márcio Antônio continua a se vestir sem deixar de fitar Matheus como se estivesse a desafiá-lo — Não vai me dizer que você nunca esteve em uma sauna? — completa numa elegante ironia, um agastado desprezo e cinismo e, por que não, com uma pitada de compaixão.
— Já — Matheus dá de ombros — Mas não vejo necessidade. Estamos, estávamos nos divertindo…
— E agora vamos atrás de uma diversão ainda melhor — Márcio Antônio dispara sem qualquer comiseração ao passo que termina de fechar os botões da blusa social para logo em seguida caminhar até próximo ao ar condicionado, se inclinar, resgatar a gravata azul clara de sobre o carpete e, já de pé, enfiá-la num dos bolsos da calça.
— Vem cá, meu coroa — Matheus desliza sobre a cama até ficar a poucos centímetros de seu cliente, sentando à sua frente, encarando-o com um riso matreiro para logo depois voltar a abrir as pernas, agora com pressa e então começar a brincar com o próprio sexo — Tem certeza de que vai querer dividir tudo isso?
Márcio Antônio deixa um suspiro escapar sem qualquer cerimônia ao tempo que com as sobrancelhas arqueadas, em uma surpresa debochada, aprecia as curvas e as tatuagens azuladas de Matheus e, ato contínuo, em completo silêncio, se dirige até uma das cabeceiras da cama, estaciona junto ao telefone, disca para a portaria e pede a conta, para daí, no instante seguinte, enquanto o garoto de programa começa a se vestir, resgatar o celular e enviar uma mensagem, não sem antes conferir o texto digitado, como se para ter certeza do peso das palavras que o confrontam pelo display do aparelho.
Covarde. Você, Ronaldo, sempre foi e sempre será um covarde. Até quando? Eu e o garoto de programa que você me fez contratar e depois saiu fora, estamos indo para a sauna. Se quiser, estarei te esperando… como sempre.
17 de outubro, 1976
Não foi difícil encontrar o endereço do Professor C. na lista telefônica. Havia mais 2 Cs., o que me surpreendeu dado à particularidade do nome, porém, apenas ele, o meu professor, tem o nome composto e como se isso já não bastasse, o segundo é tão peculiar quanto o primeiro.
Demorei um pouco pra criar coragem pra realizar essa pesquisa. Quantas e quantas vezes eu estive com a lista nas mãos e desisti por mero princípio? Mas se o nome dele, se os nomes de todas as pessoas enumeradas nessa lista telefônica estão lá é porque estão disponíveis para qualquer um… OK. Disponível não é sinônimo pra invasão de privacidade, mas essas pessoas querem e podem ser encontradas, diferente do meu pai, que por ser membro do Ministério Publico não pode estar nesse elenco.
Não sei mais o que fazer. Encontrar o professor C. apenas uma vez por semana em sala de aula, ou por acaso, andando pela escola, há muito deixou de ser suficiente.
Lucas abre os olhos e se vê parado em frente a uma estrada sinuosa, vermelha como o sangue, ladeada por cedros escuros de cascalhos, que se encontra em arco, dificultando em grande escala a passagem dos raios de sol por suas copas, transformando a extensa alameda que se desdobra ao longo do caminho em um túnel sombrio.
Que lugar é esse?, questiona, ao tempo que não demora a perceber que não consegue se mover até, de repente, sentir a mão direita tremendo e se estabilizando numa fração de segundo.
O que está acontecendo? Onde estou?
Ele tenta mais uma vez se mover, porém, agora, com exceção do pescoço, todo o corpo continua não respondendo ao comando do cérebro e isto começa a assustá-lo enquanto a respiração, percebe, segue curta e acelerada, conforme volta a fitar a extensa alameda que se desdobra à sua frente num túnel sombrio.
Lucas balança a cabeça, rápido, começando, então, a piscar, uma, duas, três vezes, reiterada e demasiadamente, parando, consciente, decidido a não mais piscar, o que acaba durando não mais do que quatro segundos, pois o efeito rebote faz com que seus olhos voltem a piscar com uma frequência ainda maior para compensar a perda. Por incrível que possa parecer, não está mais parado em frente a uma estrada sinuosa, diante de uma extensa alameda que se desdobra ao longo do caminho em um túnel sombrio. Não. O cenário à sua frente mudou sem que sequer pudesse ter notado e ele está, agora, sentando sobre uma cama forrada somente com um lençol branco, um branco quase etéreo, do mesmo tom da fronha que envolve o travesseiro, contrastando diretamente com as paredes desse novo ambiente, todas carregadas de uma mistura peculiar em que o amarelo e o violeta se alternam, cores opostas e idênticas, iguais e desiguais, dando a impressão de estarem prestes a invadir o espaço uma da outra.
O que está acontecendo? Onde estou?
Lucas sente uma comichão começar a tomar conta de todo o seu corpo e, novamente, se esforça para se mover, todavia, de novo, nada acontece; tão somente o pescoço consegue ser flexionado, o suficiente para que possa examinar o restante do seu arredor. Há uma mesinha branca, alta, revestida externamente em laminado ao lado da cabeceira; assim como há um pequeno sofá, não muito distante da cama e, próximo a ele, uma cadeira. Também consegue divisar uma mesa num canto um tanto afastado, acompanhada de duas cadeiras dispostas respectivamente atrás e defronte a ela e um armário baixo, de duas portas.
É um quarto, deduz sem grandes esforços, apesar da confusão mental, depois da rápida e minuciosa averiguação. Sim. É um quarto. Sem janela. E lembra a estrutura de um quarto de um hospital. Sim. É um quarto hospitalar, conclui no instante seguinte entre surpreso e atônito. Mas o que ele está fazendo ali? Não se recorda de ter sofrido nenhum acidente ou o que fosse… Em verdade, não se recorda de qualquer evento de sua vida antes desse momento, assim como também não consegue se lembrar do dia da semana, da data ou do mês, tampouco de seus pais…
Seus pais?…
Ele tem pais? Sim. Um pai e uma mãe, algo dentro de si persiste nessa convicção como se lutasse para que essa informação não se diluísse. Mas onde estão eles, os seus pais? Por que, agora, repentinamente, a dúvida sobre a existência deles se transfez na impressão de que não os vê há séculos?
O que está acontecendo?
O que está acontecendo comigo?
— Por que não fica aqui com a gente?
Lucas volta a atenção imediatamente na direção da voz que lhe lançou aquela pergunta, se defrontando, num piscar de olhos, com um grupo de rapazes, moços que o observam atentamente como se quisessem adquirir um conhecimento claro e preciso sobre a sua presença naquele lugar.
É um grupo pequeno, Lucas arremata sem demora, e decerto não estava ali até poucos instantes. É um grupo pequeno de jovens espalhados à sua frente… Uma dúzia… Sim, uma dúzia, rapidamente enumera. Uma dúzia de jovens espalhados à sua frente; alguns sentados, outros em pé, e sabe-se lá o porquê, estão todos seminus, envoltos tão somente com uma toalha em suas cinturas e uma gravata sobre o torso. E, apesar dos olhares, das fisionomias e das estaturas distintas, todos se encaixam num mesmo padrão: jovens efebos, perfeitos, a perfeição da beleza grega estampada em suas aparências quase angelicais, cujas peles ainda não refletem as marcas do tempo.
— O que é isso? Quem são vocês? — Lucas titubeia em meio às palavras, ao mesmo tempo que tenta se mover e sem sucesso mais uma vez enquanto segue buscando se localizar em meio aquela experiência vertiginosa e completamente bizarra.
— Não teremos respostas para todas as suas perguntas… — um segundo rapaz retruca.
— Mas faremos o possível para que se sinta confortável e entre amigos… — um terceiro jovem se manifesta.
Com uma respiração curta e acelerada, Lucas volta a correr os olhos em seu entorno. Está em um quarto, não demora a constatar, porém, não mais naquele quarto que lembrava e muito a estrutura de um hospital. O ambiente que agora o cerca possui poucos móveis, alguns objetos e bugigangas que parecem pertencer a uma adolescente. Até mesmo a cama em que permanece sentado, imóvel, é indiscutivelmente a cama de uma menina. Todavia, com um olhar mais apurado, ele nota que o arredor exala uma decoração vintage, algo que remete aos anos 70, talvez. Um telefone de fio com números em um disco; papéis de parede em forma de losangos com linhas onduladas em laranja, marrom e marfim claro, estabelecidas em curvas e contrarrotativas de um móbile movido pelo vento; alguns pôsteres de atores ou celebridades que não consegue distinguir; um par de congas verde e branco abandonado em um canto, próximo a um armário restaurado com pátina; uma fileira de discos de vinil; um vestido vermelho que estranhamente lhe parece familiar…
Lucas, ato contínuo, troca olhares confusos e conflitantes com os jovens à sua frente à medida que uma sensação de não pertencimento parece lhe corroer a alma, como se não tivesse mais a definitiva certeza de ser quem é ou quem deveria ser, desviando o olhar no minuto seguinte para a imagem de um quadro distante de todo aquele cenário, que repousa solitário sobre uma parede próxima à porta. É uma pintura com dois jovens sentados lado a lado sobre uma cama e aparentemente adormecidos. Apesar de suas posturas semelhantes, o rapaz em primeiro plano é banhado em luz enquanto o outro é envolto em trevas. E o rapaz em primeiro plano tem algo entre as mãos que Lucas de onde está não consegue identificar…
— Mas Lucas, ele acabou de chegar.
Lucas se desprende de pronto da sua inspeção ao ouvir o seu nome e num gesto automático, quase robótico, vira o pescoço na direção do pequeno grupo em busca de quem o teria chamado, compreendendo, por fim, que todos estavam atentos, em verdade, a dois dos rapazes que se mantinham de pé.
— Não temos certeza se ele ficará aqui, conosco, ou se está somente de passagem… — completa um deles.
— E por que você acha que ele está de passagem? De onde tirou essa ideia? — retruca o primeiro, olhando rapidamente para Lucas, sentado sobre a cama — Todos nós estamos aqui e pronto.
— Ele é diferente da gente — replica o segundo, um pouco hesitante, ao mesmo tempo que vagueia o olhar rapidamente sobre os outros rapazes — Tem um corpo franzino, pernas esguias, torneadas, mas esguias demais, e os braços longos. Definitivamente não se parece em nada com nenhum de nós, exceto o fato de ser jovem.
— Ok, Lucas, mas isso não quer dizer que ele não possa ficar aqui… — devolve o primeiro depois de um súbito silêncio, os olhos tomados por um brilho pensativo — E enquanto estiver aqui precisamos ajudá-lo a entender o que está acontecendo — objeta, olhando novamente para Lucas sentado sobre a cama.
Lucas inspira fundo, bem fundo, e expira sem pressa, tentando, em vão, manter uma respiração consciente e controlada. O que é tudo isso? Quem são esses moços?
— Na verdade, ajudá-lo a entender o que achamos que está acontecendo — complementa um terceiro rapaz.
— Onde eu estou? Quem são vocês? — Lucas, sentado sobre a cama, questiona, por fim, interrompendo o embate num tom um tanto rude, já tomado pela impaciência — E por que estão se chamando de Lucas?
Os olhares voltam a se derramar imediatamente sobre ele numa sincronia impecável.
— Como assim? — devolve um deles — Devemos nos chamar por nossos nomes, não?
— Vocês todos se chamam Lucas?
30 de julho, 2017, domingo
Os olhos de Gabriela se mexem rápido sob as pálpebras cerradas enquanto ela se vê parada defronte a uma estrada sinuosa, vermelha como o sangue, ladeada por cedros escuros de cascalhos, que se encontra em arco, dificultando em grande escala a passagem dos raios de sol por suas copas, transformando a extensa alameda que se desdobra ao longo do caminho em um túnel sombrio.
Que lugar é esse?, ela questiona, um sussurro breve, ao tempo que não demora a perceber que não consegue se mover até, de repente, sentir a mão direita tremendo e se estabilizando numa fração de segundo, ao passo que vozes, um grupo de vozes, sim, algumas vozes, em verdade um sem-número de vozes invadem sua mente em uma azucrinante dissonância, algumas delas parecendo estar gritando, lutando para abafar as outras. Entretanto, o que essas vozes estão dizendo ou esforçando-se para dizer, Gabriela não consegue alcançar, distinguir, e nem poderia por mais que tentasse, decidindo, por fim, eclipsar aquela balbúrdia a fim de focar todas as suas energias em deixar o estranho local em que se encontrava involuntariamente e achar um norte.
Gabriela tenta mais uma vez se mover, porém, agora, com exceção do pescoço, todo o corpo continua não respondendo ao comando do cérebro e isso começa a assustá-la à medida que sente a respiração curta e acelerada, conforme volta a fitar a extensa alameda que se desdobra à sua frente num túnel sombrio. Contudo, como que por encanto, como resultado de um estímulo magnético, a imagem à sua frente se transforma num instante dando lugar a um cenário que a princípio tem o aspecto de um quarto, cujas paredes são carregadas de uma mistura peculiar em que o amarelo e o violeta se alternam; cores opostas e idênticas, iguais e desiguais, dando a impressão de estarem prestes a invadir o espaço uma da outra.
Sim, é um quarto, ela constata após uma rápida sondada em seu derredor. Um quarto com uma cama de casal, poucos móveis, duas janelas, cortinas e tapetes, apesar de não se dar conta de como fora parar ali. Não obstante ao contrassenso de tudo que está acontecendo, aquele cenário absurdo se torna ainda mais paradoxal quando maquinalmente ela se vê cantarolando uma canção setentista que seus pais adoravam, mas que ela carrega a impressão, uma recente e estranha impressão de sempre ter odiado e que nunca, nunca fizera questão em aprender, apesar da insistência deles… de seus pais… dos dois…
Seus rostos…
Gabriela de repente se surpreende tentando recordar as fisionomias de cada um de seus genitores. Ela fecha os olhos e se esforça veemente, todavia, consegue apenas se lembrar dos corpos, do caminhar, dos cabelos, das vozes, ainda assim quimeras que não demoram a se tornar míseras sombras até desaparecerem por completo. Mas os rostos, não. Da mesma maneira que também não consegue evocar os nomes deles. Decide, então, abandonar de vez o esforço inútil ao mesmo tempo que percebe, por fim, que a letra e a melodia daquela canção setentista se foram tão rápido como haviam surgido.
Está sonhando! É isso! Está perdida em algum momento entre um devaneio e a realidade, em algum lugar entre o sono e a vigília, Gabriela conclui de si para consigo, os globos oculares se movimentando bastante sob as pálpebras cerradas, movimentos rápidos.
Súbito, ela se encontra, agora, de pé sobre uma cama de casal, mesmo sem ter a mínima noção de como chegara até ali e muito menos de como recuperara os movimentos totais de seu corpo. Instintivamente olha para baixo e se depara com a visão de duas pessoas deitadas, uma mulher e um rapaz, não, não, uma mulher e um homem, não, não, é uma mulher, sim, mas tendo um rapaz ao seu lado, sim, um rapaz, feições de adolescente, e que decerto nem ela, a tal mulher, e sequer ele, estavam ali até há pouco. E ambos estão nus, com os olhos arregalados, órbitas prestes a saltarem das cavidades, parecendo divisar algo terrível. E suas mãos e pés estão atados à cama por lençóis, e há fronhas enfiadas em suas bocas… E um vestido vermelho jaz despreocupadamente estirado sobre eles, esses dois corpos aparentemente inertes.
Quem são essas pessoas? Por que estão assim, nuas, e por incrível que possa parecer alheias à minha presença?, Gabriela inquire numa reação quase involuntária, como se as palavras ditas, apesar de terem saído de sua boca, não fossem suas.
De supetão, um cheiro de fumaça toma conta de seu olfato, um odor que se intensifica a cada segundo e Gabriela, ato contínuo, busca no seu entorno algum sinal que justifique essa percepção, mas não encontra nada e daí volta a descer o olhar sobre os corpos inertes, entretanto, já não está mais de pé sobre a cama de casal, não. E os corpos da tal mulher e do tal adolescente também desapareceram. Ela está, agora, parada sob a ombreira de uma porta e sente que sua alma, sua energia ou que seja está ligada por um laço fluídico a um corpo de criança. Uma menina com uma estatura pequena para a idade que tem, ainda que Gabriela não consiga saber o tempo exato de vida daquela garota. E a menina, a tal menina traz os olhos vermelhos, o rosto inchado e está seminua tentando esconder o pequeno corpo com os braços e as mãos frágeis num desalento de partir qualquer coração enquanto fixa um olhar aterrado à sua frente.
Gabriela, confusa, completamente confusa, sentindo uma mescla de emoções diversas tomando territórios dentro de si, decide seguir a direção do olhar da menina, encontrando uma cena de extrema violência, em que um homem alto, corpulência imponente e rosto redondo, está surrando um rapaz, um garoto, um adolescente de compleição magra, corpo franzino e as costas ligeiramente curvadas, e que apenas busca se defender dos golpes ferozmente lançados sobre si. Estranhamente ela, Gabriela, parece sentir a revolta crescente emergindo daquele jovem, como se aquelas emoções lhe pertencessem também.
De repente, um grito, agudo. Gabriela se volta na direção da menina, que está com as mãos sobre a boca, o olhar ainda mais apavorante. Atrás dela, agora, há uma mulher, com as mãos firmes sobre os ombros da pequena, como se a impedindo de fugir, forçando-a a assistir aquela cena lamentável. A mulher, a tal mulher, à primeira vista, não parece tão estranha à jovem psiquiatra, contudo, Gabriela tem a bizarra impressão, inesperadamente, de que a conhece, sim, e tenta semicerrar os olhos, a despeito de hesitar em mirá-la, recebendo de pronto a afronta da desconhecida, que a fita com um olhar fulminante, impedindo que ela, Gabriela, feche os olhos.
A mulher, a tal mulher, tem os cabelos louros, curtos, bem cortados, e seu semblante, antes furioso, agora, segue relativamente inexpressivo e seu olhar, absorto, amargurado, é acompanhado de um vinco vertical entre as sobrancelhas.
Gabriela se sente incomodada. Extremamente incomodada. Não sabe o porquê, mas não quer continuar olhando para essa mulher, não quer, entretanto, é atraída por um inexplicável magnetismo que não lhe permite desviar a atenção daquela peculiar figura até constatar, de um instante para o outro, que está defronte a ela mesma, todavia não a Gabriela contemporânea, uma balzaquiana de 32 anos, ali, mergulhada e perdida nos labirintos de um sonho ruim, mas uma versão, uma bizarra versão madura de si própria,
Fogo! Gabriela é surpreendida por chamas por toda parte. A ombreira da porta onde se encontram a menina pequena para a idade que tem e a tal mulher, espelho de si própria, está convertida em uma imensa labareda, que vem abaixo após um breve ranger de dobradiças, não sem antes as imagens de ambas se fundirem, se confundirem, se combinarem. E o tal homem, alto, corpulência imponente e rosto redondo, também é consumido pelo fogo. Mas o menino, o tal garoto não está mais ali. Talvez tenha conseguido escapar, vai saber, Gabriela deduz conforme tenta se locomover, sem sucesso, insistindo contra a inércia das articulações, dos músculos, enquanto uma viga incandescente estala sobre sua cabeça, chamuscando-lhe o cabelo.
Gabriela cerra os olhos, inspirando fundo, bem fundo, expirando, de pronto, sem pressa, tentando manter uma respiração consciente e controlada, ao passo que sua mente vai sendo dominada por um sem-número de sensações, algumas delas desconhecidas por completo, como se pertencessem a outra pessoa, a um terceiro. Ao abrir os olhos, sob as pálpebras ainda seladas, que seguem com seus movimentos bastante rápidos, se depara com um cenário que lhe causa, apesar de tudo, imediata estranheza. Construções imponentes, amplas e angulosas com suas estruturas labirínticas que parecem pintadas em paredes; assim como as flores, o chão, as luzes, as sombras e tudo mais, retratados como personagens deformados. Tudo, tudo representado em formas de traçados, rabiscos sob as cores cinza, bege e marrom e em outras cores neutras e sem vida.
Gabriela começa a correr após um alarmante instinto de sobrevivência bradar dentro de si, resultado de um medo primitivo sem precedentes, ao mesmo tempo que sente a presença de um terceiro, de uma pessoa que a impulsiona a seguir adiante, o mais rápido que puder, enquanto experimenta, ou acredita experimentar mais uma vez aquela sensação, a sensação de que uma força externa parece estar disposta a invadir sua consciência, seu córtex cerebral, como uma doença autoimune determinada a destruir suas energias vitais, seus sentidos extrafísicos, ao passo que as vozes retornam, se sobrepondo umas às outras, lutando para prevalecerem sobre tudo e todas as outras.
Em seguida a uma contração involuntária dos músculos, Gabriela abre os olhos e os move de um lado ao outro sem a mínima noção de onde possa estar. A cabeça encontra-se apoiada sobre algo, pode sentir, mas ao tentar erguê-la, não consegue, pois lhe parece extremamente pesada. Inspira e expira, então, com uma força descomunal enquanto analisa o local que a cerca, ao menos o que o seu ponto de vista permite, ao tempo que lida com uma sensação de desrealização, não demorando a se localizar, finalmente, e a reconhecer que se encontra estirada, com a cabeça recostada sobre o pequeno sofá, do seu pequeno escritório em seu pequeno apartamento.
Depois de alguns minutos, após deixar para trás a sensação de desorientação espaço-temporal, ela se recorda do mal-estar que a forçou a se alojar ali, quando pretendia buscar pelo dossiê do paciente Eve a fim de revisá-lo, assim como resquícios de imagens, fragmentos confusos e dispersos, impressões ainda que precárias lhe dando a certeza de que esteve mergulhada mais uma vez em um sonho ruim, como todos os outros que vem tendo nos últimos tempos.
— Você está bem?
Gabriela se assusta com aquela voz tão próxima e num salto se coloca de pé, defensiva, deparando-se inesperadamente com uma mulher parada à sua frente. Uma figura desconhecida, ela constata de imediato, ao passo que esquadrinha a tal figura de cima a baixo sem abandonar a postura reativa, voltando a encarar a tal mulher com os olhos arregalados, interrogativos.
— Quem… Quem é você? — Gabriela questiona numa reação quase mecânica, enquanto se afasta da invasora ao mesmo tempo que meneia a cabeça rapidamente, verificando o seu entorno, como quisesse se certificar de que está onde acredita estar, no pequeno escritório em seu pequeno apartamento — Como entrou aqui?
— Calma Gabriela… — a tal mulher responde com uma voz branda e macia.
— Como sabe meu nome? — a jovem psiquiatra retruca entre atônita e um tanto confusa, intercalando o olhar ao derredor em busca do celular e também de algum objeto que possa usar como defesa caso venha a ser atacada.
— Sou Laura — a mulher se apresenta com um sorriso terno e maternal emoldurando o seu semblante.