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Na Cabeça do Gigante

A família dos Inteiro era grande e borbulhante. João e Maria Inteiro tiveram cinco filhos. O mais novo tinha seis anos, e o mais velho quatorze. Zule Inteiro era o filho mais velho. Sonhador e cheio de criatividade, não trilhou o caminho dos irmãos.

Os Inteiro eram conhecidos como uma família fracassada. Na vizinhança, todos sentiam pena daqueles pobres coitados. Zule e os irmãos eram ignorados pelas crianças do bairro. Eles não queriam se contaminar com a pobreza deles.

Nas rodas de conversa, Zule escutava as más línguas cochicharem que ele e os irmãos seriam eternamente pobres. Nunca seriam bem-sucedidos, mas eternos perdedores. Ser idiota e fraco, estava no sangue dos Inteiro.

Na escola, Zule andava solitário, enquanto observava ao longe seus colegas de classe ostentarem medalhas, aparelhos tecnológicos de ponta e roupas de marca. Nas provas bimestrais, os riquinhos sempre tiravam a nota máxima, enquanto que Zule ficava reprovado. Nos esportes, eles sempre ganhavam os primeiros lugares, e Zule nunca era convocado a competir.

Mas algo interessante aconteceu no meio dos Inteiro. Os quatro irmãos mais novos de Zule, começaram a se destacar nas avaliações escolares. Os quatro, sem exceções, tornaram-se extremamente inteligentes e talentosos. Ganhavam todas as olímpiadas que participavam, desde o mais jovem até o mais velho. Menos Zule, que permanecia um “tonto”, assim pensava.

Os pais do garoto tentaram enxergar no filho algum talento, mas era em vão. Ele era distante da realidade, e nunca seria alguém de destaque. Em contrapartida, os outros garotos ganharam bolsas escolares, para estudar em universidades importantes ao redor do mundo. Um foi para Harvard, o outro para Oxford, outro para Yale. E assim, todos os filhos dos Inteiro partiram para o mundo, brilhando em talento e genialidade. Menos Zule, que continuava sem entender o porquê de ser tão atrasado.

O que Zule gostava de fazer? Ele gostava de ouvir histórias e contá-las também, mas esse tipo de gosto não dava reconhecimento. O que dava fama e dinheiro era o mundo dos negócios, das vendas, das exatas. Ou se você fosse um grande artista com grande talento. Ele não era inteligente e nem talentoso. Distraído e sonhador, não sabia onde se encaixar no mundo.

Com tudo isso acontecendo em sua vida, ele simplesmente entrou numa espiral de desânimo. Dia após dia, seu único desejo era permanecer dormindo, até que um fim, enfim, chegasse. Não existia futuro e muito menos esperança. Aceitar o fracasso era a única opção. Mas, seus pais não deixavam que ele esmorecesse, “Com certeza existe algo preparado pra você. Seja paciente e persistente, um dia as coisas irão melhorar”, eles aconselhavam.

“Tenho que encontrar meu lugar no mundo. Preciso saber como ganhar destaque e ser reconhecido”, pensava Zule. Mesmo com esses pensamentos, o menino de quatorze anos não se encontrava e não sentia que tinha algo a acrescentar ao mundo. Mas ele não podia permanecer do mesmo jeito. Haveria algo que pudesse fazer, com certeza, mas o quê?

**

Alguns meses se passaram desde que seus irmãos partiram para a universidade, e no fim daquele ano, um grande gênio da tecnologia decidiu palestrar na escola em que Zule estudava. O garoto ficou empolgado com a possibilidade de se aproximar de alguém tão bem-sucedido, e resolveu que perguntaria o segredo da fama.

Ao fim da palestra, Zule se aproximou de Erni Gobs, o grande gênio da tecnologia, e perguntou “Como ter sucesso e fama?”. Erni se aproximou do jovem e respondeu: “Sonhe alto. Pense grande”. Mas, o garoto franziu o cenho sem entender, e assustou-se quando o homem lhe entregou um livreto envelhecido.

No meio do caminho, de volta para casa, Zule meditava nas palavras “Sonhe alto. Pense grande”, enquanto observava o folheto com o seguinte título: “Lendas da Amazônia”. Apesar do título falar de lendas no plural, o livreto só trazia uma história. A de um gigante adormecido no meio da selva amazônica. A lenda dizia que na cabeça do gigante havia um fruto dos deuses, e aquele que o comesse seria grande, rico e honrado, como um gigante.

O valente que conseguisse entrar na cabeça, e comer do fruto; seria coroado com inteligência infinita, talento incomensurável, e riquezas incontáveis. Era uma oferta tentadora. Zule precisava tentar. Ele entendeu a mensagem e sabia que para ter fama e riquezas, precisava entrar na cabeça do gigante, e assim faria.

O livreto trazia um mapa de como chegar até o gigante. Zule preparou-se para fazer a maior e mais fantástica viagem da sua vida. Nunca havia ido tão longe sozinho. Sempre estava acompanhado dos pais e dos irmãos. Mas, agora, teria que encarar o desafio sem ajuda de ninguém. Seus pais não permitiriam uma loucura dessas, ele tinha certeza disso.

Durante uma semana inteira, ele se preparou. Foi até à oficina do seu pai e pegou algumas ferramentas emprestadas. Na mochila, havia lanterna, cordas, repelente, isqueiro, cantil, entre outras coisas. Juntou uma muda de roupa, barras de chocolate e algumas frutas. Estava pronto para a grande jornada. Só faltava uma coisa: dinheiro.

Precisava pegar um ônibus até Manaus, capital da Amazônia. De lá, seguir de barco até Macapéia, um povoado na beira do rio Amazonas, e encontrar a tribo dos Tapeba onde encontraria um guia para lhe levar no coração da floresta, onde o gigante dormia.

Para isso, precisava de recursos que pudessem custear a empreitada, coisa que ele não tinha. E agora, como conseguir esse dinheiro? Só havia uma forma de alcançar isso em pouco tempo. Um empréstimo, com seu pai. Pegaria a grana da carteira do velho – Emprestado é claro! – E, quando retornasse, sábio e cheio de riquezas, devolveria o investimento com juros. Era isso, e não se comentava mais. Não era um furto. Era um simples empréstimo.

E assim Zule fez. Na calada da noite, enquanto todos dormiam, furtou toda a grana da carteira do seu pai. Deixou uma carta no criado mudo e partiu em direção à rodoviária. Esperou o primeiro ônibus da manhã, e embarcou em direção à Amazônia.

**

A viagem era longa, mas ele estava aproveitando. Tirou foto dos lugares em que passava. Viu prados e cercanias verdejantes. Grandes fazendas e cabeças de gado. Nas paradas que fizeram, gastou alguns trocados com refeição e água. Conversou com algumas senhoras simpáticas que sorriam constantemente. E dormiu muito. Dormiu tanto, que não percebeu quando um homem atarracado, com cara de mafioso, se aproximou de sua mochila e furtou todo o seu dinheiro.

Quando desembarcou em Manaus, percebeu que estava sem grana. Fora furtado em sua grande aventura. E, agora? O que fazer? Precisava do dinheiro para pegar a balsa e ir até a aldeia indígena. Perguntou a alguns pescadores por ali, se conseguiria pegar carona, mas eles disseram que era impossível. “Como isso foi acontecer? Como chego à floresta?”, ele pensava sem saber para onde ir.

O folheto “Lendas da Amazônia” indicava toda a rota a seguir. O próximo passo era embarcar na balsa e chegar à tribo dos Tapeba. Mas, ele não conseguiria fazer isso, se não encontrasse uma forma de entrar na embarcação.

No cais do porto, Zule observou os homens levando caixotes para a balsa. Logo pensou que se entrasse em um dos caixotes, conseguiria entrar na balsa sem ser notado. E assim ele fez.

Furtivamente, escondeu-se em um dos caixotes carregados de peixe, e foi transportado até a balsa. Quando percebeu que estava navegando, tratou de sair do meio dos peixes e infiltrar-se entre os tripulantes. Porém, estava trancado no porão, rodeado de malas e ratazanas.

Caminhando no meio dos caixotes, encontrou um baú antigo. Curioso, abriu. Dentro, ele achou um pequeno saco cheio de pepitas de ouro, e ficou deslumbrado com o brilho do metal. Aquilo não lhe pertencia, tinha que devolver. Mas quem esconderia pepitas de ouro no meio de velharias? Deixar algo tão precioso, exposto desse jeito! Talvez a pessoa não precisasse tanto. Talvez não fosse tão precioso assim para o dono. Mas para Zule, aquilo era a salvação. Era seu passaporte para o gigante, e consequentemente para a riqueza e a felicidade. Precisava daquele metal. Faria esse pequeno furto, e caso achasse o dono, devolveria assim que estivesse rico.

Pensando assim, ele pegou para si a pepita de ouro, e aguardou que alguém lhe libertasse do porão. Esperou um dia e meio para ver a luz do sol, quando o carregador entrou no ambiente, Zule escondeu-se entre os caixotes, e aproveitando a deixa, escapou sem ser notado.

**

Ao desembarcar no povoado dos Tapeba, Zule consultou mais uma vez o livreto, que indicava a casa de um índio. Sem delongas, foi até à casa amarela com um peixe de madeira no telhado. Procurou pelo índio Macabeus e aguardou para ser atendido.

Macabeus recebeu Zule com espanto e curiosidade. Sua assistente havia lhe informado que um menino queria chegar até TAPUÃ, o gigante adormecido. Ele ficou admirado, pois há muito tempo ninguém procurava fazer esse tipo de excursão.

Zule mostrou-lhe o livreto, e disse que gostaria de entrar na cabeça do gigante para comer o fruto dos deuses. “Queria ser rico e famoso”. “Pagaria o preço que fosse para ter o índio como guia”.

Macabeus ficou surpreso com a investida do garoto. Seu rosto de pão amassado parecia ficar ainda mais achatado com o que estava presenciando. “Aventura perigosa. Menino vai quebrá”. Ele tinha que jogar essa cuia de água fria sobre tamanha loucura.

“Dou-lhe tudo o que tenho”, disse Zule, mostrando-lhe as pepitas de ouro. Os olhinhos puxados do índio quase saltaram das órbitas. Ele não acreditava que veria tanta riqueza nas mãos de um moleque.

“Gigante Tapuã dorme sossegado. Não pode perturbar sono. Pais antigos contam que gigante acorda de cem em cem anos. Tempo está perto. Tapuã vai acordar sem que tribo espere. Devemo ficar longe. Gigante mortal”, dizia Macabeus.

Mas, tudo era em vão. Zule queria enfrentar o perigo e encontrar-se com Tapuã. A fama e a riqueza era tudo o que ele mais queria, e para conseguir isso, enfrentaria esse desafio. Era o gigante, ou viver toda sua vida na miséria e no anonimato. Ele não podia ficar para trás. Até seus irmãos tinham destaque. Ele tinha que conseguir esse fruto. Era sua única e última esperança.

No dia seguinte, os dois partiram. Macabeus carregava um facão e alguns suprimentos. Andaram por campos abertos durante toda a manhã. À tarde, seguiram uma trilha, cercada por juncos verdes. Passaram por manguezais cobertos pela cheia do rio. Até que à noite, entraram em uma clareira, aonde tinha duas barracas montadas. Era um ponto de parada, preparado pelo índio. Iriam passar à noite ali, e pela manhã entrariam mata à dentro, desmatando um caminho pouco explorado, indo até o coração da floresta, ao encontro do grande Tapuã.

Acenderam uma fogueira e comeram peixe assado. Macabeus ainda tentou persuadir o menino a desistir da aventura, mas, ao perceber que ele era irredutível e teimoso, achou por precaução adverti-lo dos perigos que enfrentaria. “Dizem os antigos, que muitos saíram ricos e sábios, depois de comerem o fruto. Mas, muitos não retornaram. Dentro de Tapuã, tem piranhas assassinas, armadilhas mortais, e abelhas venenosas que entram no ouvido dos homens. Não tem luz dentro de Tapuã. Lugar de morte. Menino deve voltar”, implorava o guia.

“Me dê sua lança e eu matarei esses montros”, Zule respondia, sem acreditar muito nas histórias antigas. “Um gigante adormecido, é um gigante sem vida. Não há nada a temer na cabeça de Tapuã. Meu grande desafio foi ter chegado até aqui. Entrar na cabeça desse monstro será apenas um detalhe”, pensava o garoto.

Antes do amanhecer, Zule acordou com o rosnado de uma onça pintada. Macabeus já estava de pé, pronto para seguir viagem. Após a refeição, caminharam até a encosta de um morro e percorreram essa trilha durante muito tempo. Ao meio-dia, Zule ouviu o som de um riacho, e Macabeus apressou o passo dizendo que o rio estava próximo.

Ao ver as águas correntes, Zule disparou na intenção de se refrescar, mas, foi interceptado pelo índio que lhe mostrou os crocodilos, prontos para o ataque. “Águas perigosas. Crocodilos, piranhas e cobras. Menino ter cuidado”, alertou.

Após percorrerem alguns metros ao lado do rio, chegaram a uma pequena canoa, escondida entre os arbustos. Remaram durante todo o dia, passando por corredeiras e quedas d’águas. No percurso, avistaram antas, araras de várias espécies, alguns micos e dezenas de garças. A natureza verdejante e pulsante acompanhava o braço do rio mata à dentro. Era sem dúvida uma paisagem deslumbrante. Zule, nunca esqueceria os lugares por onde passara. Seria uma grande história que ele teria para contar. Uma grande aventura na floresta.

Atracaram a canoa em uma pequena ilha no meio do rio. Andaram a pé seco até a mata. Subiram um monte e caminharam no meio da vegetação. A mata fechada era de difícil acesso. Grandes árvores cobriam o céu, transformando o lugar em um cenário escuro e úmido. Os arbustos arranhavam os braços dos viajantes e os mosquitos cobriam o corpo deles, ignorando o repelente. O ataque dos mosquitos só melhorou, após queimarem um galho seco que soltava fumaça e afastava a nuvem.

Encontraram uma pequena clareira e amarraram as redes. Tentaram dormir àquela noite, mas o calor era infernal. Os mosquitos brigavam para sugar o sangue deles, os grilos cantavam, as onças rugiam, e o som de outros bichos desconhecidos, deixavam-lhes vigilantes, prontos para um ataque. Passaram a noite acordados, sentindo a ameaça aproximando-se cada vez mais. Estavam assustados.

Não perceberam quando o sol nasceu. Sabiam que havia amanhecido porque os bichos se acalmaram. Pela manhã as presas eram silenciosas. Ficavam entocadas, tentando sobreviver. À noite, Jaguatiricas fugiam apressadas perseguidas por predadores famintos. À luz do sol, elas tentavam ser discretas para viverem mais um dia. Zule e Macabeus só podiam prosseguir com a luz, mesmo que o sol penetrasse com desânimo entre as árvores.

Zule era muito curioso, e tudo que via e não conhecia, perguntava ao índio. Ele ficara surpreso com alguns buracos no chão, que pareciam pequenas entradas de ar. O índio lhe explicara que ali havia uma estrutura complexa abaixo dos pequenos buracos. Eram os chamados formigueiros. A grande construção das formigas tanajuras. E aqueles buracos, eram as portas de acesso que elas utilizavam para o transporte de alimentos e material de construção. Afinal, era verão, e as formigas trabalhavam até o inverno. Elas precisavam correr para estocar comida e ampliar o formigueiro.

Ele também queria saber os tipos de árvores, de frutos e como viver na floresta. Era decerto, muito curioso.

Até que chegaram a um pequeno abismo no meio da mata. Uma pequena fenda no chão que dividia a floresta. “Depois daqui, menino segue sozinho. Essa é a veia do coração. Menino anda direto e encontra o gigante. Macabeus não pode ultrapassar. Costume da tribo. Se ultrapassar Macabeus é maldito. Menino deve ir sozinho”, disse o índio.

Zule não tentou convencê-lo, o índio não iria adiante. Porém, ele pediu que Macabeus lhe esperasse ali. Ele não saberia voltar sozinho. Ainda precisava do guia para voltar à civilização.

Após beber água e comer carne seca, Zule partiu com o facão em punho. Atravessou a ponte sobre a fenda e entrou na região do coração da floresta. Estava prestes a realizar seu objetivo: comer o fruto dos deuses e tornar-se rico e poderoso. Daria muito orgulho para os seus pais. Seus irmãos iriam lhe invejar. E seus vizinhos metidos curvar-se-iam diante dele. Estava próximo da glória e da fortuna, do êxtase e da realização. Aquele era um grande momento para Zule, o explorador.

**

A primeira coisa que avistou foram os dedos do gigante. Ele só percebeu que eram dedos por conta das unhas longas e sujas. Se não estivesse atento, confundiria com um alto monte diante de si. Como subiria aquela inclinação?

Zule prendeu o gancho no topo do dedão, e com muito esforço, agarrou a corda subindo metro após metro. No alto, percebeu suas mãos sangrando. Limpou-se nas calças e continuo a subir. Era uma escalada íngreme. As canelas do gigante estavam repletas de musgo e ele não conseguia apoiar os dedos nas fendas. Agarrou-se a alguns galhos que cresciam rente ao corpo do gigante. E, firmando-se nos cipós, alcançou rapidamente o abdômen onduloso.

A pele de Tapuã era firme como rocha. Escalar a área do tórax foi a parte mais fácil, era o local de maior apoio para os pés. Ao chegar aos ombros do gigante, Zule pendurou-se em raízes que saíam do ouvidos, e subiu até o lóbulo da orelha.

Dentro do pavilhão auricular, caminhou até a entrada da concha, e enfiou-se dentro da gruta enorme e escura. Alguns metros caminhando e o chão tornara-se escorregadio. Caiu em um túnel apertado que descia em uma espiral profunda. “Se descesse mais, talvez parasse no estômago do gigante”, pensou, ao desabar numa poça.

A cabeça do gigante era uma caverna sombria, lamacenta, úmida e cheia de mofo. Com a lanterna ligada, Zule seguia a trilha que o livreto indicava para chegar ao fruto dos deuses. Havia um caminho demarcado por outros aventureiros, aquele não era um lugar inexplorado. Outros também vieram atrás do poder vindo de Tapuã. Zule sabia que seria bem sucedido em sua empreitada. Nunca mais as coisas seriam as mesmas. Um novo futuro estava por vir.

Alguns morcegos voavam velozes, assustando o menino. Ele tentava iluminar o topo da cabeça do gigante, mas o facho de luz não alcançava chegar tão alto. O que a luz conseguiu focar, foi um morcego ressecado, de olhos vermelhos, pousado diante dele, dando-lhe um susto e fazendo-lhe cair.

“Que queres viajante? Estás perdido?”, o morcego perguntou, com uma voz rouca e envelhecida.

Zule foi tomado pelo espanto. Ele tremeu ao ouvir a voz do morcego, mas não quis questionar o porquê daquela anomalia. Ao invés de gritar e correr assustado; decidiu iniciar um diálogo com aquele bicho estranho e falante. “Vim para comer o fruto dos deuses. Vim em busca de riquezas e glórias. Pode me ajudar?”, ele perguntou.

“Não vás adiante. O caminho da morte lhe espera. Suba as escadas auriculares e retorne para casa. O preço que se paga para chegar ao fruto é alto, e não se pode retornar a partir daqui”, disse o morcego, mostrando uma ponte de nervos.

“Não posso voltar. Meu destino é ser grande. Só irei retornar após comer o fruto dos deuses”, o menino respondeu, determinado a seguir adiante.

Zule olhou o mapa cerebral e confirmou sua localização. Estava no hemisfério esquerdo, lugar de raciocínio lógico, uma área que ele pouco dominava. Para chegar ao fruto, teria que percorrer um enorme labirinto, descer por uma espiral no lobo frontal até chegar ao centro. Seria mais uma grande viajem a realizar, mas ele estava confiante.

Não percebeu que estava faminto. O estômago roncou dando sinais. Encostou-se em uma raiz seca, e comeu maça e chocolate. Aproveitou para tomar água e lembrar-se de casa. “Como seus pais estariam? Será que sentiam saudades? Uma semana tinha se passado. Deviam estar desesperados atrás dele”.

Lembrava-se de que todos os dias quando o pai ia trabalhar, dava um beijo em sua testa. Seu pai era incrível. Motorista de ônibus incansável. Todos os dias, pontualmente, ele saía às seis da manhã, e só voltava às seis da noite. Homem forte e trabalhador. Merecia que seus filhos lhe dessem orgulho.

Zule caminhou no meio da escuridão. Um emaranhado de teias grossas se entrelaçava em um ninho viscoso e difícil de ultrapassar. Para ir adiante, precisou usar o facão e cortar o emaranhado de fios à sua frente. Em seguida, chegou a um grande salão oval com teto curvilíneo, que gotejava um líquido gosmento. Um grande lago verde e borbulhante havia se formado, e piranhas com dentes afiados, saltavam de um lado a outro, mergulhando naquelas águas ácidas.

“Só há uma maneira de ultrapassar”, disse o morcego, atrás de Zule.

O garoto assustou-se e jogou o facho de luz no rosto do morcego falante. Ele voou pousando em uma fenda próxima.

“Você quase me mata de susto. Por que está me seguindo, se não vai me ajudar?”, Zule perguntou, ainda ofegante.

“Não importa. Você não pode mais voltar. Agora encontre o centro do cérebro, ou morra aqui”, respondeu o morcego.

“Como ultrapasso esse lago?”.

“Deves escalar até o teto e pendurar-se nas alças que lá estão. Não podes cair nessas águas. Se as piranhas não lhe comerem antes, o ácido irá corroer sua alma”, avisou o mamífero.

Zule ficara impressionado. Realmente iria precisar da ajuda do morcego. Estava com medo. Nunca havia feito isso. Mas, agora precisava ser corajoso e enfrentar esse obstáculo. Não podia mais voltar, então, tinha que chegar até o fruto e escapar depois de conquistar a glória.

“Tenho uma boa notícia para lhe dar”, disse o morcego observando-o com um olhar tristonho. “Os musgos que existem por aqui, são poderosos coagulantes; se por acaso um membro seu for amputado, musgo é o melhor remédio. Não se esqueça disso”.

“O que ele quis dizer com amputado?”, pensou o menino. “Enfim, não podia mais perder tempo”, continuou sua jornada escalando a parede e pendurando-se nas alças. As primeiras foram fáceis, uma após outra, e o teto parecia alongar-se cada vez mais. No meio do lago, seus braços começaram a doer, a mochila pesava e o cansaço tomava-lhe por inteiro. Precisava ser forte. Não queria morrer ali. Continuou. Agarrando uma alça e soltando a outra. Parou.

Sentiu um toque no tênis. Olhou para baixo e um grito mudo lhe tomou de assalto. As piranhas pululavam de boca aberta, tentando abocanhar os seus pés. Desesperou-se. Soltou uma mão e alça da mochila despencou. Não poderia perder suas coisas. Tudo estava ali. O mapa, a água, a comida e o facão. Não poderia perder sua mochila. Mas, ela pesava, e se não fizesse algo perderia seus pés, ou cairia no lago de ácido borbulhante.

Encolheu suas pernas e apoiou as duas mãos novamente. Prosseguiu mais alguns metros e parou. Estava exausto. Não conseguiria ir adiante, tinha que fazer algo. Soltou a mochila e observou suas coisas caírem a afundarem no lago. Estava mais leve.

Quando intentou segurar a próxima alça, sentiu dentes afiados abocanharem os seus pés e arrancarem-no de si. Um ardor subiu dos cotocos até a cabeça. Segurou com mais força as alças. Não podia morrer. Prosseguiu ainda mais rápido desejando chegar do outro lado. Desabou no chão de musgos, sentindo muita dor. Sua mochila ainda boiava sendo estraçalhada pelo ácido. Seus pés viraram jantar de piranha. Estava esgotado.

Lembrou-se do conselho do morcego, e esfregou musgo nos pés arrancados. Não conseguia pensar em nada. “Espero que o sangramento pare”, disse, antes de desmaiar.

**

Acordou assustado. Uma gota pingava insistente em sua cabeça. Sentiu algo no bolso e tirou uma lanterna de lá. Era a única coisa que carregava, perdera tudo. “Sem mapa, como continuaria? E seus pés?”. Olhou e não sentiu mais sangrar. Havia estancado. “Mas, como andaria? Se arrastando? Será que valia mesmo continuar? Tudo isso pra conquistar fama e riquezas. Será que valia mesmo a pena?”, pensava.

Não demorou muito e um pato com passos curtos e bico achatado, se aproximou dele. Parecia irritado e muito apressado. “Anda, venha depressa. Não tenho tempo a perder com aventureiros”, gritava o pato.

 “Para onde ir?”, Zule perguntava.

“Siga-me sem mais perguntas”, o pato dizia, com uma voz anasalada e entediada.

Tudo era muito estranho, mas não havia tempo a perder. Arrastou-se pelo musgo atrás do pato e chegou diante de um armário aberto. “Escolha um e suma”, dizia o pato, mostrando fileiras de pés de pato arrumadas nas prateleiras do armário.

“O que é isso?”, Zule perguntou.

“Um favor!”, o pato respondeu. “Geralmente eu cobro, mas meu amigo morcego pediu que eu lhe ajudasse”.

Observou os pés de pato e não acreditou no que estava acontecendo. Queria ter os seus próprios pés, não aqueles. Mas não podia rejeitar a oferta. Talvez fosse a única coisa que não pudesse recusar. Como iria andar, sem os pés?

Apontou para os primeiros da fila. Viu o pato retirar o par de pés e enroscar nos cotocos. Sentiu quando os pés acoplaram-se aos seus. Ficou em pé e deu alguns passos. Desequilibrou-se no início, mas depois, abrindo bem as pernas, caminhou normalmente, parecendo um pato.

“Vá e não volte mais. Não entendo porque entram aqui. Espero nunca mais cruzar seu caminho”, disse o pato, trancando o armário e sumindo entre a relva cerebral.

“Espera, diga-me a direção para o fruto”, Zule gritou, mas já era tarde. O pato desaparecera. Teria que ir sem rumo. Sem saber o caminho.

**

O ar ali era denso e opressor. A massa encefálica cinza formava um muro alto que estreitava o caminho. Não sabia para onde estava indo, e não poderia ficar perdido na cabeça do gigante. Mas, sem um mapa ele não tinha como prosseguir. “Onde está o morcego para me ajudar?”, perguntou-se.

Um buraco se abriu no chão e o engoliu. Caiu em uma geleia grudenta que o imobilizava. Ao redor, dezenas de esqueletos afogados na gosma escura. “Que diabos era aquilo? Caíra em uma armadilha?”. Como uma areia movediça, a gosma nojenta ia lhe sugando cada vez mais. Morreria afogado se não saísse imediatamente. “Mas que merda, primeiro perdi minha mochila, depois meus pés, e agora morrendo afogado em um poço fedorento. O que mais poderia acontecer?”.

Uma sombra cobriu o poço, assustando-o. Olhou para o alto e uma figura aterradora tomou forma. Uma tarântula gigante, com milhares de braços humanos lhe encarava silenciosa. Seus olhos xadrezes esverdeados analisavam-no por completo. “Isso não é um bom sinal”, pensou o menino.

A aranha era pesada apoiando os braços humanos no chão. Braços negros, brancos, finos ou grossos, todos saiam da criatura e lhe serviam de pernas. Ela desceu o buraco se aproximando de Zule. Segurou sua cabeça com algumas mãos sujas. Tentou arrancá-la, mas parou ao ver uma lágrima caindo dos olhos dele.

“Não irei matá-lo. Mas, quero algo seu”, disse a aranha, com uma voz musical que ecoava sensualidade.

“Não tenho nada de valor”, Zule respondeu, com a voz trêmula.

“Engano seu”, ela disse sorrindo e mostrando as garras bucais. “Dê-me seus braços, e lhe tirarei daqui. Pelo contrário, fique com eles e morra como os outros à sua volta”.

“Não posso fazer isso. Como viverei sem meus braços?”.

“Quando comer o fruto dos deuses, terá quantos braços quiser”, argumentou a aranha.

Zule percebeu que afundava cada vez mais. Quando tentava sair e agarrar-se na parede lamacenta, sentia seu corpo descendo na gosma escura. Uma agonia tomou de conta. Coração acelerado, respiração ofegante, estava em desespero. Não queria morrer afogado, mas também não queria perder os seus braços. Já não tinha os pés, e agora os braços? Como sairia da cabeça do gigante sem as mãos?

“Não irei perguntar novamente, irás me dar os braços, ou preferes morrer afogado?”, a tarântula insistia.

O tempo estava esgotando. A gosma cobria sua cintura. Em poucos minutos estaria submerso. Não via outra opção se não ceder à proposta da tarântula. Iria aceitar perder seus braços, para sobreviver. Gritou dizendo que sim. Fechou os olhos tentando não pensar na dor.

“Levante os braços”, ordenou a aranha. Zule obedeceu, e ela puxou-lhe da gosma tirando-lhe do buraco. Em seguida mordeu-lhe o pescoço fazendo-lhe desmaiar. Para depois, arrancar-lhe os dois braços e acoplá-los em si. Antes de partir, estancou a sangria com os musgos e deixou o menino adormecido.

**

Zule acordou esgotado. Parecia que haviam arrancado sua alma. Mesmo cambaleando, caminhou alguns metros, com seus pés de pato. Estava desolado. Sem braços, precisava do fruto. Não queria passar o resto da vida sem manipular as coisas. Queria seus braços de volta.

Caminhou durante horas, com fome, sede e frio. No meio do labirinto cerebral, cercado por muros de massa cinzenta, desmaiou. Foi despertado por uma voz infantil. Uma menina gritava muito alto. “Acorda! Você não pode morrer!”.

Despertou sobressaltado. Da parede esbranquiçada um rosto infantil desgrudava-se tentando sair dali de dentro. “Se respirar este ar por muito tempo irás morrer intoxicado. Precisa continuar”, disse a menina.

“Quem é você”, Zule perguntou curioso.

“Uma aventureira assim como você que não conseguiu comer do fruto. Estou presa aqui, ninguém pode me tirar. Mas, isso não me impede de ajudar outros idiotas que passam por aqui”, ela disse.

“Diga-me como chegar ao centro do cérebro?”, perguntou cansado.

“Antes de chegar ao fruto, deves conhecer o senhor molusco. Ele vai te ajudar com os ‘braços’”.

A garota indicou o caminho para chegar ao molusco. Disse que ele saberia a rota para o fruto.

Caminhando como um pato, Zule chegou ao oceano nervoso. Desequilibrava algumas vezes, mas conseguiu permanecer de pé a maior parte do tempo. Encontrou o senhor molusco trabalhando com discos.  Ele era DJ nas horas vagas. Pediu que lhe ajudasse mostrando que estava sem braços. O molusco trouxe-lhe dois tentáculos e acoplou-os ao corpo do menino. Agora sim, Zule podia continuar. Os tentáculos não eram como os seus braços, mas lhe serviriam temporariamente.

E assim Zule continuou em busca do fruto dos deuses. Com pés de pato e tentáculos de molusco, ele era um retalho ambulante e assustador. Caminhou para o norte até o salão das máscaras, e ao entrar no ambiente, o portão fechou-se atrás dele.

O lugar era gigantesco. Um grande retângulo, cheio de escadas e máscaras de rostos humanos em exposição. Milhares de pessoas andavam por ali, todas vieram atrás do fruto, mas agora se encontravam presas naquele salão. Rostos tristes e sem esperança.

Zule chamou a atenção de um homem alto que passava por perto. “Diga-me senhor, como chegar ao fruto?”

“Não é possível chegar ao fruto. Fomos tragados para uma grande armadilha”, respondeu o homem desconsolado.

Mas Zule não podia acreditar que era o fim. “Deve ter uma saída. Algo a se fazer”, pensava.

“Aquele é o único caminho”, disse o homem apontando para uma porta vermelha no lado oposto da sala. “Se a mulher do espelho reconhecer seu rosto, poderás passar em paz. Do contrário, terás o pescoço arrancado”.

Aquilo deixara o menino curioso. O que fazer para passar pela porta? Zule precisava arrancar seu rosto e vestir uma máscara.

“Existem bilhões de máscaras neste salão, mas somente uma poderá ser reconhecida pelo espelho, somente uma. Antes eram nove agora só resta uma. A última máscara do último guardião”, explicou o homem.

Precisava vestir um novo rosto e caso fosse do último guardião, estaria a salvo e poderia continuar a jornada. Era um desafio enorme e muito difícil de ultrapassar. Como achar uma máscara específica em meio a bilhões de máscaras? E, seu rosto, sua imagem, como que ficaria a partir de agora?

Pensou em voltar, mas não encontrou nenhuma saída. Estava trancado com os outros. Esbarrou em milhares de pessoas. Teve fome e sede. Observou homens, mulheres e crianças arrancarem seus próprios rostos, vestir uma máscara com o rosto de outra pessoa, e caminharem até a porta vermelha.

Antes da porta, havia uma guilhotina. Quando alguém se aproximava, a lâmina da guilhotina subia, revelando o fio da navalha cortante. O viajante apoiava o pescoço na barra, imobilizando a cabeça; logo em seguida, olhava para um espelho adiante. Se a mulher no espelho sorrisse, a porta se abriria e o candidato poderia continuar. Caso contrário, se a mulher ficasse irada, a navalha cairia, seccionando o pescoço da vítima. 

Uma atrás da outra, as pessoas trocavam de rosto, ajoelhavam-se diante da guilhotina e perdiam o pescoço. Qual a chance de achar uma máscara entre bilhões? Somente uma pessoa entraria! Qual a chance de Zule? Ele seria decapitado, com certeza! Fim da história, não havia mais o que fazer.

Durante dias, o menino andou de um lado para o outro, em conflito. Alimentou-se mal, e estava desidratado. “Já estou morto. Tenho que arriscar”, pensava.

Subiu no último andar do salão e procurou um rosto para si. Sempre desejou ter olhos azuis e nariz afilado, pelo menos isso iria realizar. Arrancou seu rosto e com muita dor, colou a nova face. Olhou seu reflexo num pequeno espelho, e gostou do que viu. Estava bonito. Agora iria enfrentar a guilhotina. Morreria com olhos azuis.

Aguardou duas mulheres à sua frente. Foram decapitadas. Esperou a lâmina, ainda suja de sangue, levantar. Apoiou o pescoço na barra e sentiu quando ficou preso. Um filme passou em sua cabeça. Pensou nos pais, nos irmãos, na sua casa. Nos natais, nos aniversários, e nas brigas. “Irei morrer sozinho”.

Tentou sair dali, mas não conseguia. Gritou pedindo socorro, mas ninguém poderia ajuda-lo. Fechou os olhos para não ver o espelho, mas a mulher refletiu sua imagem. Era tarde demais. Estava a um fio da navalha. Podia escutar a lâmina descer furiosa e partir o seu pescoço ao meio. Podia imaginar sua cabeça quicando e sendo jogada no fogo. Não queria morrer daquele jeito.

Abriu os olhos e viu a imagem da mulher no espelho. Um rosto doce e angelical. Sorriu, e esperou a morte.

Mas a mulher retribuiu o sorriso, e uma luz ofuscou o salão inteiro, abrindo a porta vermelha. Zule levantou-se e caminhou em direção ao portal. Não olhou para trás, estava a salvo. Um grande alívio pousou em seu coração. Respirou profundamente e fechou os olhos. Fora escolhido para comer o fruto. Nada poderia lhe parar. Era um verdadeiro herói.

Estava pronto para comer a glória. Depois de tudo que enfrentara nada mais poderia lhe deter. Sendo provado e aprovado em todos os desafios, sentia que estava destinado a ser grande e adorado. Uma sensação de triunfo lhe preencheu. Sentia-se ótimo.

Uma mulher mística com vestes brilhantes voou até Zule. “Siga adiante e encontrará o fruto”, ela disse. Em seguida, partiu, deixando uma luva cintilante com ele. “Pra que serve isso?”, perguntou-se.

Desceu alguns degraus até entrar em um oráculo mágico. O lugar era um ovo gigante com um pedestal no meio. Em cima do pedestal, uma esfera vermelha cintilante, pulsava. O fruto dos deuses lembrava uma uva encrustada de rubis, e ao redor da uva, um fogo ardente lhe envolvia.

Então era verdade; o fruto existia; estava ali diante dele. Era o momento mais esperado em toda sua vida. Comeria e tudo se transformaria. Glória, poder e grandiosidade. Todos se curvariam diante da beleza e superioridade de Zule, o grande.

Ao se aproximar do pedestal, sentiu o calor do fogo envolvente. Pôs as luvas cintilantes, na ponta dos tentáculos, e tomou o fruto em suas novas mãos. Foi tomado por uma grande emoção. Pela primeira vez em toda sua vida, conseguira conquistar alguma coisa relevante.

Assustou-se quando a mulher mística materializou-se diante de si. “Seja grande e poderoso”, ela disse. “Não podes comer o fruto dentro do gigante”, alertou antes de sumir, como uma estrela cadente.

Sem que Zule percebesse, um homem sem rosto observava tudo o que acontecia no óraculo. Atrás de portas entre abertas, ele espiava Zule caminhar com o fruto até o corredor da liberdade.

Antes do corredor, que dava acesso ao exterior do gigante, havia um saguão no meio. E, no centro, uma mesa comprida recheada de comida. Zule observou as coxas de frango, os peixes assados, os pães suculentos, as maças e uvas brilhantes, as taças de vinho. Estava faminto, não poderia resistir a essa oferta. Afinal, havia conquistado seu prêmio, aquilo era sua recompensa.

Sentou-se diante do banquete e saciou sua fome e sede. Comeu muito, mas muito mesmo. Ficou pesado de tanto comer. Teve sono. Tirou as luvas e apoiou o fruto dos deuses na mesa, perto de si. Dormiu.

**

Abriu os olhos lentamente. O sono ainda pesava em sua cabeça. Não tinha noção do quanto estava cansado. Esticou os tentáculo e as pernas com os pés de pato. Estava renovado. Nada melhor do que uma boa refeição e um ótimo cochilo. Olhou ao redor e viu toda a bagunça que fizera. Resto de carne, copos sujos e frutas pelo chão. Voltou a olhar para a mesa e se deu conta de que o fruto dos deuses havia sumido. Entrou em desespero. Onde estava? Tinha deixado em cima da mesa perto de si! Como sumira assim?

Ouviu alguns passos atrás de si. Olhou de relance e percebeu uma sombra passando entre caixotes abandonados. “Quem tá aí?”, perguntou com a voz trêmula. Correu em direção ao barulho e viu um homem atarracado segurando o fruto nas mãos. “Devolva meu fruto, seu ladrão de uma figa”, gritou, perseguindo a figura estranha.

Correram em direção ao corredor da liberdade. Zule não iria deixar que ninguém roubasse aquilo que tanto lutou para conquistar. Mataria se preciso fosse para ter o fruto novamente.

Esticou seu tentáculo e derrubou a figura estranha. O homem puxou uma faca e cortou a ponta do tentáculo. Zule soltou um grito de dor que ecoou por todo o ambiente.

Entraram em luta corporal. O menino tinha a mesma altura do homem, mas seus pés não ajudavam, e ele se tornava lento. Zule agarrou-se com o fruto e correu em direção à saída.

Uma serpente gigante se aproximava dos dois forasteiros, pronta para dar o bote. Estavam encurralados. Precisavam sair o mais rápido possível.

No fim do corredor, viram uma luz irradiar. O problema é que sapos, grudados nas paredes, cuspiam uma gosma grudenta que imobilizava os pés dos dois perseguidos.

Enquanto isso, a serpente se arrastava ligeira com a boca aberta pronta para engolir suas vítimas. Com muito esforço, Zule conseguiu se livrar da gosma e continuou até chegar à porta de saída. Olhou para trás, e viu o homem se debatendo para se livrar daquilo.

“Ajude-me, por favor, me tira daqui”, ele gritava em desespero. Zule ainda pensou em voltar, mas se retornasse seria engolido pela serpente. Não conseguiria se desgrudar daquela cola. Não podia perder sua vida. Infelizmente teria que partir sem o homem atarracado.

Deu as costas e saiu do corredor. Sentiu o calor vindo dos raios solares. Escutou o grito apavorado do homem sendo devorado pela serpente. Não havia mais o que fazer, ou ele ou os dois iriam morrer. Não podia se sentir culpado. Não havia mais lugar para a culpa em sua vida. Estava livre de qualquer coisa que lhe colocasse para baixo. Não aceitaria mais esse tipo de sentimento. Seria grande.

Estava no topo da cabeça do gigante, e uma escada de cordas surgiu do interior do cérebro. Desceu com alguma dificuldade, pois os pés de pato e os tentáculos não ajudavam, precisava livrar-se daquilo.

Observou o fruto diante de si e preparou-se para comer. Com os olhos fechados, imaginou-se morando em um castelo, sentado em um trono, com roupas celestes, banquetes grandiosos e festas de gala. Viu diante de si uma multidão que lhe admirava e lhe invejava. Seus vizinhos e colegas da escola tentando lhe bajular, e sendo ignorados e humilhados. Seus pais contando a todos o poder e soberania do filho. Milhares e milhares beijando seus pés e tentando se aproximar. Sentiu-se um deus.

Antes de morder o fruto, sentiu o chão tremer. Abriu os olhos lentamente e sentiu mais uma vez a terra estremecer. Ouviu as aves revoarem em desespero, os macacos gritarem assustados, as árvores caírem ao redor. Olhou para o alto e não acreditou no que via. O gigante havia acordado.

“Dê-me o fruto. Ele não lhe pertence”, disse o grande Tapuã olhando para Zule. O menino correu em disparada, não conseguia ver nada diante de si, caiu e levantou-se, “malditos pés de pato”, pensava enquanto tentava escapar.

O gigante esmurrou o chão abrindo uma cratera na terra. Zule saltou com o baque. “Logo agora que conseguira o fruto, iria morrer esmagado por um gigante? Não, não, precisava sair dali e voltar para a civilização. Precisava ser adorado e rico”.

Tapuã levantou sua perna pesando toneladas. Iria esmagar aquele ladrãozinho infeliz. Zule percebeu quando uma sombra inundou toda a floresta. Debaixo da sola do pé de Tapuã, só havia escuridão, e Zule estava naquela escuridão. Tentou correr mais rápido, mas não conseguia. Ouviu e sentiu o vento soprar pela floresta. Era o pé de Tapuã que descia sobre Zule.

Tudo tremeu quando o gigante pisou sobre o menino. Tapuã olhou na sola do pé se o ladrão escapara. Abaixou-se e procurou entre as árvores retorcidas. Havia muito sangue de animais esmagados. “Certamente estava entre eles”, pensou. Apontou sua mão para baixo, e como se puxasse algo, esperou até que o fruto dos deuses flutuasse até ele. Agarrou a esfera de rubis e inalou-a. Fechou os olhos e voltou a dormir.

A floresta congelou em silêncio. Olhos assustados focavam no gigante, temendo sua grandeza. O ar suspenso temia fazer barulho. Tudo ao redor prostrava-se diante da onipotência de Tapuã. Seu sono deveria ser respeitado.

Não havia rastros de Zule. Provavelmente, seu corpo fora esmagado e imprensado na terra. Não tinha chances de sobreviver à pressão entre o peso do gigante e o chão duro. A não ser que se escondesse no solo.

**

E foi assim que Zule escapara. No último minuto, jogou-se em um buraco pequeno no solo e caiu em um túnel estreito. Uma caverna de tons amarronzados, iluminada por raios solares, aconchegou o menino. Na queda, perdera seus pés de pato e os tentáculos, era um boneco desmembrado.

Não conseguia se mexer, estava imobilizado. Seu peito palpitava, seu rosto sujo de lama mostrava uma face de puro horror. Perdera o fruto, e estava numa cova no meio da Amazônia. Sem mãos, sem pés e preso. Tudo estava perdido. Foi-se a glória, foi-se a fama e o poder. Chorou e soluçou alto. Perdera outra vez. Era um fracasso total.

Ouviu patas caminharem ao redor. Uma formiga tanajura subiu no alto do seu nariz e disse: “Aqui não é o seu lugar. Saia daqui”.

“Se eu pudesse ao menos me mexer, eu sairia”, ele disse melancólico.

“Onde estão seus braços e seus pés?”, perguntou a formiga.

“Na cabeça do gigante”.

“Diga-nos como chegar lá e resgataremos os seus membros”.

Zule então lhe contou toda sua jornada, desde o lago ácido até o oráculo mágico. Pediu que as formigas trouxessem o fruto, mas recebeu um não delas. Disseram que não pegavam nada que não lhes pertencia.

No dia seguinte, um batalhão de formigas tanajuras subiram até a cabeça do gigante. Enquanto que no formigueiro, um segundo batalhão permanecia trabalhando para reconstruir o estrago que Zule causara, e para estocar alimentos.

Zule passou alguns dias observando as formigas. Elas levantavam antes de amanhecer e iam trabalhar. As mais novas eram desengonçadas no começo, mas com o passar dos dias adquiriam habilidade e conseguiam fazer o serviço de forma eficaz. Todas se ajudavam mutuamente. Eram focadas, disciplinadas e nunca desistiam. Quando uma coluna de barro desmoronava, analisavam aonde tinham errado e depois de encontrar a falha, reconstruíam da forma correta.

Amorosas, conversavam umas com as outras, sorriam satisfeitas. Nada lhes faltava, eram felizes. Não existia uma competição para saber quem era melhor, quem tinha mais talento, quem era mais veloz. Todas buscavam fazer o seu melhor. Se alguma não se encaixasse em um determinado labor, eram designadas para outro lugar até se encaixarem adequadamente. Era encantador observar o trabalho das formigas.

Durante aqueles dias, ali, no interior da terra, no lugar mais baixo da superfície. Zule percebeu algo que não estava enxergando. Procurava a grandeza nas alturas do gigante, mas, encontrara algo mais precioso nos lugares baixos.

Enquanto isso, na cabeça de Tapuã, as formigas marcharam pelo lago das piranhas, pelas armadilhas da aranha, e não foram barradas. Chegaram até o salão das máscaras e cavaram um túnel, libertando todos que estavam ali.

Algumas semanas depois, Zule alegrou-se quando as tanajuras voltaram ao formigueiro com braços e pés humanos. Não eram os seus braços ou os seus pés, mas serviriam. Era melhor do que os pés de pato e os tentáculos de molusco.

Imensamente agradecido pela estadia e ajuda, deixou o formigueiro e seguiu até o abismo que separava a floresta. Ali, avistou Macabeus deitado em uma rede.

O índio assustou-se quando olhou para Zule. Não lhe reconheceu. O menino continuava com um rosto diferente do verdadeiro. Teria que viver para sempre com uma nova aparência. Pelo menos teria braços e pés humanos.

Conseguiu voltar à Manaus e pegou um ônibus para casa. Sentindo-se diferente, sabia que sua vida nunca mais seria a mesma. Algo havia mudado.

Depois de enfrentar piranhas assassinas, aranhas mutantes e mulheres no espelho. Depois de ser mutilado, perder sua identidade e mudar sua essência para conquistar a fama. Percebeu que poderia encontrar-se no mundo se imitasse as formigas e trabalhasse arduamente. Se se esforçasse e nunca desistisse. Se contasse com ajuda de pessoas experientes para lhe auxiliar. Se fosse humilde como as formigas e trabalhasse em equipe. Se entendesse que o principal não era ter, mas ser. Ser íntegro, honesto e determinado. Ser consciente e entender que era único e que não deveria invejar os outros, mas trilhar o seu próprio caminho.

Zule não era seu irmão. Não era seus vizinhos. Não era seus colegas de escola ou até mesmo Erni Gobs.

Zule era Zule, e ninguém mais era como ele. Mesmo que tivesse outra face ele seria unicamente Zule.

Fora recebido por seus pais, que inicialmente não o reconheceram. “Você não é o meu Zule. O meu Zule tem olhos castanhos e nariz achatado”, dizia Maria Inteiro, mãe de Zule.

“Sou eu mãe. Com um rosto que não é meu, mas ainda assim sou eu”, ele explicava.

Zule Inteiro não era mais inteiro. Deixara muitas coisas pelo caminho. Mas, aprendera que nada se conquista do dia para a noite. “Uma mordida e tudo se transforma”, não era verdade. Precisava trabalhar arduamente para conquistar o seu espaço.

Pensando nisso, trabalhou no que mais amava fazer: contar histórias. Começou na escola, depois na vizinhança e por último nas praças. Estudou, fez oficinas de histórias e se profissionalizou. Escreveu um livro de um menino que entrava na cabeça de um gigante. Fora aplaudido por seu talento. Depois de muito tempo, Zule já não era mais um fracasso. Dia-após-dia trabalhou para ser grande, e encontrando a si mesmo, encontrou a glória.

 

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