ATENÇÃO!

 

O episódio a seguir contém cenas e situações que podem ser consideradas extremamente perturbadoras.


                 Se você estiver precisando de ajuda, ligue 188 no CVV (Centro de Valorização da Vida)

 


                     ATO DE ABERTURA

 

Se pudéssemos resumir uma história de vida, diríamos que o terror sempre encontrará o amor. E o amor sempre encontrará o terror. O amor e a morte andam lado a lado. São almas quase idênticas. Na medida que te fere, te cura. Na medida que te salva, te mata. Na medida que te prende, te liberta.

Qual o verdadeiro valor do amor?

Qual o verdadeiro valor da morte?

Em qual delas vamos nos encontrar?

Em apenas uma… Ou nas duas?


Colégio Juvenil de Koscielniki Górne, Anos 80.

Vemos uma criança (ainda não sabemos se é menino ou menina) olhando atentamente alguns comentários de outras crianças.

Ela vê que um dos coleguinhas fala que sempre gostou de palhacinhos e não entende como a maioria das crianças não gosta.

Ao escutar isso a uma distância respeitosa de seu colega, ela sai dali e entra novamente para dentro da escola. Só vemos apenas o ponto de vista da criança que está passando pelos corredores dali.

A criança entra dentro de uma das salas. É a sala de artes. Ela vê nas prateleiras alguns pinceis, tinta guache e outros utensílios. Ela reúne tudo aquilo e começa a mexer.

Minutos mais tarde, pelo ponto de vista da criança, ela está se aproximando do pátio do colégio. Outras crianças começam a olhar pra ela, algumas começam a rir, outras ficam deveras assustadas. Várias sensações eram despertadas naquelas crianças. Mas era uma em específica que ela queria chamar a atenção: O garoto de outrora.

A criança se aproxima. O garoto está acompanhado de outros amigos. Um cutuca o outro. Quando o garoto olha, ele começa a rir, chama os outros garotos. Uma roda de crianças se forma para rir e debochar daquela pobre criança.

Finalmente podemos ver o rosto dela. Ela usou as tintas guache e pintou toda a cara. A boca estava com tinha vermelha, todo o rosto com tinta branca. Azuis na sobrancelha e preto abaixo das pálpebras.

A criança não faz nenhuma reação. Quer chorar e não consegue, quer rir e não consegue, apenas fica a tecer daquelas vozes de zombaria e ingratidão. O que ela fez de errado? Por que elas estão fazendo isso?

Qual o mistério dessa criança?


      OPENING: 



               EPISÓDIO 3:

“SE ESSA RUA FOSSE MINHA”

                 PARTE 1


   


   

                             ATO I


Ewa está diante da misteriosa mulher.

— Seja bem vinda, Ewa… Essa é sua última parada, querida. Hahahahahahahaha.

— Mas… Quem é você e… Como sabe o meu nome?

— Sempre soube que cedo ou tarde esse dia chegaria. Só não sabia que iria ser você. Como o destino nos reserva surpresas, não é mesmo?

— Do que você tá falando?

A mulher deixa a escova no chão. Se levanta. Ewa estranha. Ela é alta e tem algo de “errado” nela. Algo que ela não pode deixar de notar em seu pescoço.

— Você… Espera… Você não é uma garota?

— Ai que horror! Quanta indelicadeza da tua parte, querida! Como ousa se dirigir a mim nesse tom? Uma dama como eu precisa ser tratada com respeito.

— Mas como se… ?

— Ai, tá bom, tá bom… Vou abrir logo o jogo porque odeio mentirinhas. Bom… Se quer tanto saber… Eu na verdade nasci menino. Sim, uma desgraça, eu sei, sempre falei a mim mesma que nasci no corpo errado.

— Então você é tipo… Uma transexual? Você realmente é muito parecida com uma mulher.

— Ai não, querida! Eu nunca fiz nenhuma cirurgia e nem nada, mas sempre fui expert em maquiagem, então conseguia dar os meus “pulos”. Sempre priorizei a minha feminidade a risca.

— Ok, e… O que você está fazendo aqui?

— Como assim? Essa é a minha casa, querida. Vivo aqui por longos anos.

— Não pode viver num lugar como esse. Ele está abandonado e…

— … Não tem comida e nem energia elétrica, blá blá blá. Mas caso não tenha notado, estamos neste exato momento conversando neste quarto e temos energia elétrica. O meu abajur está ligado como pode perceber.

— Isso não faz o menor sentido. Não tinha eletricidade nessa casa, pelo menos não no lado de cima. Como pode… E como esse quarto pode estar assim tão arrumado?

— Ai, querida Ewa… Você é tão inocente. Oh! (Dá um pulo e se aproxima de Ewa) Que falta de cordialidade a minha. Por favor, deixe-me apresentar, eu me chamo Heiko Kozlowski (pronuncia-se Kosvuóski). Esse é meu nome de batismo, infelizmente não tive tempo pra escolher outro nome. Sabe o que é engraçado, minha doce Ewa? É que o significado do meu sobrenome não tem absolutamente nada a ver comigo. Kozlowski significa “cabra macho”. É uma representação de virilidade. Logo eu? Uma dama? Hahahahahahahahahaha.

Ewa fica observando Heiko sorrindo. Apesar de ser um homem, ele realmente tem uma aparência bem parecida de uma mulher, exceto pelos seus 1,80. Não tem barba, mas tem um cabelo preto e longo até os ombros.

— Me desculpe pela piada, querida. É que sempre que eu me lembro disso, fico eufórica pensando na casualidade.

— Por que está aqui, Heiko? E por que eu estou aqui?

— Que fofa ela me chamando pelo nome! Não me diga que realmente não sabe o motivo de estar aqui, querida?

— Não… Dá pra ser mais clara ou claro, sei lá como você quer que eu te trate?

— Por favor, querida. Já fiquei ciente do uso de pronomes neutros aí afora como “They/Them”, “He/Him”, “She/Her” e por aí vai. Mas não precisamos seguir essas práticas esdrúxulas da geração Z.

— Foi a única coisa plausível que você disse até agora.

— Bem… Você está aqui, porque… Você vai ser minha nova amiguinha! Eba!

— Que palhaçada é essa? Que papo furado é esse de “amiguinha”?

— Ai, eu esperei tantos anos por uma amiguinha pra me fazer companhia e finalmente você chegou. Bem que ela disse que cedo ou tarde alguém viria.

— Ela quem? Por que todos falam de “ela”? Quem é essa?

— Oh! Você ainda não sabe, mas tudo bem, você vai saber logo. Ah! Eu preciso te apresentar o meu noivo.

— Noivo?

Heiko vai até o armário do quarto. Abre ele. Tira de lá um boneco de tamanho humano com roupas sociais.

— Ewa, quero que conheça o Peter. Meu futuro marido. Diga “oi” para a Ewa, querido!

Ewa olha para aquele boneco e começa a ter pequenos lapsos de memória. Ela se lembra que já viu aquele boneco antes em seus sonhos. Em um dos pesadelos que teve em seu apartamento.

Ewa se sente mareada a ponto de cair.

— Oh, você está bem, Ewa? Ai eu sabia que o Peter iria causar isso. Isso é jeito de tratar a nossa madrinha, querido? Ah me poupe! Venha, vou te deixar na cadeira de balanço.

Heiko coloca o boneco sentado na cadeira de balanço no quarto.

Em seguida, ele/ela vai em direção à Ewa.

— Você está bem, “honey”?

— Que porcaria é essa? Por que você tá dizendo que um boneco é o teu marido?

— Porque é, fofa. Peter e eu estamos há anos aqui esperando o momento de aparecer alguém para nos casar devidamente como merecemos.

— Espera… Aqui há anos? Como assim?

— Fofa, você ainda tá mal da cabeça, não é? Mas não se preocupe. Estou aqui para te ajudar. Bem… Eu estou aqui há nada mais e nada menos que… 25 anos.

— Quê? Não é possível! Não pode ficar num lugar como esses durante 25 anos! Por que nunca foi embora?

— Ir embora? Ir embora de um lugar que é todo meu? Ir embora de onde eu posso ter tudo? De onde eu posso ser eu mesma?

— Isso é loucura!

— Sabe o que é loucura, Ewa? É passar o resto da porra da tua vida tentando agradar os seus malditos pais só porque não aceitam o fato de que eu sempre quis ser uma menina! “ABERRAÇÃO” foi o que me disseram! Nunca me aceitaram como eu era!

— Isso não tem a ver com sua escolha ou condição sexual! Está usando isso como um escudo!

— Um escudo? Não, querida. Isso aqui é muito mais que um escudo, isso aqui é um refúgio. É o lugar onde eu sou princesa, sou rainha, sou a droga que eu quiser que eu seja.

— PARA DE ENROLAÇÃO E FALA DE UMA VEZ POR TODAS O QUE EU TÔ FAZENDO AQUI?

— VOCÊ É COMO EU! Você também teve a sua vida destruída!

— O… O que tá dizendo?

— Eu sei da morte de seus pais, Ewa. Eu vejo tudo daqui de dentro. Parece que não, mas eu sei de tudo.

— Então você sabe dos Von Carnaps?

— Ora, ora, ora… A madame finalmente resolveu dar nome aos bois?

— Eu entrei no mausoléu, eu vi as tumbas, eu vi que…

— … É claro que você entrou no mausoléu, sua idiota! Senão não estaria assim toda suja e fedendo. Como é a sensação? Como é a sensação de ver aqueles cadáveres entrelaçando o seu corpo?

— Cala a boca! Você não sabe nada sobre mim!

Ewa se levanta.

— Será mesmo que eu não sei nada sobre você, Ewa? A pobre garotinha que perdeu seus pais quando criança. Tinha uma boneca… A boneca toda ensanguentada… Você viu o corpo do seu pobre pai no quarto. Sim, era do teu pai a mão ensanguentada que você viu…

— Já chega!

— Você também se sente culpada não é, Ewa? Se sente culpada pela morte dos teus pais naquela noite.

— Não se atreva a falar dos meus pais!

— Ow, como é que era mesmo a canção? “Brilha, Brilha estrelinha. Quero ver você brilhar”…

— Cale-se! CALE-SE!

Ewa pega um porrete de brinquedo no chão.

— O que vai fazer com isso, Ewa? Me bater? Me poupe! Não estamos no País das Maravilhas.

— Eu quero ir embora daqui.

— Infelizmente isso não vai ser possível, amor.

— Por que não?

— Nós duas estamos destinadas a ficar para sempre dentro desta casa. Não há como sair, meu doce. Será apenas você e eu… Como duas eternas amigas.

Ewa fica por instantes fitando o olhar em Heiko e segurando aquele porrete.

— Quer saber de uma coisa? Eu quero ver você me impedir.

Ewa deixa o porrete no chão e sai correndo do quarto.

— VOLTA AQUI, EWA!

Ewa sai pelo corredor, pega uns quadros e joga para tentar impedir a passagem de Heiko.

— VOLTA AQUI,SUA INGRATA!

Heiko alcança Ewa, a puxa pelo cabelo. Ela cai para trás.

— ME SOLTA! ME SOLTA!

— NÃO PODE SAIR DAQUI! NÃO PODE!

— CALA A BOCA!

Ewa puxa os cabelos de Heiko. Ele urra de dor. Após isso, Ewa dá um tapa na cara dele.

Heiko cai pra trás. Ewa tenta se levantar. Ele a agarra por uma das pernas. Ewa chuta o rosto dele e ele cai no chão.

Ewa se levanta. Vai em direção às escadas. Consegue descer até o final para a entrada da porta.

Heiko se levanta e vai em direção à ela.

— VAI SE ARREPENDER, EWA!

Ewa continua indo em direção à porta. Ela estranha porque tá tudo muito arrumado e em perfeito estado, mas continua batendo na porta a todo o custo tentando abrir.

— SOCORRO! SOCORRO, ALGUÉM ME AJUDA! ÓTON! SOCORRO!

Ela estranha não conseguir abrir a porta. Em seguida ela vai para as janelas. Mas em meio ao seu desespero mais eufórico, ela começa a ficar ainda mais intrigada por perceber que está vendo coisas ligeiramente “gigantes” pela janela.

— Mas… Mas…

Heiko já está descendo as escadas tranquilamente e carrega um sorriso sarcástico em seu rosto.

Ewa olha outra janela. Depois outra. E outra. Olha para o teto. Observa a estrutura da casa em 360 gráus. Depois vai para uma das janelas de novo. Coloca o seu rosto bem próximo ao vidro.

— Não pode ser, eu estou…

Vemos o ponto de vista de fora, Ewa do lado de dentro da casa. Nos afastamos mais daquela janela e percebemos que…

— EU ESTOU DENTRO DA CASA DE BONECAS!

A peculiar casa de bonecas que ficava na sala do palácio agora é a prisão onde Ewa se encontra.

Lá dentro, Heiko se aproxima.

— Eu tentei te avisar, querida.

Ewa ainda de costas pra ele e sem acreditar.

— Não, não pode ser, não pode ser possível.

— Tudo é possível ao que crê, querida. E no meu mundo… Tudo é possível.

Heiko golpeia Ewa na cabeça e ela cai no chão atordoada.

— Bem… Espero que tenha doces sonhos, querida.

Vemos o ponto de vista de Ewa caída no chão. Heiko chuta a sua cabeça e tudo escurece. Deixando Ewa completamente inconsciente.

 


                    ATO II


3ª NOITE.

Ewa está sentada em uma cadeira com o corpo e os cabelos virados para frente, ela está amarrada tanto nos punhos quanto nos pés. Aparentemente está usando um vestido lilás com plumas.

Ela começa a despertar pouco a pouco com Heiko cantarolando no quarto enquanto separa algumas roupas e as coloca na cama. O boneco de tamanho humano se encontra na cadeira de balanço.

Ewa começa a despertar, sente tudo girar ainda. Heiko percebe que ela está acordando.

— Ow! Finalmente a nossa bela adormecida voltou! Já estava ficando preocupada com você, querida.

— O… Onde estou?

— Como onde? Está na nossa casa, querida.

— Eu… Eu não entendo. O que tá acontecendo aqui e…

Ela percebe que está amarrada.

— Por que me amarrou? O que você quer de mim?

— Calma, meu doce. Amarrei você apenas por precaução, pra você não tentar fugir feito uma louca sabendo que não tem como sair daqui. A propósito deveria me agradecer porque só assim eu consegui te dar um bom banho.

— O quê? Por quanto tempo eu dormi?

— Olha, bastante tempo. Consegui limpar e trocar você sem que você acordasse nadinha. Já estamos em sua terceira noite aqui.

— Você me viu nua?

— Ai, querida! Nem precisa se preocupar, eu tive que ser uma verdadeira guerreira por estar olhando algo que não me agrada em nada. Única coisa na mulher que eu não queria ter é isso. Não sei como os homens sentem atração por vocês, sério, é nojento.

— Há pouco tempo atrás você estava tentando me matar, por que resolveu fazer isso agora?

— Se engana, “Darling”, eu estava tentando te ajudar. Você que fugiu como uma paranoica.

— Como pode ser possível estarmos aqui? Como eu posso estar dentro de uma casa de bonecas?

— Ai, eu sei! Isso é tão genial, não é? Por isso que eu amo esse lugar.

— Você também é uma das pessoas que morreram neste lugar há anos?

— Eu prefiro dizer que meu “Eu” antigo realmente morreu, e essa nova está aqui vivíssima! Ao vivo e a cores.

— Então você… Não é um espírito?

— Ai, tolinha! Claro que não! Sou tão natural quanto você, fofa. A única diferença é que eu tive a desgraça de nascer com um pinto, mas tudo bem, vocês tiveram a desgraça de ter uma maldita vagina entre as pernas, então vamos compartilhar das nossas desgraças, não é mesmo? Você aceita um chá?

— Um chá? Como aqui pode ter chá?

— Hellow! Acorda, “Alice”! Estamos em uma casa de bonecas, onde já se viu uma casa de bonecas não ter chá? Por Deus!

— Sim, chá de mentirinha.

— Oh my “Gosh”! Você é muito matuta ainda, fofa. Nesta casa tudo é de verdade. O chá que eu tomo é de verdade, as roupas, a comida… E sabe qual é a melhor parte de viver aqui? É que as coisas nunca acabam! Sério, eu juro que já tentei. Já esvaziei toda a dispensa de comida. Nesse dia eu comi que nem uma porca. Mas no outro dia estava lá… Toda a comida de volta, você acredita?

— Pra dizer a verdade não.

— Menina, as roupas que têm aqui são roupas de luxo. Os calçados, tudo perfeito, amor!

— Por que não me solta, Heiko?

— Sem ofensas, mas ainda não confio em você.

— Se quer tanto que eu fique aqui, então por que eu tenho que ficar presa, além de já estar presa?

— Não quero que você fuja. Ela vai ficar furiosa comigo. O trabalho que foi trazer você pra cá.

— Ela quem? Por que todo mundo sempre menciona “ela”?

— Como assim você não sabe? A verdadeira proprietária desse paraíso onde vivemos. A Sra. Von Carnap.

— Eu sabia. Sabia que ela estava envolvida nisso.

— Olha, não seja tão ingrata, foi por causa dela que hoje eu tenho roupas finas, sapatos, comida de graça, não pago conta de água e nem luz. Eu reconsideraria se fosse você. Imagine viver numa casa imensa usufruindo de tudo sem pagar nada?

— Tá, mas e o mundo lá fora?

— E quem liga para o mundo lá fora?

— EU LIGO PARA O MUNDO LÁ FORA!

— Sério? O mesmo mundo que te deixou órfã? O mesmo mundo que te deixou desempregada? O que você tem lá fora, Ewa? Amigos? Você não tem. Família? Muito menos. Nem precisamos ressaltar isso, né? Você tem namorado? Esposo? Filhos? O que você tem lá fora, Ewa? NADA! ABSOLUTAMENTE NADA!

— Eu tenho a minha liberdade!

— LIBERDADE? Como ousa falar de liberdade pra cima de mim?

— O seu problema é que você passou tantos anos vivendo nessa “caixinha” que se acomodou com a vida mansa. Só quer ter tudo de mão beijada, com muito luxo e glamour.

— JURA? Engraçado que você veio pra essa mansão justamente por terem te oferecido um milhão de Zloyts, né? Ou eu estou enganada?

— O Óton vai me buscar. Eu vou sair daqui. Ele instalou câmeras pela casa.

— Infelizmente, meu anjo… Isso não vai ser possível. A sra. Von Carnap cuidou de tudo. Ela manipulou as câmeras para que seu escudeiro não percebesse o seu sumiço.

— O quê?

 

POUSADA KOSCIELNIKI GÓRNE.

 

Óton está no computador e observa as imagens das câmeras de segurança na casa. Ele vê que Ewa sempre aparece em uma e outra parte em momentos pertinentes.

Para ele estava tudo normal, mas a verdade é que a força sobrenatural que habita na casa fez com que Óton visse apenas a gravação de Ewa passando por esses mesmos locais em sua primeira noite. Mas ele ainda não conseguiu perceber a diferença e até achou que esse era o motivo dela não ter respondido as suas mensagens após a saída dele.

— Ela anda bem ocupada com o livro dela. Vou deixar pra entrar em contato só no dia de busca-la. Hoje é a última noite, então vai dar tudo certo.

 

CASA DE BONECAS, QUARTO DE HEIKO.

 

— Como isso pode ser possível?

— Eu sei. A Sra. Von Carnap é um gênio, não é mesmo?

— Por que insistem nisso? Por que ficar presa em uma casa de bonecas quando se tem o mundo inteiro lá fora para explorar?

— Que mundo lá fora, Ewa? O mesmo mundo que arrancou os seus pais de você. Você não tem mais nada lá fora!

— E o que você tem, então? Essa casa e esse maldito boneco de plástico!

— NÃO FALE ASSIM DO MEU PETER!

Heiko esbofeteia Ewa.

— Ahhh!

— Oh, ai meu Deus! Me desculpa. Tá vendo o que você me faz fazer? Eu não quero te machucar, você que começou.

— Eu quero saber quando vamos parar com esses joguinhos? Por que não me diz logo quem realmente é você?

— Quem sou eu? Sério que você quer partir pra parte mais difícil?

— Do que você está falando?

— Sabe… Eu também já vivi no mundo lá fora, doce Ewa. Eu também já fui uma pessoa que tinha uma família. Meu pai, minha mãe e eu. E um dia… Um dia… A vida se encarregou de me tirar tudo.

Heiko inicia a sua história. Enquanto isso, somos levados a alguns flashbacks enquanto ele narra sua trajetória.

 

KOSCIELNIKI GÓRNE, ANOS 1978.

 

Éramos uma família muito feliz, muito feliz mesmo. Vivíamos como a tradicional família perfeita polonesa. Tudo ia bem. Até um certo detalhe começar a mudar tudo. Esse detalhe era eu: Heiko. Um garotinho fofo que conforme foi crescendo, foi percebendo que era diferente.

Meus pais sempre eram muito envolvidos com a sociedade, não estou falando de riqueza, mas sim de valores cristãos, por assim dizer. Eram pessoas muito conservadoras, sempre prezaram pelos princípios familiares e faziam questão de enfatizar isso na frente das pessoas.

O problema é que o desejo deles de ter uma família tradicional equilibrada cairia por terra futuramente por culpa de seu único filho: Eu.

Aos 5 anos de idade, eu percebi que estava começando a gostar de coisas de menina. Minha mãe me levava nas festas e confraternizações onde haviam crianças e eu nunca ficava perto dos meninos. Sempre ficava perto das meninas, mas não porque eu gostava delas, cruzes, mas porque eu queria ser como elas. Eu via aquelas bonecas, aquelas roupinhas fofas, aquelas “Marias Chiquinha”, ficava com um desejo ardente de obter tudo aquilo.

Aos 6 anos de idade, eu estava brincando na rua com uns amiguinhos e vi que uma menina havia jogado uma boneca dela na lata de lixo. Ao meu ver, aquela boneca era velha, suponhamos, então aproveitei que meu pai estava trabalhando, minha mãe ocupadíssima lavando roupa, e fui lá ver. Apanhei a boneca da lata de lixo, saí correndo e entrei pela porta da frente antes que minha mãe voltasse da varanda.

Eu corri para o meu quarto e a escondi debaixo da minha cama. “Aqui ela vai estar segura”- Eu pensei. Esperei o dia acabar. Meu pai chegou do trabalho. Tudo parecia relativamente normal, mas apesar de criança, eu percebia quando o clima entre meus pais não estava muito bom.

Meu pai estava tendo sérios problemas no trabalho, não sabia o que era, lógico, então nunca me metia no assunto. Deixei isso pra lá. Esperei todo mundo dormir. Eu tinha uma caixinha de música com uma bailarina dentro. Acredite, eu só tinha aquilo porque foi um presente da minha avó, porque era a coisa mais feminina que havia no meu quarto.

Toda vez antes de dormir, meu pai ou a minha mãe colocava pra tocar. A caixinha entoava uma canção mundial que era mais ou menos assim…

“Se essa rua, se essa rua fosse minha… Eu mandava, eu mandava ladrilhar. Com pedrinhas, com pedrinhas de brilhantes… Para o meu, para o meu amor passar”.

Aquela música passou a fazer parte dos meus sonhos, da minha vida. Eu sempre sonhava com alguém. Sonhava que eu era uma princesa perdida em um bosque chuvoso com vestido de bailarina. E lá naquele bosque morava um anjo, um anjo que havia roubado o meu coração, um anjo que iria ser o meu verdadeiro amor.

Sonhava todas as noites em encontrar aquele anjo mesmo sendo tão pequeno e tão inocente. Eu sempre ia dormir com o som dessa música e sonhando em encontrar o meu anjo no bosque.

Eu imaginava eu andando e saltando por aquela rua, querendo a minha liberdade e o amor. E o mais curioso é que eu não tinha ideia do que era amor, obviamente.

Bem, naquela noite esperei todo mundo ir dormir. Deveria ser por volta de meia-noite. Eu liguei a caixinha de música pra ninguém desconfiar, tirei a boneca de baixo da minha cama, a coloquei em pé na parede e fiquei a olhando, a admirando, ela era linda! Como aquela garota medíocre poderia ter jogado ela fora? Eu fiquei tão feliz! Eu era um pobre menino de 6 anos que estava saltando de alegria por ter “ganhado”, podemos dizer assim, a sua primeira boneca. “Esse é o presente dos meus sonhos!”- Eu disse.

Mas algo muito pior estava me aguardando. Eu estava tão feliz com aquela boneca naquela noite que meus pais escutaram as minhas risadas. Claro que não é normal uma criança de 6 anos está rindo e cantarolando sozinha no quarto depois da meia-noite, não é mesmo?.

Então meus pais entraram no quarto. Eles abriram a porta. Eu olhei pra eles um pouco assustado, porém a minha inocência era imensa. Eu não sabia que era errado um garoto ter uma boneca. Eu me levantei, arregalei os meus olhos, enchi o meu peito e disse:

— Olha, papai! Veja o que eu achei! Ela não é linda?

E quando eu pensei que iria pelo menos ouvir um “Você pegou da onde? Não pode pegar as coisas dos outros”.

Não!

Meu pai levantou a mão pra mim. O brilho dos meus olhos estava tentando entender porque aquela mão estava levantada. Foi aí que ele acertou o meu rosto. Como se não bastasse a primeira vez. Ele acertou novamente e me derrubou no chão do meu quarto.

A vadia da minha mãe ficou olhando tudo e não fez absolutamente nada.

— HOMEM NÃO BRINCA DE BONECA! SUA BICHINHA!

Meu pai tirou o cinturão da calça e começou a me bater. Mas não eram aquelas palmadinhas de quando um pai ensina o filho. Ele estava me batendo carregado de ódio. Dessa vez a minha mãe precisou se interver.

Querido! Já chega! Ele aprendeu a lição. Não é mesmo, Heiko? Meninos não brincam com bonecas. Isso é coisa de meninas, entendeu?

Eu estava chorando deveras pertinentemente, não tinha nem argumentos naquela ocasião. A vaca da minha mãe pegou a boneca, foi lá pra fora, colocou ela na lata de lixo, acendeu um isqueiro e tacou fogo nela. Eu presenciei tudo pela janela. Nesse dia eu descobri que minha mãe estava começando a mergulhar no mundo do vício.

No dia seguinte, minha mãe articulou tudo. Disse aos professores do jardim de infância que eu caí da escada e fiquei com muitas feridas e por tanto eu não podia ir pra aula durante os próximos dias. Tudo isso para encobrir a quantidade de hematomas que o desgraçado do meu pai deixou em mim.

Os anos foram passando, querida Ewa. Desde aquele dia, eu nunca mais toquei em nenhuma boneca de novo. Mas conforme a gente vai crescendo, vamos percebendo quem somos de verdade.

Havia um garoto na minha escola. Um garoto no qual eu fiquei obcecado. Eu faria qualquer coisa por ele. Aos 8 anos eu tive a idiotice de pegar tintas guache da sala de artes e me pintei de palhaço porque ouvi ele dizendo para os amigos dele que ele gostava de palhaços.

Nesse dia, a escola inteira riu de mim. TODOS! TODOS RIRAM! Eu só tinha apenas 8 anos naquela época.

Ok, superei mais um grave no meu curriculum de fracassos e fui deixando as coisas acontecerem.

Aos 10 anos de idade, eu comecei a me interessar cada vez mais pelo universo feminino. Assistia uns programas de moda e maquiagem na Tv a cabo. Eu ficava “fascinada”! Não entendia o motivo de eu ser menino, e gostar de tantas coisas de menina.

Foi aí que um dia eu fui na dispensa procurar algumas coisas e descobri que minha mãe já havia feito balé. Então eu abri a caixa, vi aquele vestido lindo de bailarina, o tirei da caixa, encontrei as sapatilhas. Eu praticamente havia ganhado na loteria!

Então eu tive a liberdade de ir no quarto da minha mãe, e peguei o batom dela. Eu fui para o meu quarto, escondi o vestido e as sapatilhas. Naquele momento eu só queria me olhar no espelho e me sentir viva. Eu peguei o batom da minha mãe, sabor cereja. Aquele vermelho divino, um vermelho do pecado.

Eu passei nos meus lábios, borrei tudo, claro. Nunca tinha passado isso na minha vida. Eu dei aquele sorriso pra mim mesma no espelho. Mas aconteceu da vaca da minha mãe entrar no quarto e me vê daquele jeito.

— O que você está fazendo, Heiko?

— Mãe, eu… Eu…

— Se o teu pai te ver com isso, ele vai te matar!

— Por que eu não posso usar?

— Filho, você é um homem! Não pode ficar usando coisas de mulheres!

— Eu não quero ser um homem! Eu quero ser uma menina!

A vadia bateu na minha cara.

— NUNCA MAIS REPITA ISSO!

— Por que vocês fazem isso?

— Eu pari um homem! E não uma garotinha. Trata de agir como tal. Se teu pai te visse desse jeito, eu juro que…

— Ele ia me bater? Como me bateu daquela outra vez?

— Como pode ser lembrar disso? Você tinha 6 anos!

— Mas eu me lembro como se fosse ontem. Vocês me odeiam!

— Não te odiamos, filho. Você…

— Sim… Sim… Vocês me odeiam e quer saber, mãe? Quando eu crescer, serei uma mulher muito mais linda e mais poderosa que você. Os homens vão me desejar, vão se render aos meus pés.

— Onde aprendeu a falar essas coisas, moleque? Você só tem 10 anos!

— Na escola, na TV, em qualquer lugar menos na droga dessa casa onde você e o papai fingem o que não são. Por isso que você vive fedendo a cigarro. O papai vive fedendo a bebida. E o meu erro foi porque eu gosto de coisas de menina. Quer ouvir isso, mamãe? EU GOSTO DE GAROTOS! GOSTO DE UM MENINO NA MINHA ESCOLA HÁ MUITO TEMPO! É ISSO QUE EU SOU!

— CALA A BOCA! VOCÊ NÃO TEM IDEIA DO QUE ESTÁ CAUSANDO A ESTA FAMÍLIA, HEIKO?

— A senhora não tem ideia é do que tá fazendo comigo. Você e o papai… Eu odeio vocês! EU ODEIO VOCÊS!

Eu saí com tanta fúria daquele quarto. Até pensei em fugir de casa, como toda criança rebelde. Mas depois do momento de fúria, passou.

Então dois anos se passaram, eu estava com 12 anos. Conforme eu fui crescendo, fui me tornando um menino bonitinho. Sério, mas aquele bonitinho com traços femininos. Uma ninfeta por assim dizer. Nos mudamos para Koscielniki Górne. Comecei a estudar em uma nova escola. Nunca entendi que essa casa já foi habitada por várias outras famílias e nunca havia dado certo, mas não me importei.

Meus pais estavam com problemas sérios, eu também estava metido nesses problemas, então nos mudamos todos para cá. Nessa nova escola em que comecei a estudar, percebi os olhares… Os olhares dos garotos pra mim. Principalmente os mais velhos do colegial. Eles me olhavam como se eu fosse um pedaço de carne fresca. Modéstia parte eu era uma ninfetinha pra ninguém botar defeito. E olha que eu usava roupas masculinas normalmente.

Enquanto uns garotos me olhavam com tom de deboche e julgamentos precoces, outros ficavam me olhando a ponto de querer me pegar na primeira oportunidade. Não vou negar que me sentia com poder, porque havia garotos que estavam querendo algo comigo, mas é claro que eles não procuravam por amor… Procuravam por outra coisa.

Entretanto, tinha um garoto que me chamou a atenção, um garoto que quando sorria, parecia que uma áurea cheia de brilho emergia daqueles dentes perfeitos e alumiavam os meus olhos escuros.

Esse garoto se chamava Peter, sim, eu sei, é o mesmo nome do boneco, mas vamos chegar nessa parte. Peter deveria ter uns 14 anos, tinha um cabelo preto e liso, não fazia parte da turma dos garotos bagunceiros, mas era popular. Como isso pode ser possível? Geralmente os garotos populares da escola eram sempre os valentões e que sempre se metiam em confusão.

Eu passei a estudar na mesma classe que ele. Ele sempre sentava na terceira cadeira do canto da parede onde fica a porta da sala, enquanto eu sentava na fileira do meio um pouco mais atrás.

Eu ficava em total fascínio por ele de onde eu sentava. Via ele copiando o quadro, fazendo as lições… Quando os professores perguntavam alguma coisa, ele levantava a mão e respondia com muita convicção.

Eu pensei naquele momento: “Estou apaixonado”. Naquela época eu ainda me referia a mim mesma com pronomes masculinos, claro. Eu pensei que esse garoto poderia ser o anjo que eu sonhava todas as noites quando era criança. E comecei a alimentar essa ideia, de que o anjo do bosque daquela música na minha caixinha fosse ele.

Era uma tortura quando chegava o fim de semana, eu tinha que esperar até Segunda-Feira pra ver o meu grande amor. Eu nunca fazia nada, nunca puxava assunto com ele, ele tinha sim seus amigos, mas eu percebia que as pessoas se aproximavam dele por interesse, pelo fato dele ser muito inteligente.

Peter era o meu homem e eu estava disposta a tê-lo. Pensei em um milhão de alternativas para chamar a atenção dele, mas ele nunca me notava como eu queria. Não era culpa dele, afinal ele sempre estava tão focado em suas coisas e seus afazeres. Nem sempre parava pra conversar com alguém, e tá tudo bem. Cada um faz da sua vida como quiser.

Como eu havia dito antes, eu recebia muitas provocações pelos meus trejeitos femininos. Certo dia estava eu ali no refeitório da escola com minha bandeja na mão. Aquela comida era horrível, mas era o que tínhamos. Estava eu procurando um lugar pra sentar e percebi que em uma das mesas, o meu anjo estava lá, o meu Peter.

Eu sorri discretamente e até cogitei em ir na direção dele, mas aí um desses garotos babacas colocou o pé na minha frente e fez com que eu tropeçasse no chão. Foi uma bagunça! Todo mundo começou a rir. O valentão, como se não bastasse, se levantou e ainda ficou proferindo ofensas contra mim.

— Algum problema, princesa? Deixou cair a sua coroa?

— Não, eu… Eu…

— Vai fazer o quê? Sua bichinha!

Neste momento, eu estava aflita pensando que aquele grandalhão iria me bater e ninguém ia fazer nada, mas foi nessa hora que eu ouvi a voz do meu Peter dizendo:

— Já chega, Antoni!

Fiquei perplexa, nunca havia o visto falar daquela forma.

— Espera aí, espera… Não me diga que você está defendendo essa bichinha?

— E por acaso essa “bichinha” fez alguma coisa pra você?

— Ah eu tô sacando o que tá acontecendo aqui. Por isso que você é sempre tão reservado, tão na tua. Você também gosta de pegar essas bichinhas no sigilo não é, Peter? Gosta que elas chupem teu pau na hora do recreio.

— Não fale de mim como se me conhecesse, Antoni! Fique longe do garoto… Ou eu não respondo por mim.

A supervisora chegou bem neste momento.

— O que está acontecendo aqui? Posso saber?

O Peter respondeu:

Nada, supervisora. O nosso colega aqui tropeçou e caiu e o Antoni e eu estávamos tentando ajuda-lo, mas ele está bem, não é? Consegue levantar.

Aquele momento em que ele estendeu a mão pra mim, eu perdi tudo. Era de fato o anjo que eu sonhei. Era o anjo que morava no meu bosque.

Ele me levou até uma outra mesa, sentou-se ao meu lado e começou a conversar comigo pela primeira vez.

— Você tá bem? Ele te machucou?

— É… Sim, estou bem.

— Que bom! Como você se chama mesmo?

— Heiko.

— Prazer, Heiko. Eu me chamo Peter.

— É sim, eu sei, eu… Você estuda na mesma classe que eu.

— Espera, sério? Estudamos na mesma classe? Como eu sou distraído! Mil desculpas. Fiquei tão aflito por conta de um ano que eu reprovei e agora ando muito ligado nos meus estudos, então não leve isso pro lado pessoal.

— Não, está tudo bem. Eu sei que você deve ser uma pessoa muito focada.

— De qualquer jeito foi um prazer, Heiko! A gente se vê por aí na aula.

Eu não estava crendo no que acabara de acontecer. Eu finalmente senti que agora terei a oportunidade de encontrar o meu verdadeiro amor. Eu sei, eu ainda sou uma pobre criança quase adolescente, mas o amor batia na porta do meu coração incansavelmente. Eu sabia que era ele, o tempo todo eu soube que aquele anjo era na verdade uma pessoa, essa pessoa era o meu Peter.

Eu fui para a minha casa, estava radiante de felicidade. Minha mãe iria passar o final da tarde com umas amigas e meu pai estava trabalhando, então… Lembra da roupa de bailarina que te falei? Antes de nos mudarmos, a escondi de volta, então ela ficou dentro de um baú no sótão da casa.

Eu subi ao sótão, abri o baú, tirei a roupa e as sapatilhas de lá e fui para o meu quarto.

Eu precisava desse momento! Precisava me espairecer. Então eu me vesti de bailarina, calcei as sapatilhas, peguei a maquiagem da minha mãe, dessa vez eu consegui colocar o batom sem me borrar, peguei aquela caixinha de música e deixei tocar naquela música da minha infância. A música do anjo.

Ah doce, Ewa! Eu me coloquei nas pontas dos pés, me olhei para o espelho, respirei fundo e comecei a dar passos de balé sem serem coreografados. Meu corpo flutuava como plumas ao vento, meus olhos ainda que fechados, brilhavam como a luz do entardecer. Naquele momento, eu pude imaginar eu oferecendo essa dança sublime a Ele… O meu anjo, o meu Peter.

O meu coração queimava de tanta emoção, parecia que eu ia explodir. Mas depois de uns minutos, enquanto eu dançava, percebi que a brecha da porta do meu quarto estava sendo ocupada. Só me dei conta depois que quem estava me observando na brecha daquela porta era o meu pai que chegara do serviço.

Meu pai estava com uma garrafa de uísque na mão. Há muito tempo ele não bebia. Alguma coisa tinha acontecido.

Ele entrou no quarto. Fechou a porta. Meu coração já entrou em desespero. Eu pensei: Ele vai bater em mim igual daquela vez.

Ele olhou pra mim e disse:

— Onde você achou isso? Por que tá usando isso?

— Pai, eu juro que não foi minha culpa, eu…

— Eu disse por que está usando?

— PORQUE EU QUERO, PAPAI! PORQUE EU SOU ASSIM! EU NASCI NO CORPO ERRADO! EU ERA PRA TER SIDO UMA MENINA!

— CALA A BOCA!

Ele se aproximou de mim e segurou o meu queixo com força.

Esse vestido era da tua mãe… Por que está vestido como a tua mãe?

— Eu… Eu…

— Aquela vadia não quer mais saber de mim.

— O quê? Mas…

— Eu disse que ela não quer saber de mim e agora eu sei o motivo… Ela quis colocar você no lugar dela.

— Papai, eu…

O meu pai foi até a caixinha de música, colocou pra tocar novamente, mas parecia que estava no último volume. Ele se assentou na poltrona do meu quarto, colocou a garrafa de uísque no chão e disse:

— Dance. Dance pra mim.

Eu não estava entendendo qual era a dele naquele momento, fiquei extasiada por um tempo, e ele insistiu!

— VAMOS, GAROTO! DANCE!

Meus olhos se encheram de lágrimas, então eu comecei a dançar levemente conforme as batidas da música. Mas aí… Aí… Eu percebi… Enquanto eu dançava, eu via os olhos do meu pai… Eu via os olhos do meu pai em minha direção… Não era o olhar de um pai bravo porque seu filho fez besteira. Era aquele mesmo maldito olhar que aqueles garotos mais velhos da escola faziam pra mim.

Pensei que era loucura da minha cabeça, que eu estava paranoico ou coisa do tipo. Ele pediu pra eu continuar dançando. Quando eu percebi… Aquele desgraçado começou a colocar a mão por debaixo da calça… “Continue, meu garoto”- Ele dizia.

Sim, minha cara Ewa… Enquanto eu dançava ao som da minha música favorita, ao som da música do meu anjo, do meu Peter, do meu amor… O PORCO DO MEU PAI SE MASTURBAVA COM A MINHA DANÇA!

Eu já estava devidamente enojado com tudo aquilo, então sabe o que ele fez, doce Ewa? Sabe o que ele fez? Ele se levantou da poltrona, foi em minha direção e disse assim: “Esse será o nosso segredinho. Você vai dançar pra mim todas as vezes e eu não conto pra tua mãe que você tá usando o vestido dela”.

Ele pediu pra eu parar de dançar naquele momento, até pensei: Ufa! Acabou, agora posso respirar aliviada! Mas sabe o que ele fez? SABE O QUE ELE FEZ? Abriu o zíper da calça e colocou aquele pau imundo e fedorento pra fora! Ele segurou a minha cabeça fazendo com que eu me agachasse e ficasse de joelhos. Em seguida levantou o meu queixo pra que eu olhasse pra ele, e depois… Ele disse uma frase que somente UM FILHO DA PUTA DOENTE E DESGRAÇADO DIRIA!

Ele disse… Ele disse… “Foi daqui que você veio… E é por aqui que você vai voltar”.

E então… Ele me obrigou a por a minha boca naquela coisa. OS MEUS LÁBIOS IMACULADOS! OS LÁBIOS QUE EU HAVIA RESERVADO PARA ELE! PARA O MEU ANJO! O MEU PETER! E O FILHO DA PUTA DO MEU PAI ARRANCOU ISSO DE MIM! ELE ARRANCOU ISSO DE MIM, EWA! VOCÊ SABE O QUE É ISSO? SABE? NÃO, NÃO SABE! PORQUE VOCÊ NÃO TEM IDEIA DO QUE É VIVER NUMA FAMÍLIA DE MERDA COMO A MINHA!

Neste momento, saímos temporariamente das memórias de Heiko e voltamos ao quarto onde está ele e Ewa conversando.

— ELE ARRUINOU A MINHA VIDA, EWA! ELE TIROU DE MIM O MEU DIREITO DE AMAR! ELE… MEU PRÓPRIO PAI! E EU NUNCA VOU PERDOAR AQUELE FILHO DA PUTA! NUNCA!!

— JÁ CHEGA, HEIKO! POR FAVOR!

Ewa está mergulhada em lágrimas, Heiko está da mesma forma, com lágrimas e fúria estampada em seu semblante.

— VOCÊ NÃO QUERIA SABER A VERDADE, EWA? NÃO QUERIA?

Heiko derruba Ewa no chão com cadeira e tudo.

— Ahhhh!

Heiko desamarra Ewa, a levanta bruscamente e segura firme em seus braços.

— Não era isso que você queria saber, hein? NÃO ERA ISSO?

— Eu sinto muito, Heiko. Eu realmente sinto muito!

— Sente muito? Sente muito? Você nunca vai saber o que é sentir dor de verdade, Ewa! NUNCA VAI SABER! E VOCÊ TEM A AUDÁCIA DE VIR AQUI E DIZER QUE TUDO ISSO É FRESCURA OU INVENÇÃO MINHA! COMO SE ATREVE? COMO SE ATREVE?

— EU JÁ DISSE QUE ESTOU TE PEDINDO DESCULPAS! VOCÊ NÃO MERECE ISSO! NINGUÉM MERECE ISSO!

— EU SÓ QUERIA ENCONTRAR O VERDADEIRO AMOR, EWA! EU SÓ QUERIA ENCONTRAR ELE! EU SÓ QUERIA ENCONTRAR AQUELE QUE EU SONHAVA. EU SÓ QUERIA ENCONTRAR O ANJO DO BOSQUE. A música que era pra ser a minha carta de alforria se tornou a minha prisão. Todas as vezes que meu pai abusava de mim, ele colocava a mesma maldita música nessa caixinha pra que ninguém escutasse as minhas súplicas ou os gemidos de prazer que aquele porco dava. Eu perdi a minha maldita vida por culpa dele! E como se não bastasse, teve uma vez que a minha mãe percebeu que tinha alguma coisa estranha. Ela chegou cedo, percebeu que tinha alguma coisa errada na casa, subiu para o meu quarto, quando ela abriu a porta, viu o momento que meu pai estava abaixando as minhas calças no pé da cama e me colocando de bruços. Ele estava com o pinto nojento dele pra fora e sabe o que ela fez, Ewa? SABE O QUE A VAGABUNDA DA MINHA MÃE FEZ? Ela simplesmente olhou e disse: “Por favor, não façam barulho, algum vizinho pode escutar e chamar a polícia”.

— O… O quê?

— Sim, cara Ewa… Minha mãe cagou pra mim! Ela percebeu os abusos e ficou calada. Estava mais preocupada com o rabo dela, já que naquela altura do campeonato, já havia virado uma viciada em cocaína.

— Por que não procurou ajuda? Por que não disse a alguém da tua escola?

— Na minha escola? Na minha escola? Sabe o que aconteceu depois disso, querida Ewa? Passei a me tornar o objeto de desejo favorito dos garotos do colegial na hora do recreio. Sim, eles me levavam a uma viela atrás do colégio, era um grupo de 5 garotos e aí… Eles faziam “rodízio”. Revezavam em quem “metia” primeiro. Durante o dia eu era abusado por 5 garotos do colegial e chegava em casa, era abusado pelo meu pai, que tal, Ewa? QUE TAL, HEIN?

— Me… Me desculpe, eu juro que não sabia de nada, eu juro que…

— … Agora você sabe o que é dor, doce Ewa. Agora você sabe o que é sofrimento. Agora você sabe o que é ter ódio. Cada dia que passava o meu ódio só aumentava, eu tentei colocar um fim na minha própria vida. Estava disposto a isso, mas… Tinha alguém que fazia a minha vida ter sentido… Peter. O meu anjo Peter. Eu estava quase me jogando de cima da janela do colégio quando…

 

VOLTAMOS NOVAMENTE ÀS MEMÓRIAS DE HEIKO.

 

— Heiko!

— Ah! Oi, Peter?!

— Tá tudo bem?

— Sim, sim, estou bem.

— Eu estava pensando… Você toparia ir comigo no parque depois da aula? Estava querendo conhecer lá, mas como pode ver, não tenho nenhum amigo.

Aquela era a minha chance, não podia desperdiçar.

— Ah, claro! Claro que sim!

— Bom, então… Nos vemos!

Eu não podia crer naquilo, o meu anjo me convidou pra sair. Tudo bem que talvez era só uma amizade, mas… Eu estava feliz mesmo assim. Nos encontramos depois da aula, saímos e chegamos ao parque. Começamos a ver várias coisas juntos, foram risadas daqui e risadas dali. Ele pagou um sorvete pra mim, eu estava meio encabulado, nunca um garoto fez isso por mim.

Enquanto ele falava, eu olhava pra aquele sorriso dele, aqueles olhos… Aqueles olhos castanhos e puros… Estávamos no final da tarde, já era a hora de nos despedirmos.

Mas foi aí que enquanto estávamos sentados ali no batente, ele chegou bem próximo ao meu ouvido e disse:

Eu gosto de você, Heiko.

Só podia ser uma piada. Eu era simplesmente o garoto afeminado e zoado no colégio e o garoto mais lindo e inteligente disse que gostava de mim. Seria mais uma piada daqueles outros garotos? Eu pensei.

Fiquei sem palavras. Realmente só olhei pra ele novamente e sorri. Ele sorriu de volta, se levantou do batente e me chamou para sairmos.

Naquele momento eu vi que das costas dele, podiam sair asas, eu tinha certeza que aquele era o meu anjo do bosque, aquele era o meu amor, aquele era o meu grande amor por qual eu procurei por tantos anos. O homem da minha vida, o homem que vai me fazer feliz, o homem que vai me tirar desse pesadelo de vida que foi viver nessa minha família.

Fomos embora e finalmente chegou o momento de nos despedirmos um ao outro. Ele morava em outra rua lá pra atrás e eu tinha que pegar outro rumo, claro. Antes dele atravessar a rua, ele se inclinou pra mim e deu um leve beijo no meu rosto.

Eu fiquei extasiado, então ele saiu da calçada e foi para a rua. Eu o chamei dizendo:

— Vamos nos encontrar de novo?

Ele virou, sorriu pra mim como nunca e me respondeu:

— Eu sempre vou querer estar com você.

Quando ele concluiu a frase, em meio ao meu sorriso de felicidade fitada somente ao sorriso dele, nenhum de nós percebeu quando o maldito ônibus atravessou o sinal. Aquele ônibus atingiu o meu Peter. O sangue dele espirrou no meu rosto. Eu fiquei por uns 10 segundos sem falar nada, até que meus olhos se arregalaram, e eu dei o grito mais profundo e dolorido que uma pessoa poderia dar.

— NAAAAAAAAAAAAAAAAAAOO!!!

Eu manchado de sangue corri até a rua da frente, estava um tumulto de gente no local do acidente. Eu cheguei lá, fui tirando todo mundo da minha frente. “Abram o caminho, seus filhos da puta!- Eu disse. Foi aí que… Foi aí que…

Eu o vi, Ewa… Eu o vi… O meu anjo teve as suas asas cortadas. O meu grande amor se foi para sempre… A única razão da minha existência… Simplesmente se foi.

Retornamos à Heiko e Ewa no quarto conversando. Ambos com olhos inundados de lágrimas.

— Aquela foi a única vez que alguém me amou, Ewa… A única vez… E tiraram isso de mim. Tiraram de mim o meu direito de amar. Eu só queria encontrar o amor, Ewa. EU SÓ QUERIA ENCONTRAR O AMOR! POR QUE TINHA QUE SER ASSIM?

— VOCÊ AINDA PODE ENCONTRAR, HEIKO! DEIXA EU TE AJUDAR!

— COMO VOCÊ PODE ME AJUDAR? COMO?? EU SOU A PORRA DE UMA BONECA PRESA NESTA CASA E CONDENADA A VIVER SEM AMOR E SEM CARINHO POR TODA A ETERNIDADE!

— POR FAVOR, DEIXA EU… DEIXA EU…

Heiko em fúria, pega várias coisas do quarto e começa jogar no chão.

— EU ME ODEIO! EU ME ODEIO! POR QUE VOCÊS FIZERAM ISSO? POR QUE FIZERAM ISSO COMIGO?

Ewa se ajoelha, sente toda a dor que aquela pobre alma está sentindo. Ela põe seus braços junto ao peito e começa a falar entre lágrimas e soluços.

— Você sofreu muito… Eu sei… Mas não precisa terminar dessa forma. Não precisa ser assim, Heiko. Você merece ser feliz, você merece ser amado, merece ter alguém do teu lado que te ame. Por favor… NÃO DESISTA DO AMOR! NÃO FAÇA ISSO POR MIM! FAÇA ISSO PELO PETER! FAÇA ISSO POR ELE.

Heiko ouvindo tudo aquilo… Apenas se ajoelhou no chão e começou a chorar. Chorava como uma criança. Era uma verdadeira extensão de dor.

Ewa, comovida, não aguentou vê-lo daquela forma. Rasgou o seu orgulho e o seu medo. Foi até ele, segurou a sua cabeça e colocou em seu ombro.

— Vai ficar tudo bem… Eu prometo… Vai ficar tudo bem. Você vai ficar bem.

 

Será possível que o poema descrito no início era verdade? Que a morte sempre encontra o amor? Afinal o que estamos vivendo na realidade? Uma história de terror ou uma história de amor? Ou será que ambas as histórias são exatamente as mesmas?

 


PARTE FINAL DO ÚLTIMO CAPÍTULO

PRÓXIMA SEGUNDA-FEIRA, 06 DE MARÇO.


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  • Coitada da Heiko, estou impactado até agora. Sobre sua colocação entre amor e terror, usando a história da Heiko, é fantástico ver isso. Gostei demais desse ep

  • Coitada da Heiko, estou impactado até agora. Sobre sua colocação entre amor e terror, usando a história da Heiko, é fantástico ver isso. Gostei demais desse ep

  • Pesquisa de satisfação: Nos ajude a entender como estamos nos saindo por aqui.

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