NOTA DO AUTOR: O EPISÓDIO CONTÉM TRECHOS QUE PODEM CAUSAR DESCONFORTO.
“O inferno está vazio e todos os demônios estão aqui.”
William Shakespeare
28 de fevereiro, 2017,
terça-feira de carnaval: 14h40min.
As pupilas de Ronaldo se dilatam. Ele sente a boca completamente seca e então range os dentes, um impulso tão vigoroso que faz as mandíbulas doerem. Agachado, no final de uma escadaria, com os braços enlaçando os joelhos com extrema força, Ronaldo chora copiosamente, como uma criança desamparada — e não como um homem no alto dos seus cinquenta e cinco anos —, até conseguir recuperar a calma — ou uma relativa calma. Ato contínuo, após desatar os braços, resgata com uma das mãos — ambas um bocado trêmulas — o celular depositado sobre o degrau ao seu lado. Conforme segue teclando, um tanto hesitante a sequência de números sobre a tela, vai repetindo para si mesmo, tentando se convencer, enquanto tomado por um misto de preocupação excessiva, irritabilidade e uma vergonha avassaladora, de que sim, precisará dramatizar, se alterar, dissimular se for preciso…
A ligação, por fim, é completada. No visor, o nome de Márcio Antônio.
— Alô? — a voz de Ronaldo se acelera um pouco — Por favor, me ajude! Me ajude!
1962…
O choro estridente do bebê ecoava pela casa. Um choro rítmico e repetitivo que deixava Antoniel cada vez mais impaciente, se sentindo perdido e incapaz, a ponto de enlouquecer. Norma precisava reagir. A criança precisava ser amamentada. Não ia demorar muito para que recebessem reclamações de algum vizinho.
Antoniel respirou fundo e engoliu saliva o quanto achou necessário, à medida que andava de um lado para o outro, sobre o tapete da sala, a passos largos. O choro do bebê, o senso de urgência, a apatia de Norma… Precisava resolver aquilo quanto antes. Desde a manhã anterior, quando haviam retornado da maternidade, que não dormia. Em que estado iria chegar no dia seguinte ao Tribunal de Justiça para trabalhar? E com certeza não conseguiria se concentrar para exercer suas funções de desembargador, ou qualquer outra função por mais irrelevante que pudesse ser diante da situação que estaria deixando em casa. Ainda que com o apoio de sua mãe, que já estava a caminho para ajudar a ele, e, principalmente, à Norma.
Antoniel se dirigiu ao banheiro com o mesmo afã que vinha mantendo em sua peregrinação sem destino sobre o tapete da sala. De frente para o espelho, acima da pia, ele recebeu de volta o reflexo de uma sombra, um rosto completamente agastado, com inchaço nos olhos, olheiras, quase não reconhecendo a si próprio… Por fim, pegou um comprimido, um calmante, no pequeno compartimento atrás do espelho e o engoliu de uma só vez com água. Quando tentou devolver o copo para a borda da pia, se surpreendeu ao ouvir o som do vidro se espatifando no chão.
O choro do bebê, o senso de urgência, a apatia de Norma…
Antoniel se abaixou, sem pressa, para recolher os cacos próximos de seus pés e, tão logo os derramou dentro da lixeira, não conseguiu se conter, não conseguiu conter as lágrimas que começavam a correr em profusão por sobre o seu rosto.
1974…
Ronaldo sentia mais e mais a aceleração dos batimentos do seu coração, o suor, a alteração na respiração, o frio na barriga e uma vontade quase incontrolável de urinar, enquanto ouvia Antoniel, impaciente, gritando, no corredor, seu nome a cada chamamento, conforme esmurrava a porta trancada do quarto.
— Escuta aqui, moleque! Abra logo a porra desta porta. Se eu tiver de colocá-la abaixo, você não vai gostar do que vai ver.
Ronaldo, encolhido sobre a cama e mantendo os olhos cerrados, teve a impressão de que iria enfartar tamanho o descontrole absurdo dos batimentos do seu coração. De repente, sentiu uma mão tocar a testa. Uma mão fria, tão fria como o suor que o queimava, e então abriu os olhos. Laura, graças a Deus, estava lá, sentada ao seu lado e sorrindo, um sorriso discreto, quase imperceptível.
— Por quê? Por que ele, eles não me deixam em paz? — Ronaldo indagou à medida que tentava estancar o choro que já rolava em profusão.
— Infelizmente não há o que se fazer. Não por agora, querido — Laura respondeu pausadamente, sem deixar de acariciar a testa do irmão — Vamos arranjar um jeito de resolver tudo isso, certo?
— Sei o que eles irão fazer. Você sabe o que eles irão fazer. Por que esqueceram de você, Laura?
Laura permaneceu em silêncio por alguns instantes sem deixar de fitar o irmão.
— Eles não esqueceram de mim, querido — ela retrucou, por fim, firme como uma rocha, exibindo, ainda que um tanto reticente, os hematomas, as manchas rochas nos braços e pernas.
De repente, Ronaldo viu-se em meio a uma escuridão terrível e olhou à sua volta, ansioso, procurando a pequena Bruna, enquanto a dimensão do quarto retornava à sua visão, enquanto os murros sobre a porta e os brados do pai se sucediam,
— Onde ela está? Precisamos protegê-la…
— Ela quem, querido?
A voz de Laura soou a Ronaldo carregada de dúvidas e ambiguidades.
— A nossa irmã — ele devolveu incisivo, impaciente — Bruna! Onde ela está? Eles irão fazer com ela o que fazem com a gente. Sei disso…
O estrondo da porta do quarto sendo arrombada fez com que Ronaldo desse um salto da cama, célere, buscando se proteger imediatamente, encolhendo-se, acuado, num canto de parede, ao mesmo tempo em que enxergava, desesperado, com os olhos semicerrados voltados para o chão, a sombra de Antoniel se avolumando na sua direção, ao passo que uma sensação de morte, perda de controle e de que estava fora do corpo, e que as coisas no seu entorno não eram reais, lhe tomavam de assombro.
1962…
Antoniel estacou sob o batente da porta do quarto e ficou observando Norma, sentada à beira da cama, as mãos sobre os joelhos, os olhos no vazio e de camisola, a mesma com que saíra da maternidade na manhã anterior. O choro do bebê continuava e Norma permanecia impassível. Antoniel, claudicante, caminhou na sua direção até que, após se aproximar, inclinou o corpo para frente, baixando-o a uma altura considerável, e, tão logo abeirou o rosto ao da esposa, chamou por seu nome. Nenhum retorno. Norma seguia inerte, como se qualquer sinal de vida houvesse desaparecido de seu corpo.
— Por quê? Por quê?
Antoniel, rangendo os dentes, não conseguiu se conter. Esbofeteou Norma, uma, duas vezes e ela, ainda assim, não lhe deu qualquer retorno.
— Por quê? Por quê?
Outra vez. Nenhuma reação. Mais um tapa, depositado com mais força e finalmente Norma reagiu, recuando de pronto, retirando as mãos de sobre os joelhos e agarrando o tecido da colcha, agarrando o colchão, passando a encarar Antoniel, que continuava a enxergar em seus olhos a mesma tristeza, intensa, infinita, que a invadiu tão logo após a notícia do nascimento da criança, da criança que eles tanto haviam desejado…
— Por favor, Norma. Por favor!
Norma pestanejou, sem pressa alguma, até decidir manter os olhos cerrados por completo, entreabrindo-os, em seguida, morosamente, ao mesmo tempo em que engolia em seco para só então, por fim, se pronunciar; a voz fraca realçando toda sua vulnerabilidade.
— Ela se foi.
Antoniel meneou a cabeça, repetidas vezes, enquanto dizia a si mesmo que não, que tudo aquilo não poderia estar acontecendo, até que se permitiu lançar um grito, tão alto e duradouro quanto pudessem suportar seus pulmões. Era a única coisa que lhe restava fazer naquele momento para que não enlouquecesse de uma vez por todas.
Norma, inalterada, mediu o marido de cima a baixo; em seguida, desviou o olhar, voltando a contemplar o vazio à sua frente.
Num rompante, Antoniel deixou o quarto, e, sem demora, retornou com o bebê em seu colo, não tardando a aproximá-lo de Norma, que, mesmo diante da agitação da criança, do choro estridente, rítmico e repetitivo, não demonstrou nenhuma reação de incômodo. Apenas parecia contemplar o pequeno ser disposto diante de si, como se buscasse reconhecê-lo, como se quisesse ter a certeza do que estaria vendo.
— É a nossa Laura. Ela está aqui. Ela não se foi. Ela precisa de você.
O sentimento de desamparo, a desesperança e os pensamentos negativos e intensos que vinham tomando conta de Norma a invadiram com uma fúria absurda, tornando sua respiração curva e seus membros, trêmulos. Ato contínuo, seu corpo recuou sobre a cama alguns centímetros. A expressão em seu rosto, demonstrando horror, ansiedade e surpresa, começava a digladiar com a inesperada sensação de que não havia feito o suficiente por sua filha Laura; de que não havia feito o suficiente para salvar o mundo…
Uma taquicardia; uma exaustão emocional…
Antoniel continuava a insistir em lhe apresentar a criança indefesa, o rostinho retorcido e também assustado.
— Ela precisa de você, Norma. A nossa Laura precisa de você, de nós.
Norma sentiu a alma esmagada, um cansaço imenso, entretanto, a intensidade de um amor, talvez inevitável, e na mesma proporção, começou a penetrar-lhe o ser, acelerado, potente… Laura! Laura! Realmente sua pequena Laura estava lá, à sua frente? Não seria uma alucinação?
Ela se recordou do bebê crescendo em seu ventre, do seu corpo mudando. Recordou-se também do vínculo, da conexão que sentiu com aquela criança dentro de si enquanto Antoniel via no seu semblante a neutralidade sendo substituída pela emoção e pelo choro que não demorou a escapar entre soluços.
— É a nossa filha?
— Sim. Sim — Antoniel afirmou, um sorriso amargo no canto dos lábios — É a nossa pequena Laura.
Norma, finalmente, cedeu e carinhosamente retirou o bebê do colo do pai e o trouxe para si, com um zelo extremo, buscando confortá-lo.
03 de julho, 1998, sexta-feira…
Ronaldo, vestindo um terno azul-marinho, uma gravata social em tom claro e camisa social também clara, entrou na cozinha do pequeno apartamento em que morava com Gaby e se deparou de pronto com a mesa posta do café da manhã e com a companheira sentada à cabeceira, lhe ofertando um sorriso um tanto tímido, mas também banhado de cumplicidade, conforme o examinava de cima a baixo, fascinada.
— Está lindo! — Gaby, com um sorriso alargado, se apressou em enaltecê-lo.
— Quem sabe? — Ronaldo devolveu, dando de ombros — Detesto essas trocas de chefia de gabinete…
— Quando você vai decidir começar a aceitar elogios sem se autossabotar?
Ronaldo, estreitando os olhos e franzindo a testa, deu de ombros mais uma vez. Ainda permanecia parado, a poucos passos da mesa, observando a companheira apaixonadamente feliz por um homem que não lhe fazia jus… A noite passada havia sido maravilhosa. O sexo de reconciliação, quase sempre, vinha sendo um dos melhores. Pelo menos, nesses últimos meses, era o que ainda fazia despertar algum desejo por Gaby, Ronaldo ponderou, enquanto seguia examinando a companheira, ao mesmo tempo em que se questionava para onde tinha ido, ou estava indo, toda aquela ardente inundação de sentimentos, que havia chegado quase quatro anos antes, sem pedir licença, lhe surpreendendo.
Por que Gaby não passou de uma boa noite de sexo, um caso fugaz como tantos outros antes dela? Como tantos outros durante esses quase quatro anos em que estão juntos? Ronaldo meneou a cabeça, um gesto quase imperceptível, digladiando com a sucessão de questionamentos e ponderações descabidas que vinham invadindo sua mente já há algum tempo, à medida que de novo e de novo tentava expulsá-los para bem, bem longe.
— Café? — Gaby perguntou solícita, amável, já apanhando a xícara depositada à frente da cadeira vazia.
— Claro.
Ronaldo respondeu sem pestanejar, se aproximando a passos rápidos, tomando das mãos de Gaby a xícara cheia e entornando num só gole o seu conteúdo, para, em seguida, depositar a louça sobre a mesa.
— Estou atrasado.
Ele informou, encolhendo os ombros largos e apertando os lábios numa linha angustiante, para, daí, virar-se, abrupto, partindo sem cerimônia.
04 de julho, 1998, sábado…
Ronaldo estava sentado no sofá, de pijama, olhando para a TV sem saber ao certo se deveria estar ali. Uma comichão o incomodava desde que saíra da cama, há pouco. Tinha vontade de gritar bem alto! Tinha vontade de sair correndo daquele apartamento e cruzar a rua bradando aos céus…
— Bom dia!
Ronaldo voltou-se rapidamente na direção da voz que vinha da entrada da sala. Lá estava Gaby, em pé, com uma xícara entre as mãos e um sorriso irritante nos lábios.
— Trouxe café pra você — Gaby esticou a xícara na direção do companheiro ao mesmo tempo em que pareceu entrever em seu semblante uma expressão de desagradável surpresa — Está tudo bem? — perguntou, devolvendo a xícara de imediato para entre as mãos — Como foi o primeiro dia com o novo chefe do gabinete? Nem tivemos tempo de conversar ontem à noite. Estava exausta, desculpe…
Ronaldo, com uma vivacidade notável, sem deixar de fitar Gaby nos olhos um instante sequer, deu de ombros e cruzou e descruzou as pernas, uma, duas, três vezes até decidir mantê-las abertas, bem abertas, conforme ajeitou a postura, alinhando-se sobre o sofá.
— Você sabe que eu não bebo café. Sou alérgico — respondeu, sublinhando em voz alta, num misto de espanto e genuína indignação.
1981…
A esperança de Ronaldo em começar um novo ciclo de sua vida quase desapareceu, e por completo, ao colocar os pés naquele albergue para pessoas desamparadas; aparentemente todas, como ele, moradoras das ruas. O ambiente mal cheiroso e com um aspecto de relativo abandono, com indivíduos transitando de um lado para o outro, alguns parecendo confusos, além de um falatório que dava a impressão de que ninguém se entendia, só contribuiu, e muito, para que os ecos do desespero e desalento aumentassem dentro de si. Contudo, qualquer coisa seria melhor que continuar a viver pelas calçadas, praças, rodovias, parques, viadutos, postos de gasolina, túneis, depósitos e prédios abandonados, becos, lixões, ferros-velhos…
Melhor até mesmo que viver naquela Colônia Correcional que chamam de Instituto Disciplinar, Ronaldo refletiu, amargo, sentindo um tremor absurdo por todo o corpo franzino, ligeiramente curvado, conforme buscava se convencer que faria de tudo que fosse preciso para sair daquele fundo de poço.
— O rapaz parece bem assustado.
Ronaldo, arrancado de suas ponderações, virou-se de imediato tão logo surpreendido por aquela repentina observação. Ao seu lado, não muito distante, um homem aparentemente de meia-idade, magro ao extremo, cabelos ralos e com um semblante desconfiado — apesar do sorriso entredente — , o encarava, firme, enquanto mantinha uma das mãos na cintura.
— Já deu pra perceber que aqui não é o paraíso, né mesmo?
O tal homem voltou a se manifestar, sem deixar de fitar o jovem um instante sequer, ao passo que Ronaldo decidiu manter-se em silêncio, retornando a atenção para frente, supervisionando a torre de babel exposta diante de si.
— Existe a opção de voltar às ruas, rapaz, ou seja lá de onde você veio — completou o tal homem num tom áspero — Vou te avisar. Escute bem — anunciou, conquistando, por fim, a atenção de Ronaldo mais uma vez — Aqui, quem não está doente, acaba pegando alguma coisa — acabou por declarar, ao mesmo tempo em que uma mal disfarçada careta tomava conta de seu rosto a fim de tentar amenizar a fisgada forte que irrompeu no lado da cintura em que ainda mantinha uma das mãos — Realmente isso aqui não é o paraíso. Tem gente com problema de bebida, de droga. Todo mundo tem algum problema rapaz. Quando começa uma briga, então, a gente tem de intervir. E aqui roubam de tudo: tênis, cueca. E é muito difícil de descobrir quem roubou.
Ronaldo, após um dar de ombros, baixando as sobrancelhas e arqueando-as juntas e ao mesmo tempo, estreitou os lábios enquanto rugas impiedosas surgiram nos cantos da boca. Com um brilho glacial nos olhos, voltou a mirar todo o seu entorno, indolente, firme, não deixando de notar, também, o tal homem ainda parado ao seu lado, observando-o como um gato observa a toca de um rato.
Não será este o primeiro inferno o qual irei atravessar e tampouco será o último de onde sairei com vida, Ronaldo balbuciou, frio como o granito.
1999…
Gaby estava de pé, apoiada à borda da mesa, no pequeno escritório do apartamento onde morava com Ronaldo. Exibindo um ar inquietante, seguido de uma respiração semi-irregular, encarava, com um olhar de pouca surpresa e ressentimento, o companheiro sentado sobre o pequeno sofá, não muito distante, onde se mantinha cabisbaixo, com os cotovelos apoiados sobre os joelhos e as mãos cobrindo todo o rosto. Ela o amava, reconhecia, ainda o amava. Mas fisicamente. Nada mais, além disso. Nenhuma sintonia. Seus corações há muito já tinham deixado de se colapsar e harmonizar. A magia que os tinha unido há cinco anos, depois de terem vivido quatro meses de uma intensa paixão, vinha se perdendo pelo caminho, se dissolvendo naturalmente, como toda e qualquer relação. Entretanto, Ronaldo vinha sendo o maior responsável por apressar essa queda.
— Estou cansada… — Gaby falou, por fim; a garganta seca, arranhando — Estou cansada das suas mudanças de humores. Estou cansada das suas recaídas. Estou cansada de ver como você vem se entregando cada vez mais à bebida…
— Pelo amor de Deus, Gaby — Ronaldo retrucou, descobrindo o rosto, passando a mirar a companheira com uma perplexidade raivosa — Eu só tomei dois drinques…
— Hoje. Agora. Mas a bebida, ao menos, ainda, não é o maior dos problemas e você sabe disso — a voz dela soou agressiva. Mais agressiva do que gostaria — Entramos num turbilhão… Melhor, você entrou num turbilhão e não está mais conseguindo lidar com isso, Ronaldo. Você precisa de ajuda médica, de um profissional…
— Eu não quero falar sobre isso.
Ronaldo respondeu de pronto, calmo, apesar dos pesares, e já decidido a sair do escritório, a sair do apartamento, andar, espairecer… Contudo, sabia muito bem que Gaby o aguardaria, de prontidão, disposta a retomar aquela discussão independente da hora que ele decidisse regressar.
— Você se recusa a falar sobre isso, como sempre — Gaby cravou um olhar crítico sobre Ronaldo, parecendo que o estava cortando em pedacinhos — Só que não há mais como ignorar o que está acontecendo. E eu estou muito preocupada…
— Não há com o que se preocupar. Quantas e quantas vezes terei de repetir?
Gaby se apoiou um pouco mais sobre a borda da mesa.
— Ronaldo, você vem perdendo a percepção de si mesmo, os distúrbios de memória, os formigamentos… — ela meneou a cabeça, permanecendo em silêncio por alguns segundos antes de continuar — Esses sinais não podem mais ser ignorados…
— Não, não, Gaby. Você não tem esse direito…
— Tenho o dever, Ronaldo. Estamos a cinco anos juntos e desde que essas crises começaram, tenho a impressão de que venho te perdendo…
— Tenho andado cansado, estressado. É somente isso — Ronaldo se defendeu; a tensão nitidamente estampada em seu semblante — Sabe como estou me sentindo, aos 37, em ter que disputar, pela segunda vez, uma vaga de assessor, lá, no Ministério Público, com aquela garotada. É a minha última chance, Gaby. Eles não vão querer saber se ingressei na faculdade de Direito tarde demais.
— Não ouse desviar do assunto — Gaby falou com a voz afetada, erguendo as sobrancelhas.
— Você deveria estar me apoiando…
— E o que eu tenho feito ininterruptamente nesses últimos dois anos, Ronaldo? Diga-me.
— Eu não confio neles — Ronaldo disse, levantando-se — Nenhum deles me ajudou quando os procurei. Ao contrário. Deixaram-me ainda mais confuso… Eu não confio. Eu não confio. Eu cursei três anos de Psicologia, esqueceu Gaby? Vocês, psicólogos, psiquiatras, Gaby, pensam que o mundo todo está doente. Acreditam serem semideuses, acima do bem e do mal, detentores de todas as verdades sobre a mente dos outros, mas não aceitam nenhuma outra verdade que não esteja dentro das suas arrogantes convicções.
— Você está equivocado. Nós, psiquiatras, tratamos todas as questões de ordem mental com equilíbrio e senso clínico. E além do mais, não estou dizendo que você deva buscar um de nós… Tente um neurologista…
— Porque, diabo, então não me ajuda, já que acredita que eu tenho um problema?
— Você tem um problema! — Gaby replicou furiosa, indignada, afastando-se um pouco da mesa — E se recusa a aceitar. Se recusa a me ouvir. Você precisa identificar o que está acontecendo, até mesmo pra saber se é algo com que deva se preocupar, de verdade. E eu não posso fazer isso.
Uma súbita quietude caiu sobre o pequeno escritório, a mesma de alguns instantes, entretanto, conforme ouviam o silêncio um do outro, Ronaldo e Gaby se olharam como seres humanos comuns. O efeito dessa segunda trégua momentânea foi devastador. Ao menos para Ronaldo, que se sentiu invadido, sendo analisado como um paciente qualquer, por mais que Gaby parecesse manter a distância ética necessária.
— É claro — Ronaldo iniciou; um sorriso entredente, ao mesmo tempo em que vislumbrou uma visão dupla, tripla da imagem de Gaby que se formou e desapareceu num intervalo de segundos — Você não me ama. Não mais.
— O quê? — Gaby o fitou entre desconcertada e incrédula — O que isso tem a ver com o que estamos discutindo?
— Você não me ama. Não mais — Ronaldo, sem perder Gaby de vista, começou a caminhar de um lado para o outro no curto espaço da distância que existia entre ele e a porta aberta do pequeno escritório — Essa história de que está indo passar uns dias na casa dos seus pais…
— Já tivemos essa conversa — ela o interrompeu sem demora — O meu irmão está vindo me buscar e irei, sim, ficar um tempo na casa dos meus pais. É para o nosso bem, Ronaldo. Eu preciso de um tempo. Preciso pensar e aqui dentro deste apartamento…
— Não — Ronaldo falou alto, avançando na direção de Gaby, fazendo com que ela recuasse alguns passos — Isso é uma desculpa. Sei que você não vai mais voltar. Está sem coragem de me dizer isso cara a cara porque está saindo dessa relação, da nossa relação, da porra da nossa relação com a consciência pesada.
Ronaldo esticou o braço e socou a mesa, assustando Gaby.
— Esse ex-professor que arranjou um espaço para que você atendesse seus pacientes… Pensa que eu não sei o que está acontecendo entre vocês dois?
Gaby respirou profundamente por um momento, encarando o companheiro, temerosa e perplexa, mas também, e principalmente, preocupada. Muito preocupada. Não havia dúvidas de que o cérebro de Ronaldo estava em ebulição; a questão era saber o grau dessa efervescência e o quão estaria interferindo no seu nível de consciência.
— Ronaldo — Gaby disse em tom calmo e contrito, mas com os dedos das mãos tamborilando sobre a calça jeans — Eu preciso montar uma carteira de pacientes. Desde que terminei minha Residência Médica, há dois anos, você, melhor do que ninguém, sabe como foi e está sendo bem difícil fazer isso. Assim como também está sendo difícil encontrar um lugar para atendê-los… Esse ex-professor…
— Por que não me deixa ajudá-la a montar um consultório?
— Não vou deixar você contrair outra dívida por minha causa. Esqueceu-se do financiamento que ainda estamos pagando deste apartamento?
— Precisamos nos apoiar.
A voz de Ronaldo, naquele instante, se tornou ilusoriamente suave, apesar do seu olhar estável e ofendido. Mas Gaby não se deixou enganar. O companheiro havia interpretado de outra maneira o que fora dito.
— Estamos andando em círculos — ela arrematou, já fazendo menção em passar por Ronaldo, parado a poucos centímetros à sua frente — Vou esperar meu irmão lá na sala…
Ronaldo não permitiu que Gaby desse sequer mais um passo. Numa fração de segundo a agarrou pelo pulso e a puxou para si.
— Eu cuidei de você, Gaby. Eu escutei todas as suas lamúrias, eu enxuguei suas lágrimas…
— Me solta, por favor — Gaby pediu, perplexa, sentindo a amargura palpável insinuada na voz de Ronaldo.
— Eu passei por cima de todas as dificuldades, de todos os medos que eu carregava e que me impediam de me aproximar, de me relacionar com alguém, só para tê-la ao meu lado. Você me fez lutar por isso, Gaby. Você me ajudou a acreditar que eu poderia deixar toda aquela merda do meu passado pra trás e eu não precisei da ajuda de nenhum idiota pra que isso acontecesse.
Gaby sabia que o atordoamento que já a vinha consumindo a cada milésimo de segundo sobrepujava uma possível tentativa de manter o controle da situação. Pensou, censurando a si mesma, enquanto fitava Ronaldo e seu semblante transtornado e, por incrível que pudesse parecer, também amedrontado, que deveria ter insistido, deveria até mesmo ter forçado Ronaldo a buscar ajuda. Os sinais começaram, há dois anos, tão logo ela havia terminado a Residência, contudo, será que eles já não existiam? Será que já não estavam lá, mas ela, egoísta, determinada a se tornar a melhor, deixou o companheiro em segundo, terceiro plano?… E por acaso se tornou a melhor para quê? Para ficar atendendo meia dúzia de pacientes num espaço paliativo fornecido por um ex-professor da faculdade?
— Ronaldo… — Gaby anunciou um tanto hesitante, mas sem deixar de encarar o companheiro — Vou te ajudar, mas não da forma que você deseja. Até porque não posso… Irei conversar com alguns colegas… — ela engoliu em seco — Há uma delas que vem buscando se especializar em casos que envolvem amnésia crônica, mudanças de humores e mudanças comportamentais… Inclusive comentei por alto…
Ronaldo desconectou-se. Não ouviu mais nada ao seu redor. Não ouviu Gaby. Nenhum som alcançava o seu cérebro, que viajou imediatamente ao passado, ao momento em que salvou a irmã, a pequena Bruna das garras daqueles verdugos. Há quanto tempo não lembrava daquilo? Na verdade, nunca havia esquecido, todavia, aprendera a não permitir que essas recordações o afetassem, tomassem o primeiro plano de seus pensamentos, de sua existência…
Meneou a cabeça, uma, duas, três vezes lutando contra o caleidoscópio de emoções que começava a assolar cada um dos cantos de sua mente, trazendo à tona, naquele instante, remorso e sentimento de culpa. O que estava fazendo com Gaby? Por que a mantinha daquele jeito? Ele deveria deixá-la partir, fazer o que quisesse. Ele era o vilão dessa história. Sim. Sim. Se Gaby não o amava mais, que direito tinha sobre isso? Ele que tivesse lutado antes, buscando valorizá-la ao invés de desrespeitá-la, menosprezando a relação de ambos ao se render às próprias fraquezas, às próprias más inclinações, indo atrás de novidades, diversão ou fuga — ou o que fosse —, tanto nas ruas ou em saunas, mergulhando de cabeça nas mais repulsivas depravações em todos aqueles corpos, todos aqueles homens que passaram por suas mãos, ainda que muita das vezes carregasse a impressão de que todos aqueles absurdos não tivessem passado de um pesadelo, de um maldito pesadelo.
Por quê? Por que se deixou levar? Por que se permitiu voltar às saunas neste último ano, quando as coisas entre ele e Gaby começaram a se tornar cada vez mais insustentáveis? As ruas, as ruas, os garotos de programa, os anônimos dispostos a fazer sexo rápido, sem compromisso, eram bem mais seguros que a porra de uma sauna, onde poderia acabar encontrando algum conhecido, esbarrar com alguém do trabalho, ainda que estivessem lá pelo mesmo motivo… Onde poderia dar de cara com a porra de algum conhecido de Gaby… Onde poderia acabar encontrando com ele. Com ele!
Gaby! Gaby! Gaby!
Porque permitiu se convencer a experimentar uma sauna? Não sentimos falta daquilo que desconhecemos.
Ronaldo se recordou do árduo autoconvencimento, dos dias e semanas de racionalização depois das investidas, da obstinação do infeliz, do maldito…
Oscar Wilde, Oscar Wilde disse, sim, ele disse que um verdadeiro amigo te apunhala pela frente.
“Ronaldo, já conversamos sobre isso. O que seu pai fez foi horrível, entretanto, a orientação sexual de uma pessoa não pode ser causada, ou sequer modificada por abuso, ou agressão sexual. Você não deve acreditar nessa questão. É mais um sofrimento que você não precisa carregar…”
Não. Não. Não confio. Não confio. Ronaldo balançou a cabeça, veemente. Um gosto amargo na boca. Não. Não. Não era ele, determinou para si com extrema ferocidade. Não podia ser ele. Aquilo… Aquilo… eram… são impulsos homossexuais com os quais vinha lutando todos os dias de sua vida… O seu subconsciente continuava a arrastá-lo para aqueles esgotos e ele, um fraco, um covarde, não se permitia lutar…
Um cheiro de pele, pele humana, quente e úmida, um cheiro repulsivo tomou conta das narinas de Ronaldo, enquanto uma dor irradiou, sem grandes alardes, de um ponto a outro em seu cérebro. Era a culpa, ele pensou, a culpa. Sim. Mesmo de olhos cerrados podia enxergar o visível fio que o ligava à sua culpabilidade, mergulhando-o num manto vazio, num abismo profundo de uma descrença enlouquecedora.
A cueca, a cueca sempre vermelha…
O cheiro de pele…
A gravata…
O cheiro de pele humana, quente e úmida…
Os beijos dele… Ela assistindo a tudo… As mãos dele rendendo-se diante de sua beleza, a beleza de um efebo proibido…
Não… Não…
— Ronaldo — Gaby o chamou, a voz embargada, praticamente invocando a presença do companheiro — Me solta, por favor.
Remorso, sentimento de culpa e tristeza, mas também raiva, ódio, mágoa e repúdio tomaram conta de Ronaldo de uma só vez — emoções lutando entre si para impor-se às demais; cada uma delas presentes e concretas em sua consciência. Em contrapartida, essas mesmas emoções pareciam pertencer a outra pessoa, a um terceiro, a alguém que, de alguma forma, Ronaldo não conseguia distinguir… Mas isso era impossível. Óbvio. Ronaldo certificou-se, prático, cuidadoso, como aprendera a fazer sempre que se deparava com essas oscilações, essas alternações. Tinha de se manter calmo. Encarar a realidade. Esse absurdo há muito ficou para trás. Ele, Ronaldo, era bipolar. Isso. BI-PO-LAR. E também carregava uma tendência absurda para fantasiar situações, criar memórias falsas, por mais que aquele psicólogo idiota tenha ousado sugerir o contrário.
Talvez eu e meu corpo formemos uma conspiração pelas costas de minha própria mente. Talvez eu e meu corpo formemos uma conspiração pelas costas de minha própria mente. Ronaldo balbuciou, balbuciou enquanto tentava desesperadamente se controlar. O céu e o inferno provêm do mesmo coração, considerou e repetiu e repetiu de novo e de novo e de novo e de novo, respirando, respirando, respirando…
— Ronaldo… Estamos cansados… Vamos…
A voz de Gaby…
Ronaldo encarou a companheira com um olhar indolente ao se deparar com sua expressão espantada. Gaby o fitava fixamente, olhos arregalados, marejados de lágrimas, e isso acabou por deixar Ronaldo, de certa forma, contrariado, fazendo-o reagir, por fim, com um ar de surpresa raivosa.
— Nós te odiamos! — Ronaldo disparou alto, estridente. A raiva vindo em seu auxílio.
“Nós? Nós?”… Gaby franziu a testa e sentiu um frio na espinha como nunca antes. Ronaldo, de fato, já não mantinha mais o controle sobre si próprio; ele estava sob o efeito de uma raiva mais violenta do que naqueles momentos de discussões que vinham permeando a relação progressivamente.
— Nós te odiamos!
Ronaldo repetiu, suspirando e deixando o olhar vagar pelo espaço, meneando a cabeça, sem pressa, enquanto Gaby, aflita, tentava escapar das mãos que voltavam a apertar os seus braços. Resistência que deixou Ronaldo ainda mais irritado, forçando, a partir de então, Gaby a caminhar, ainda que de costas, até o pequeno sofá não muito distante, lançando-a com fúria sobre o estofado, onde desmoronou, quase perdendo o equilíbrio.
— Ronaldo… — disse Gaby, ofegante — O meu irmão está para chegar…
Ronaldo permaneceu de pé, parado por alguns instantes, as mãos firmes continuando a prender os braços de Gaby. Sua mente cansada enxergava, do alto, a companheira como uma tempestade violenta, arrastando tudo o que via pela frente. Por fim, sorriu, a boca aberta, a máscara da tragédia encarando Gaby, que lhe devolvia um olhar carregado de desespero e aflição, um olhar que não deixava dúvidas que ela estava diante de um ser humano sendo tomado por algum tipo de surto psicótico.
— Bruna — com a expressão atenuada e uma respiração cada vez mais desacelerada, Ronaldo foi se abaixando à frente de Gaby até ficar totalmente de joelhos — Bruna — repetiu, a voz pausada, um olhar de pura surpresa e ressentimento confrontando Gaby — Bruna… Onde… Onde você esteve todo esse tempo? Onde?
Gaby precisava sair dali imediatamente. Precisava deixar o apartamento quanto antes. Não adiantaria, naquele instante, tentar entender o estressor que desencadeara aquela reação de Ronaldo e muito menos ajudá-lo. Estava assustada demais para isso. Não sabia do que ele seria capaz.
— Nããããããõoo!
Um repentino grito, esganiçado, tomou conta de todo o escritório, fazendo Gaby estremecer dos pés à cabeça, não lhe dando tempo sequer de pensar ou reagir, pois, num átimo, Ronaldo se atirou de vez sobre ela, segurando suas mãos para o alto, ao mesmo tempo em que tentava alcançar seu pescoço e suas orelhas com os lábios e com a língua, que mais parecia uma serpente exasperada… Investidas inúteis, já que Gaby se debatia, buscando de todas as maneiras possíveis se livrar daquele ataque anunciado.
— Ronaldo… — ela suplicou, as pernas se agitando, as lágrimas começando a cair pelo rosto — Sou eu. Gaby.
— Nós… — Ronaldo estacou de súbito, recuando, permanecendo a poucos centímetros de distância, entretanto, sem libertar Gaby — Eu e sua mãe, lhes demos tudo. Então, nada mais justo que nos retribua… — sua voz soou rouca, porém, firme, ameaçadora, conforme olhava para a companheira como se estivesse apreciando algo vivo, belo e intocável, mas que, ao mesmo tempo, tinha sofrido um golpe mortal.
— Nããããããõoo!
Ronaldo tentou largar os braços de Gaby, tentou desesperadamente se afastar, mas não conseguia. Algo, alguém mais forte que ele, não lhe deixava agir, não permitia que movesse um músculo sequer que não fosse ao intuito de mantê-lo na posição opressora em que se encontrava.
— Nããããããõoo!
Ele gritou de novo e mais uma vez, meneando a cabeça com força, repetindo para si mesmo que talvez fosse vítima de uma forma leve de esquizofrenia, é isso, e que carregava uma tendência absurda para fantasiar situações, criar memórias falsas… Aqueles psicólogos idiotas. Aqueles psicólogos idiotas. Eu não preciso de um psiquiatra, insistiu, insistiu e insistiu enquanto lutava com suas emoções e seus segredos mais sombrios, enquanto lutava com o dom e a percepção de si mesmo.
Nesse instante, Gaby, num nanossegundo que não lhe passou despercebido, reuniu todas as suas forças, conseguindo, por fim, empurrar Ronaldo, que, desequilibrado, ainda tentou se apoiar no que fosse possível, mas em vão, caindo para trás, um baque surdo no chão, ao tempo que voltava a assumir, sem demora, a postura colérica e ofensiva, acompanhada de um rugido crescente na cabeça. Sim. Um bramido que vinha exatamente de dentro de sua cabeça conforme ouvia outro rumor em alguma parte de dentro dela.
Gaby, de um salto, após limpar o rosto com as costas das mãos, se pôs de pé, preparada para a fuga mais que emergencial, mas não conseguiu ir adiante, visto que Ronaldo segurou um de seus pés, firme, derrubando-a no chão, contudo, determinada, movida pelo instinto básico de sobrevivência, ela chutou a mão para longe enquanto forçava o próprio corpo, se arrastando para frente.
Não. Não estava em total desvantagem. Ronaldo podia ser homem, sua força física o beneficiava, além do fato de estar fora de si, mas não seriam suficientes para impedir Gaby de reagir, enquanto pudesse se manter distante dele. Ela afirmou entredentes, se levantando, não deixando de fixar um só instante a porta aberta do pequeno escritório. Entretanto, foi novamente derrubada, e antes mesmo de se deixar imobilizar, virou-se, já subindo o joelho direito até a altura do ombro, conforme via Ronaldo, a compleição magra, as costas ligeiramente curvadas, indo na sua direção, disposto a cair brutalmente sobre ela. Gaby permitiu deliberadamente que ele se aproximasse o bastante para, só então, estender a perna para frente, dando um chute bem forte em sua barriga, fazendo com que Ronaldo, com o impacto, fosse jogado para trás, mas não o suficiente para derrubá-lo.
Onde estava o seu irmão que não chegava? Gaby praguejou à medida que tentava se erguer, tropeçando nos próprios pés, conseguindo, por fim, correr.
Eu não preciso de um psiquiatra. Eu não preciso de um psiquiatra. Mas é claro que você não precisa de um psiquiatra, Ronaldo debatia dentro de sua mente ao passo que recuperava o equilíbrio, já correndo atrás de Gaby, alcançando-a antes que chegasse à porta do apartamento, agarrando num salto o seu pescoço e puxando-a para trás.
Uma vadia. Uma vadia, ele gritou. Ela não vai nos destruir. Ronaldo continuava a bradar enquanto empregava toda sua força, tentando derrubar Gaby, que com sua maldita resistência tonara-se extremamente pesada e seguia lutando até, finalmente, levar uma cotovelada na testa.
Morrer… Eu não posso morrer… Gaby pensou, sentindo uma dor aguda se espalhando por todo o seu corpo ao mesmo tempo em que se viu tombada no chão, avistando Ronaldo se colocando acima dela, pressionando as pernas dele ao redor da sua cintura, imobilizando-a por completo enquanto buscava avidamente o caminho de sua virilha.
— Ronaldo, por favor. Não faça nada comigo.
Gaby começou a debater os braços e Ronaldo, possesso, tentou segurá-los, conseguindo prender um deles.
— Ronaldo…
Gaby suplicou, ofegante, encarando o companheiro com firmeza, tentando, num último e desesperado recurso, trazê-lo de volta à realidade, mesmo diante de seu semblante carregado de uma frieza sem igual, sem remorso ou sentimento de culpa… Um esforço em vão, pois Ronaldo a golpeou na lateral da cabeça, fazendo-a perder os sentidos.
2019…
— Não há sombra de dúvidas que neste caso a raiva foi desencadeada por estressores… — Júlia Mathias busca esclarecer; uma expressão solene e determinada — E a outra identidade tomou as rédeas da situação.
— Estressores? — o advogado Gregório, atrás de sua mesa, com os braços cruzados diante do peito, questiona um tanto intrigado.
— Fatores que instigam. Podem ser provocados por estímulos pequenos ou por uma tensão crônica.
O advogado descruza os braços e em seguida inclina-se um pouco para frente ao mesmo tempo em que apoia os cotovelos sobre a mesa, deixando as mãos sobrepostas, próximas ao queixo, enquanto assume um semblante reflexivo.
— O meu cliente esfaqueou a esposa seis vezes — Gregório diz num tom de voz extremamente obstinado, liberando as mãos logo em seguida para retornar de pronto ao encosto da cadeira — Os dois estavam discutindo, ferozmente, de acordo com os vizinhos. E não foi a primeira e nem a segunda e tampouco a terceira vez que isso aconteceu. E a senhora quer realmente que o tribunal acredite que não foi o marido que a golpeou?
— É exatamente o que estou tentando explicar. O seu cliente… — Júlia diz, realçando o pronome possessivo, usado com veemência pelo advogado — Vai precisar responder pelo ato cometido, porém…
— Doutora — Gregório a interrompe, sem pestanejar, reforçando, num átimo, a seriedade estampada na face — Estou lutando para jogar por terra a determinação da Promotoria em transformar este processo numa tentativa de homicídio. Se eu não conseguir, o caso irá parar nas mãos do Tribunal do Júri. A senhora não faz ideia de como será enfrentar um Tribunal do Júri e ainda mais tendo como carro-chefe o depoimento da vítima.
— Eu não estou aqui para convencer o Júri, a Justiça, ou o que seja. Até mesmo porque o senhor ainda não decidiu sobre a necessidade do meu depoimento. Estou aqui para fornecer ao senhor uma análise sensata e precisa da situação mental do seu cliente, meu paciente — Júlia completa, sem pressa.
— Ok — Gregório assente à medida que inspira forte, profundo — Então, o meu cliente, o seu paciente, ou melhor, a segunda persona dele, não é isso? — ele ergue as sobrancelhas em descrédito — Foi quem tentou eliminar a esposa porque descobriu que ela o traía? Quer dizer, traía o outro?
— Esse é o raciocino da sua linha de defesa, correto? A dignidade, a hombridade ferida ante a descoberta do adultério. Mas o senhor sabe, tanto quanto eu, que o seu cliente tinha ciência dos casos extraconjugais da esposa há tempos, e decidiu, ainda assim, seguir adiante. Entretanto, optou por não encarar o que lhe incomodava, por não resolver o problema ou demais contratempos oriundos dessa decisão, dessa omissão. Decidiu reprimir mágoa, tristeza, medo e raiva e expressar todas essas emoções através de discussões e violências verbais infindáveis, acreditando que, utilizando-se desse caos, obteria a recompensa que precisava, mas nunca conseguiu alcançar o seu objetivo. A não ser uma postura cada vez mais defensiva e ofensiva por parte da esposa — Júlia Mathias inclina a cabeça um pouco para o lado num gesto quase imperceptível — Mas algo, que ainda não sabemos, o ameaçou…
— Que foi, então, o motivo para o delito?
— Não. Foi o estressor. O meu paciente não atacou a esposa porque se sentiu rejeitado. Não. Não. Ele se sentiu ameaçado. E não foi na sua hombridade. Isso já ficou claro em nossas sessões. Algo, alguma coisa, que até aquele momento esteve fora do arco de intolerância e repulsão que ele e a esposa alimentavam, o ameaçou de tal forma que sua outra identidade decidiu protegê-los.
— Então, é claro, por isso ele afirma não se recordar com exatidão desse momento? — Gregório indaga numa voz controlada, testando o equilíbrio de Júlia.
— Mudança de uma identidade para outra com amnésia concomitante.
— Não se é realmente criminoso quando se sofre da cabeça — Gregório volta a cruzar os braços enquanto denota um semblante contrariado, fazendo questão de manter o seu frio desdém em relação à Júlia — Todos sabem disso. A doutora sabe disso. Mas às vezes os tribunais não concordam. E apresentar meras suposições não ajuda em nada.
— Não se trata de uma mera suposição… — Júlia engole em seco e hesita um pouco antes de continuar — As intervenções que vêm sendo realizadas no paciente são elaboradas, prolongadas e manuseadas com prudência e senso clínico.
— Doutora Júlia — Gregório descruza os braços e respira fundo antes de prosseguir — Não estou suspeitando da sua capacidade profissional, e nem poderia. Mas se nem mesmo seu paciente lhe confessou o motivo… — ele faz um gesto aleatório com uma das mãos — Ou deixou claro o estressor que o levou a cometer o delito…
— Ele não se recorda. O senhor sabe disso. E eu acabei de esclarecer esse ponto. E a outra identidade…
— Ok, doutora. A promotoria irá questionar por que razão o suposto transtorno dissociativo do meu cliente não foi diagnosticado anteriormente, durante as duas terapias psiquiátricas as quais se submeteu quando foi acometido por crises de depressão. A senhora alega que esse distúrbio — Gregório, com suas sobrancelhas arqueadas e os olhos lampejando, fita a psiquiatra como se a estivesse desafiando — Posso chamar de distúrbio, não posso? — ele questiona sem esperar nenhuma resposta — Acomete o meu cliente possivelmente desde sua infância.
Júlia Mathias encara o advogado com a fisionomia tomada pela muda certeza daqueles que são forçados a lidar com realidades complexas, mas que não passam de naturezas débeis, ao passo que Gregório segue sustentando uma convicção tamanha no olhar.
— Se ainda hoje não há critérios muito bem definidos para diagnosticar os transtornos dissociativos, imagine há vinte anos… — Júlia replica, sem se alterar.
— O meu cliente recusa veementemente essa linha de defesa — o advogado se inclina para frente, cauteloso, e espalma as mãos enormes sobre a mesa — Ele se sujeitou a esse tratamento, que, aliás, não o está deixando nem um pouco satisfeito, por pressão da Justiça e acreditando que iríamos comprovar tão somente um estado de ânimo alterado, uma perda súbita de controle que o levou a praticar o infeliz delito. Não deveria existir nenhuma patologia inserida nessa questão.
— Ele não tinha ciência de que coexistia com outra identidade. E, agora, rejeita qualquer sugestão sobre isso — Júlia Mathias segue fitando Gregório, firme, resoluta, enquanto avalia os prós e os contras do que pretende dizer — Ele cresceu com essa dissociação, com sintomas que até hoje considera normais, pois nenhum desses sintomas implicou em qualquer mudança em suas experiências subjetivas.
— Doutora… — o advogado permanece sustentando uma pose de indiferença notoriamente exagerada, ao passo que recolhe as mãos de cima da mesa e torna novamente ao encosto da cadeira — É possível que profissionais predispostos a encontrar dissociação de personalidades, façam um diagnóstico equivocado e desmedido?
— É possível — Júlia responde de imediato e ainda mais decidida, se sem deixar intimidar — Muitos associam os sintomas dissociativos à histeria e a histeria à fantasia. Mas uma boa exploração psicopatológica é a base do diagnóstico clínico. Ela vai muito além de um diagnóstico feito, por exemplo, “por falha” ou pura e simplesmente por descartar hipóteses.
— Doutora Júlia, o meu cliente, o seu paciente, é uma figura respeitada e mais do que influente nos altos escalões da nossa política. Não preciso lembrá-la disso. Esse julgamento irá abalar, já está abalando, e muito, a sua imagem e a sua reputação, antes mesmo de um veredicto final. Mas ainda assim, após as devidas apelações que podemos conseguir, considerando até mesmo uma improvável absolvição, ele poderá retomar a própria vida sem grandes percalços. Contudo, se incluirmos um distúrbio mental nessa receita, uma internação psiquiátrica que poderá se estender a médio ou longo prazo, essa possibilidade deixará de existir.
— Seu cliente, o meu paciente, é apenas um profissional que atua no Poder Judiciário. Não é uma celebridade. E ainda que o fosse, ele não vive no Olimpo.
27 de Julho, 2017, quinta-feira
Gabriela dá um soco na mesa, assustando os dois homens.
— Então havia uma quarta pessoa na casa? Eve não criou isso.
— Como assim, criou? — Claus estaca a poucos centímetros da psiquiatra — Doutora, a informação de que o paciente foi encontrado superficialmente ferido e desacordado no local do crime, consta no laudo emitido pelo médico parecerista.
Gabriela se vê perdida em questão de instantes entre lógica e razão, todavia, não consegue concatenar, pensar em algo concreto…
— O que esse professor fazia na chácara? — é tudo o que Gabriela consegue raciocinar — Se o celular dele estava lá, não restam dúvidas de que ele também estava… ou esteve…
— E, porque, esse professor iria embora e deixaria o telefone?
— Porque sua linha de defesa, doutor Claus… — Gabriela ergue a voz numa entonação furiosa — Não tomou o caminho de que talvez essa quarta pessoa, possivelmente esse professor, possa ser responsável pelos assassinatos daquela noite, na chácara? Porque o senhor quer que eu estabeleça um diagnóstico inconsistente? — ela se vira de imediato na direção do diretor Orlando e depois retorna o seu campo de visão, inquisidor, para o advogado — Para facilitar o trabalho de vocês dois? É isso? Quer que eu também estabeleça uma lista de possibilidades para ajudar na sua ordeira e honesta linha de defesa, doutor Claus? Se preferir, além do TDI também posso incluir no laudo médico do desembargador a paranoia, uma deficiência afetiva, uma necessidade de ser reconhecido… Um impulso homicida, o que acha?
A tensão aumenta. Os olhos do advogado e do diretor sobre Gabriela a sufocam, a exasperam…
— Agora estou entendendo o jogo de vocês, assim como a doutora Júlia, antes de mim, entendeu…
— Doutora Gabriela, esse tal professor sumiu do mapa. A polícia, e nem ninguém, conseguiu encontrá-lo… E ainda que o fizessem nada poderia incriminá-lo. As impressões digitais nos corpos, nas gravatas usadas para estrangular a Sra. Abigail e o garoto, as impressões digitais na cama, nos lençóis, todas são do desembargador. Nenhuma outra foi encontrada. Não nos corpos, não nesses objetos e nem por todo o quarto…
— Se esse professor esteve na chácara, como entrou? Como saiu? Que vinculo possuía com a família do desembargador?
— Doutora Gabriela, fique calma. A senhorita está caminhando por um terreno que não lhe diz respeito. O papel de advogado forense nesta história é meu…
Gabriela meneia a cabeça, rápido, uma, duas, três vezes até caminhar a passos largos na direção da porta, porém, antes de girar a maçaneta, se volta e busca com veemência o rosto do diretor do hospital, que a esta altura já se encontra de pé.
— Façam o que quiser, mas eu não vou mudar uma linha sequer do meu relatório a não ser que o paciente dê motivo para isso — ela comunica ao mesmo tempo em que olha determinada para os dois homens — E se preferir, doutor Orlando, não se faça de rogado em me substituir. O que seria lamentável.
— Você não será substituída.
Gabriela o confronta num tom extremamente desafiador.
— Foi o paciente, o próprio desembargador quem fez questão de tê-la como sua médica, após a desistência da doutora Júlia.
Doutor Orlando e Claus se entreolham no instante seguinte à saída de Gabriela, enquanto ouvem o baque surdo e violento da porta sendo fechada. Um silêncio de quase um minuto inteiro toma conta da sala. Por fim, o diretor, com uma calma sem precedentes, volta a se sentar, pousando as mãos, cumpridas e perfeitamente manicuradas, sobre a mesa.
— Uma boa moça, mas muito nervosa. Impulsiva. Ela saiu do controle. Não contávamos com isso — Claus comenta, já sentado à frente de Orlando, com as costas totalmente apoiadas no encosto da cadeira, ombros bem alinhados, pernas cruzadas e uma das mãos sobre o joelho — É incrível como ainda não percebeu o que está à sua volta — ele suspira alto.
— Sofremos mais na imaginação do que na realidade — Orlando responde de pronto, com um ar contente, erguendo-se um pouco para frente conforme enlaça as mãos e arqueia uma das sobrancelhas.
— E você achou sensato de sua parte dizer a ela que o próprio paciente a escolheu como sua médica?
— E eu poderia ter dito toda a verdade? — Orlando questiona num tom desafiador — Isso já foi longe demais. Gabriela está onde está por causa de Eve. Ele fez questão de trazê-la para cá. A principal e mais grave punição para quem cometeu uma culpa está em sentir-se culpado. Talvez agora, confrontando-o… — Orlando dá de ombros de modo negligente — Porque é o que ela irá fazer, e tenho certeza disso, e é o que precisamos que ela faça, Eve, finalmente, desista de tudo. Ele não quer decepcioná-la.
— Mas ainda há bastante resistência por parte dele…
— Ah! Claus — Orlando suspira, olhando, com surpresa, o advogado nos olhos — Você joga esse jogo ha tanto tempo e ainda assim não aprendeu como jogá-lo, não é mesmo?
Claus, desconfortável, uma pontada no estômago, se mexe um pouco sobre a cadeira, à medida que sente seus lábios franzirem num ricto nervoso, que se estende por todo o rosto, contraindo uma das faces, desaparecendo logo em seguida. Um movimento quase imperceptível, mas que não escapa à atenção de Orlando.
— É possível… — Claus pigarreia depois de um sorriso hesitante — Mas a carta da Laura? Não acha, realmente, que isso só fez Eve se tornar mais resistente? E justo agora, que está faltando pouco, bem pouco para convencê-lo de que Gabriela precisa ir embora de uma vez por todas? Você mesmo viu, Eve deixou claro, na carta que escreveu para ela, que Laura, apenas Laura, poderá salvá-lo — o advogado não consegue disfarçar a tensão, como se estivesse se preparando para enfrentar uma luta injusta — Essa esperança, ele irá se agarrar a ela, por mais que não compreenda quem realmente seja Laura. E por causa disso vai se recusar a sair de onde está.
— O eu-ego não é dono de sua própria casa. A consciência reina, mas não governa — o diretor retorna ao encosto de sua cadeira — Eve sempre teve reações lentas em relação a tudo. E com Gabriela não poderia ter sido diferente. Só que ele perdeu o pouco do controle que tinha da situação, ou achava ter. E se continuar assim, não se sabe aonde vai parar… Ou melhor, sabemos — Orlando desenlaça as mãos antes de prosseguir — Trazer Laura para este jogo foi arriscado? Talvez. Mas sua presença, ou a sombra da sua presença, enfraquece Eve. E ele se reduz, pois acredita que ela o protegerá. Uma certeza subjetiva que o faz acreditar que possui apoio para sair das situações das quais julga que a própria força não é suficiente. Esse caos interior, essa angústia… — linhas proeminentes se formam ao redor da boca de Orlando enquanto assume uma expressão um tanto absorta; o mecanismo de seu cérebro nitidamente em funcionamento — Essa dificuldade em se sentir autônomo, essa personalidade dependente, somados ao seu estado atual de fragilidade extrema, está lhe trazendo muito sofrimento, tornando-o ainda mais triste, desolado e sem confiança. O que só contribui para apagá-lo cada vez mais de si próprio… — o diretor encara Claus com uma expressão quase sombria — Eve faz parte de um quebra-cabeça que não conseguia entender, apesar de passado todos esses anos. E descobriu isso, ou se conscientizou tarde demais. Agora, acredita piamente, movido pelo seu desespero, que pode manipular ou influenciar esse jogo.
— Que seja — Claus manifesta certo enfado — Você é quem manda aqui, não é mesmo? — completa cinicamente.
— Não seja ingrato… — Orlando hesita um pouco antes de continuar — Advogado — arremata, sarcástico, inatingível.
— Estou apenas tentando…
— Está apenas tentando tomar as rédeas de uma situação da qual você nunca terá o domínio. Não se esqueça de que antes de você chegar, eu já estava por aqui.
Um arrepio gelado sobe pela espinha de Claus até a nuca. Ele engole em seco e daí baixa os olhos por um instante até reerguê-los novamente.
— Apenas acredito que a decisão de ter trazido Eve para cá talvez tenha sido um tanto perigosa. Precipitada até…
Orlando volta a mover o corpo para frente.
— E o que você queria que eu fizesse? — ele questiona furioso, ao mesmo tempo em que aponta o indicador na direção do advogado — Eve atingiu o extremo e com a ajuda daquele professorzinho de merda…
— É uma questão de tempo, bem pouco tempo, até Eve sentir a falta de Márcio Antônio e tentar encontrá-lo de todas as maneiras. Ainda mais agora, com a possibilidade de Gabriela ser deixada de lado. O professor desempenhou na vida dele um papel de modelo, de um objeto e de um associado.
— E de um adversário — Orlando complementa olhando bem nos olhos do advogado enquanto recolhe o dedo em riste — Márcio Antônio provou por diversas vezes não ser merecedor da amizade de Eve. Mesmo sabendo da posição do outro sobre a sua pessoa. E agora demonstrou não ser digno da confiança que depositamos sobre ele. Na verdade, há anos vem demonstrando não ser digno dessa confiança Então, situações extremas, exigem medidas extremas. O professorzinho está tendo o que merece. Uma vida por outra vida — o diretor ergue as sobrancelhas delicadamente — Uma vida por outras vidas.
Claus contrai os lábios, altivamente intransigente, mas se contém.
— E nos trazer para cá, para este lugar — ele lança um rápido olhar em volta da sala — É o ideal para nos manter a salvo? — interpela enquanto também se inclina um pouco para frente — Não se esqueça, caso o seu plano venha a dar errado, Eve não permanecerá sozinho no Manicômio Estadual para insanos criminosos. E aí, será tarde demais para lamentar qualquer coisa.
Orlando respira profundamente e então, um tanto afetado, aperta o nó da gravata, ajeitando-a, rápido, conforme segue fitando Claus de maneira ainda mais determinada.
— Você acha, realmente, que durante todos esses anos eu não temo pelo dia seguinte… Claus? Resta apenas um dia. Sempre restou e sempre restará. Não somos eternos e menos ainda diante da finitude que está diante de mim, de você, de todos nós — Orlando aponta para a porta fechada com um gesto abrupto — Diante dela.
— Júlia Mathias…
— Resta apenas um dia — Orlando interrompe o advogado sem se importar — E sempre recomeçando. Ele nos é dado de madrugada e tirado de nós ao anoitecer — o diretor recua repentinamente, os olhos começando a lacrimejar — Chegou a hora, Claus. Devemos ter caos dentro de nós para dar à luz uma estrela dançante — completa com uma voz baixa, mas firme.
O toque do celular de Orlando de repente ecoa pela sala. Sem pressa, ele retira o aparelho do bolso da calça e o coloca sobre a mesa.
— Então, meu caro — Orlando se dirige a Claus, porém, sem deixar de mirar o telefone, que segue chamando — Eve não está tão frágil como pensávamos.
22 de fevereiro, 1977, terça-feira de carnaval
Num súbito, Ronaldo despertou. Estava parado sob o batente da porta do quarto dos pais, apesar de não se lembrar de como chegara até ali. Sua última recordação, depois do banho, depois de ter deixado o banheiro para trás, findava com ele subindo as escadas, pé ante pé, rumo ao primeiro andar da casa, o rosto afogueado…
O destino seria exatamente aquele onde estava, porém, o trajeto do último degrau até aquela porta não lhe passavam pela mente. Nenhum traço. Nada. E há quanto tempo já estava ali, estacionado? As perdas de memória haviam voltado? Como das outras vezes? Não. Não. Não.
Inspirando e expirando com uma força descomunal, examinou o seu entorno, uma, duas, três vezes, até se deparar — como não havia enxergado antes? — com a cama, onde Antoniel e Norma estavam deitados…
Deitados? Isso era impossível. Seus pais nunca o recebiam naquela alcova, naquela maldita alcova, de outra forma se não sentados ou em pé.
Ronaldo semicerrou os olhos para ter certeza do que estava divisando, mas repentinamente sentiu a visão turvar, acompanhada por uma dificuldade enorme de concentração, ao mesmo tempo em que passou também a sentir, embora apenas por alguns instantes, que naquele quarto havia alguém os observando, lhe observando. Alguém que de alguma forma não conseguia distinguir, por mais certeza que pudesse ter de que não havia outra pessoa por lá.
Inspirou e expirou de novo, com a mesma determinação, e em questão de segundos aquela sensação de estar sendo vigiado o assolou mais uma vez, entretanto, desta feita, recaindo diretamente sobre si próprio: outra pessoa, um terceiro, alguém, por mais absurdo que pudesse parecer, começou a impulsioná-lo, a fazê-lo seguir adiante, em direção à cama dos pais. Mas Ronaldo não queria realizar aquela marcha. Estava disposto a deixar o quarto o mais depressa possível. Algo dentro de si lhe dizia que deveria correr, fugir para bem, bem longe…
Eu devo suportar, eu devo resistir, eu serei mais forte que a escuridão.
Ronaldo prosseguiu, ainda que as pernas, os pés, conforme avançava, hesitante, se tornavam blocos de concreto, pesados demais para que pudesse movê-los.
Talvez eu e meu corpo formemos uma conspiração pelas costas de minha própria mente. Talvez eu e meu corpo formemos uma conspiração pelas costas de minha própria mente, ele ia repetindo, repetindo num murmúrio indistinto em meio às dores proporcionadas pelas luxações e pelos hematomas espalhados por quase todo o corpo e pela face, resultados da surra que levara do pai. Assim como também ia lidando com a sensibilidade, o dolorido em seu couro cabeludo…
Estacionou, por fim, cinco, seis passos de distância da cama, enquanto recuperava o foco de sua visão, até conseguir vislumbrar, com notável nitidez, os pais deitados, completamente nus, amordaçados, com os pulsos e tornozelos amarrados por lençóis, atados à cabeceira e aos pés da cama, e com os olhos esbugalhados, parecendo que estavam testemunhando algo terrível.
O que tinha acontecido, por Deus?
Ronaldo pensou que estava tendo um pesadelo.
O que estava acontecendo? Era real?
Seu corpo, então, foi invadido por um calafrio quase incontrolável à medida que sentia uma crescente aceleração no ritmo da respiração, uma opressão gigantesca no peito, a cabeça sendo tomada por uma dor excruciante, parecendo que iria se partir em mil pedaços. Ainda assim, ante aquela visão aterradora, Ronaldo buscou forças para chamar pelos pais, por seus nomes, acreditando que tudo não passava de um mal-entendido, que seus sentidos estavam reagindo contra si próprio, uma espécie de castigo, uma revanche determinada pelo seu subconsciente em resposta ao ódio que carregava pelos dois.
Bruna. Onde estava Bruna? Ele tinha voltado para buscá-la…
Ronaldo fechou os olhos e depois de menear a cabeça uma, duas, três vezes, voltou a abri-los enquanto buscava colocar tudo e todas as coisas em seus devidos lugares, apesar de tal proeza lhe parecer impraticável quando o mundo ao seu redor se assemelhava a um carrossel, movimentando-se com sua força centrípeta, sua velocidade angular e linear e também sua inércia.
O que negas te subordina… O que negas te subordina…
Ronaldo reiniciou a caminhada, claudicante, até alcançar a beirada da cama, onde pôde perceber que seus pais, cada um deles, Norma e Antoniel, estavam com uma gravata enrolada no pescoço… e mortos. Sim! Mortos! Mortos! Mortos!
De pronto se lembrou do ultimato que fizera a caminho de casa, carregando o propósito de resgatar a pequena Bruna: caso os dois algozes, que o destino lhes dera como pais, tentassem impedi-lo, chegaria até as últimas consequências, independente do que fosse preciso fazer.
Ronaldo foi tomado, devastado por uma enxurrada de sensações. Primeiro por uma tristeza arrasadora, depois uma tensão infindável, um desespero sombrio, um horror que parecia beirar a irracionalidade conforme um nó no estômago, um nó crescente, comprimindo, até transformar-se numa queimação, ficar insuportável, lhe obrigando a se colocar de joelhos e vomitar.
08 de abril, 2016, sexta-feira…
Márcio Antônio chega à sauna e após ter sua entrada liberada, ganha um cartão, um chaveiro com cadeado e se dirige, sem pressa, a uma sala com armários numerados onde, após encontrar o que lhe servirá, se despe, sem qualquer cerimônia, enquanto alguns homens transitam por ali.
Já completamente nu, busca guardar suas roupas e demais pertences, contudo, ao fazer menção em desligar o celular, para também guardá-lo, recebe uma ligação, que trata de interromper, sem qualquer hesitação, ao tempo em que digita uma mensagem de retorno para o mesmo número:
Colhemos o que plantamos. Aprenda a ter mais coragem.
Márcio Antônio relê o que escreveu e confere com extremo cuidado se realmente o destinatário está correto para, só então, finalizar o envio, desligar, por fim, o telefone, guardá-lo com todas as suas coisas e daí, após deixar um ar sopesado escapar dos pulmões, envolver a cintura com uma das duas toalhas disponibilizadas dentro do armário, passando a vislumbrar, ato contínuo, seu reflexo num espelho que vai da parede ao chão, disposto alguns metros diante de si, aproveitando a ocasião para regozijar, em silêncio, claro, sobre a sua excelente forma física num corpo de cinquenta e quatro anos.
— Havemos de sofrer por aquilo que os deuses nos concederam…
Márcio Antônio balbucia, perscrutando o corpo bem torneado, a silhueta musculosa, sem exageros ou excessos, como se fosse a primeira vez que encarasse sua própria imagem.
— Sofrer terrivelmente.
Completa, um sorriso meio desdenhoso, meio insinuante que não se sustenta tão logo ele começa a sentir a mão direita tremer, ainda que levemente.
— Você não vai estragar minha noite! — balbucia, dessa vez fitando a imagem à sua frente com extrema determinação, encarando-a, como se estivesse preparado para enfrentar qualquer possibilidade que viesse a acontecer, interferindo direta ou indiretamente em seus planos.
Num átimo, Márcio Antônio se dá conta que alguns dos clientes da sauna, que estão circulando por ali, parecem mirá-lo pelo espelho, porém, não por admiração, o que já estaria esperando, claro, mas com certa apreensão e curiosidade nitidamente estampadas em seus semblantes. Ele dá de ombros e os ignora, por completo, pouco se importando com a impressão que possa ter causado. No primeiro momento em que abrir a toalha e mostrar o que tem entre as pernas, convidando o primeiro, ou o segundo, ou o terceiro, ou todos que estiverem ávidos em saciar a gana eternamente insaciável, irão esquecer no mesmo instante, como num passe de mágica, toda e qualquer opinião precipitada e superficial que possam ter tido sobre ele.
Aliás, como adorava se sentir disputado e idolatrado ao mesmo tempo por dois, três, quatro…
Mantendo uma postura invejavelmente aprumada, exalando confiança, Márcio Antônio parte para o interior da sauna, buscando conhecê-la, embora acreditando que não deva ser tão diferente de todas as outras onde já esteve. Com exceção de algumas duchas em forma de cascata e banhos turcos, obviamente fazendo jus ao preço diferenciado do ingresso, as demais dependências são similares: chuveiros, uma jacuzzi, corredores misteriosos desembocando em vários quartos, alguns com camas, outros com pequenos assentos, e alguns poucos até mesmo com buracos na parede, decerto para a prática do gloryhole. Por fim, chega à “sala de cinema”, e como era de se esperar, lotada de clientes assistindo ao pornô da vez…
Márcio Antônio segue seu caminho, retornando ao chuveiro, tomando um bom banho para logo depois se dirigir ao dark room, onde gemidos penetrantes e silhuetas sombrias de vários corpos o convidam a entrar, fazendo-o sentir, de pronto, mãos, várias mãos tateando, passeando por todo o seu corpo, seu ventre, até disputarem, sôfregas, um espaço sobre sua virilha já totalmente despertada, enquanto sente o contorno de membros enrijecidos transitando, bolinando suas pernas, à medida que vai vislumbrando, mesmo sem conseguir enxergar muita coisa no ambiente escuro, a silhueta dos corpos dos homens em torno de si, se abandonando ao sexo, afinal, era para isso que todos estavam ali. Afinal, era para isso que ele, Márcio Antônio, estava ali: trepar e trepar, pouco se importando com quem.
1981…
Ronaldo chegou à cozinha do albergue e sem titubear enfrentou uma fila, não muito curta, de modo a garantir o café da manhã. Dentre tantos lugares já ocupados, conseguiu, enquanto sustentava a bandeja nas mãos, sentar-se em uma das raras mesas localizadas no canto oposto e relativamente distante de toda aquela balbúrdia de vozes. Acomodado, começou o desjejum — café com leite, ralo, num copo de alumínio, um pão com manteiga, um pacote, pequeno, de club social sabor pizza e três roscas Mabel. Por incrível que pudesse parecer, não estava com muita fome, mas precisava se alimentar, afinal, depois do café, teria que deixar o albergue, só podendo retornar à noite, para jantar e dormir; e só Deus para saber se até lá conseguiria algo para comer.
— Tudo bem?
Um rapaz cumprimentou Ronaldo, já se sentando à sua frente, trazendo com ele, também, uma bandeja e nela, até então intocados, uma caneca de alumínio, um pão, um club social e roscas Mabel.
— Márcio Antônio. Prazer.
O tal rapaz se apresentou e no minuto seguinte mergulhou na sua refeição, sem sequer estender a mão para uma saudação, ao tempo que Ronaldo apenas o observava enquanto se alimentava, ou melhor, aspirava a comida diante de si. Aquele tipo de invasão não seria a primeira e nem a última, com certeza, Ronaldo concluiu. Porém, ao menos, ou outros haviam sido bem mais educados.
— Desculpa chegar assim, do nada, na cara de pau, me jogando na mesa — Márcio Antônio ergueu o rosto e Ronaldo, enfim, pode esquadrinhá-lo — Mas entendo que mesmo nessa selva de pedra devemos ter o mínimo de educação, não acha?
Ronaldo permaneceu calado, examinando o tal jovem: boca bem traçada, olhos pequenos, ombros largos, nariz reto e cabelos castanhos levemente desgrenhados, além da pele bem clara. E deviam ter a mesma idade… Com certeza ele não havia chegado aos vinte.
— Ouvi dizer que você tá tentando sair daqui, encontrar um quarto, um cantinho qualquer pra ficar. É isso mesmo? — Márcio Antônio enfiou na boca as três roscas de uma só vez, mastigando-as apressadamente.
Ronaldo, por fim, respirou fundo e respondeu um sim, seco, monossilábico.
— Legal! Eu também estou querendo um cantinho. Isso aqui mais parece um cortiço, cara — Márcio Antônio colocou a bandeja de lado e se inclinou um pouco para frente — Mas estou com um problema. Preciso de alguém pra juntar uma grana aí e dividir um quarto. Sozinho está impossível. E por aqui, as pessoas estão acomodadas com a situação, e as que tentam guardar alguma coisa, acabam gastando em bebida e drogas… Isso quando não são roubadas.
— E por que você acha que sou a pessoa certa pra isso? — Ronaldo questionou de imediato, o cenho cerrado. Não tinha simpatizado nem um pouco com aquele moleque.
— Você tem um sotaque bem legal, cara __ observou Márcio Antônio com um sorriso amistoso no canto dos lábios — Mineiro? Acertei?
— Não respondeu à minha pergunta.
— Como todo bom mineiro é desconfiado, né? — Márcio Antônio devolveu um tanto gaiato — Relaxa cara. Aqui estamos todos no mesmo barco. A diferença é que eu e você estamos tentando deixar essa canoa furada. Simples assim — disse, já se levantando, recolhendo sua bandeja vazia — À noite a gente se fala, pode ser? — perguntou, mas sem esperar nenhuma resposta, dando às costas e se afastando a passos largos.
22 de fevereiro, 1977, terça-feira de carnaval
Ronaldo cruzou o batente da porta da sala, saindo de pronto na varanda, e, mantendo a marcha alucinante, seguiu rumo ao curto caminho de pedras ladeado por azaleias, margaridas, lavandas, petúnias, begônias, amor-perfeito e alguns anões de jardim, até cruzar, ofegante, o portão de madeira, alcançando, por fim, a rua, deixando para trás a casa dos pais sendo tomada pelas chamas.
Súbito, após certa distância percorrida, Ronaldo sentiu a falta da irmã, a pequena Bruna e então foi tomado por uma estranha sensação de medo extremo, um aperto na garganta, no peito, ao mesmo tempo em que uma fraqueza se instalava nas duas pernas, obrigando-o a diminuir seus passos até definitivamente parar, forçando-o, de pronto, a inclinar o corpo parcialmente até apoiar as mãos sobre os joelhos semidobrados, enquanto, impotente, balançava, em negativa, a cabeça de um lado para o outro.
Bruna. Não. Bruna. Não. Lamentava, exasperado, mas sem forças, imaginando o corpo da irmã sendo tragado pelas labaredas e daí começou chorar, e de tal forma, que aquele pranto parecia nunca ter começado.
Brunaaaaa!
Gritou, com os olhos vidrados no chão, em meio às serpentinas, Batalhas de Confetes, em meio àqueles foliões e suas marchinhas carnavalescas espalhando-se pelas ruas…
9 de março, 2017, quinta-feira
Numa das enfermarias do Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro, Júlia Mathias, de pé, à beira de uma cama, está terminando de supervisionar o prontuário de um paciente que chegara até ali há apenas seis dias.
- Sedação e indução ao sono
- Redução de ansiedade e agressividade
- Redução do tônus muscular e da coordenação
- Efeito anticonvulsivante.
Com gestos lentos e ponderados, Júlia acomoda sobre o criado mudo, no lado direito da cabeceira da cama, a prancheta onde o prontuário está fixado e, em seguida, passa a observar o paciente — que está deitado, os olhos, no vazio —, examinando suas pupilas até constatar que de fato ele se encontra numa profunda apatia. Logo, confere a prancheta mais uma vez e, ato contínuo, observa o paciente, de novo, para, só então, se retirar, caminhando a passos largos pela enfermaria, até alcançar a porta de saída e se dirigir, no mesmo ritmo, em direção à sala que ocupa enquanto está de plantão no Hospital. Lá chegando, assim que termina de falar pelo celular com sua namorada, com quem convive há cinco anos, Júlia senta-se à mesa e abre uma pasta envelope, com fechamento horizontal, onde está o pequeno dossiê do paciente recém-chegado, buscando imediatamente pelo laudo redigido pelo médico parecerista.
Rio de Janeiro, 03 de março de 2017.
O paciente foi encontrado desacordado, com os pulsos enrolados em panos um tanto ensopados de sangue e sobrepostos por gazes aparentemente esterilizadas, acusando sinais indubitáveis de tentativa de suicídio; ação confirmada após a chegada do socorro especializado. No local, uma chácara em Guapimirim, havia, no segundo andar, dois corpos sem vidas, atados a uma cama de casal, cuja causa da morte de ambos fora causada por estrangulamento __ uma mulher adulta e um adolescente, posteriormente tendo suas identidades confirmadas, sendo o jovem, seu perfilhado.
O paciente, ao despertar, se lançou de imediato a um estado de torpor, condicionando-o a um quadro semivegetativo violento e logo depois a um quadro emocionalmente instável, oscilando entre o pior e o melhor do mundo, sendo trazido para este hospital judiciário de modo a ser submetido a uma intervenção psiquiátrica emergencial ao passo que segue à disposição da justiça.
Sinceramente.
Dr. Carlos, médico parecerista
Júlia Mathias devolve o laudo à pasta envelope e logo em seguida busca uma agenda que está no canto direito da mesa, trazendo-a para si, sem pressa, onde, no instante seguinte, começa a registrar algumas anotações:
- O paciente não consegue se identificar;
- Rebaixamento do nível de consciência;
- Demonstra medo e insegurança, expressando reações excessivamente passivas;
- Reclama de vertigens, algumas raras alucinações auditivas e fortes dores de cabeça: possíveis resultados da forte e emergencial medicação?
- Tentar o mais breve possível uma segunda entrevista psiquiátrica. Elaborar hipótese diagnóstica.
- é atribuído ao paciente um crime de triplo homicídio.
Júlia lê e relê suas notas e logo depois faz menção em guardar a agenda na pasta bagageiro com três divisões, depositada no chão, próxima aos seus pés. Porém, desiste, colocando a agenda novamente sobre a mesa, inserindo mais um registro:
- O paciente diz ter me reconhecido… De onde?
Sua cabeça oscila da direita para a esquerda, lentamente, enquanto sua expressão não denuncia nenhum tipo de emoção, até que decide circundar a frase possíveis resultados da forte e emergencial medicação?, guardando, por fim, a agenda, desta vez, sem titubear.
08 de abril, 2016, sexta-feira…
Na sauna, depois de um longo banho, Márcio Antônio senta-se na pequena zona do bar, um amplo espaço reservado à direita da saída dos chuveiros. Os homens ali, muitos deles jovens atraentes e outros tantos com uma aparência bem madura com seus corpos medianos e outros poucos singularmente longe de se parecerem aprazíveis, conversam e assistem ao mesmo tempo a TV enquanto consomem as mais diversas bebidas.
Aos poucos, Márcio Antônio vai se deixando envolver pelas piadas, os risos soltos, relaxando da aventura psicodélica na qual se deixara mergulhar de cabeça no dark room, até se pegar enredado em meio a uma conversa agradável com um homem de aparência madura, com uma barba vasta parecendo querer ocultar o que há por trás dela, e dono de um corpo relativamente flácido, de uma barriga um tanto proeminente, apesar de não ser gordo, mas que para ele, Márcio Antônio, sem sombra de dúvidas, aquele bate-papo, um nítido ensaio codificado de compra e oferta para fins de sexo, certamente não terminaria num dos quartos do andar superior, ainda que se sentido envaidecido pela vibração, pelo brilho da volúpia, estampado, escancarado nos olhos daquele homem sobre si, medindo com ardor desesperado cada parte da sua silhueta, das suas coxas bem torneadas, seu corpo talhado, liso e esbelto, malhado por exercícios constantes na academia.
Não. Com certeza o homem sentado à sua frente está há muito distante do que lhe apetecia: a sublime beleza da juventude, da delicadeza de um corpo imberbe e delgado…
— JP.
Márcio Antônio se depara com uma mão estendida a poucos centímetros adiante e a observa por alguns segundos antes de apertá-la.
— Pode me chamar de JP — o homem informa, sem pressa; um riso rasgando o rosto de orelha a orelha à medida que não deixa de fitar Márcio Antônio com firmeza um segundo sequer — E você? Como posso chamá-lo?
Márcio Antônio sente o dedo indicador do tal JP esfregando o meio da palma da sua mão e daí baixa o rosto por alguns instantes, fitando o chão… O alvoroço, as risadas no seu entorno, a TV… É claro que não está surpreso com este gesto, mas se mantém em silêncio, continuando a sentir as cócegas, o toque em sua pele…
Não… Ele não vai para o quarto com este homem. Não irá. Vai sair dali e buscar um rapaz, um efebo, um jovem carregado de virilidade, de hormônios…
— Oito!
— Como? — Márcio Antônio questiona tão logo ergue o rosto em direção ao homem sentado à sua frente, conforme recolhe a mão de imediato.
— O número da sua chave.
JP responde, enquanto aponta com o queixo na direção do pequeno chaveiro, um cordão com cadeado envolvendo o pulso de Márcio Antônio.
— Oito: um número que representa a vitória, o poder, o lado material da vida. Regeneração, renascimento, renovação. Um número que caracteriza pessoas habilidosas…
JP enuncia, não se permitindo desviar a atenção um segundo sequer do olhar, agora inquieto, mas também vago, do indivíduo que certamente levará para a cama. E sem precisar pagar, não diretamente, como quando contrata garotos de programas sempre que necessita compensar toda a pressão determinada por seu trabalho… Sempre que necessita compensar o já excruciante espetáculo teatral que vive ao lado de Abigail e de Lucas.
O indivíduo perante ele, decerto, não se compara à perfeição adônica que encontra nos toys boys que contrata, mas o que há de se fazer? E além do mais, não existe fruto mais doce que a bunda de outro homem, ainda que de um homem maduro, ainda que encontrada numa sauna, o último lugar que um magistrado deveria estar.
— Pessoas que fazem qualquer sacrifício pelo que acreditam; impacientes e não admitem ser contrariadas…
JP prossegue, se levantando, sem pressa, fixando mais e mais o semblante, a alma de Márcio Antônio, olhando-o diretamente com um sorriso largo, ao passo que vai se aproximando até uma distância ínfima os separarem, enquanto ele, Márcio, sente uma mão, a mão daquele homem com uma barba vasta parecendo querer ocultar o que há por trás dela, dono de um corpo relativamente flácido, de uma barriga um tanto proeminente, acariciando o seu peito, seguindo lentamente por sua barriga…
O que está acontecendo? Márcio Antônio se questiona, em silêncio, em completo silêncio. Você não vai estragar minha noite! Ele inspira e expira, a mão de JP indo e vindo, explorando seu peito, barriga, peito, barriga até alcançar, por fim, a beirada de sua toalha, os dedos puxando a pontinha dobrada para fora…
Márcio Antônio abre a boca para dizer algo, verbalizar tudo aquilo que não pode fazer, que não pode pensar, que não pode… que não deve ceder… Porém, não consegue. Precisa lidar com a enxurrada de sentimentos ambíguos desaguando dentro de si, ao mesmo tempo em que agarra a toalha envolta de sua cintura, impedindo-a de ser aberta.
— Pessoas sexualmente agressivas e seguras de si — JP arremata, mirando Márcio de cima a baixo — Pessoas que adoram desafios e por isso são fascinadas por relações complicadas.
1981…
Oito dias já haviam se passado, desde aquele café da manhã, quando Ronaldo conheceu Márcio Antônio. Ou Márcio Antônio se fez conhecer. A partir de então, ele, o “invasor”, nunca mais aparecera no albergue. Ao menos não que Ronaldo o tivesse visto em meio àquela torre de Babel. Talvez tenha sido melhor. Com certeza se livrara das garras de mais um querendo se aproveitar do matuto ingênuo.
Sexta-feira à noite, e o refeitório do albergue, claro, muito ocupado. A comida servida: arroz soltinho, feijão, alface e moela. Tudo sem tempero por causa dos hipertensos. Ronaldo estava sentando no meio de todo o pessoal, onde a conversação corria solta; todos falando e como sempre lhe dando a impressão de que ninguém se entendia, de fato. E entre uma garfada e outra, buscava, num esforço extremo, se concentrar tão somente na refeição que pretendia terminar o mais breve possível.
De repente, Ronaldo sentiu uma mão pesar sobre um dos ombros, e antes mesmo de se virar, foi tomado pela sensação de que quem estava lhe tocando não seria outra pessoa senão aquele moleque “invasor”. E era. O susto, ou a surpresa, ou os dois, fez com que o garfo caísse de sua mão. Márcio Antônio, em pé, o encarava com os olhos bem, bem vermelhos e o cenho cerrado. Uma transformação sombria havia ocorrido no semblante do rapaz desde a primeira e última vez que tinham se visto, Ronaldo não pôde deixar de constatar — ainda que quisesse —, ao mesmo tempo em que se voltava para frente, a fim de conferir se os companheiros da mesa também haviam se incomodado. Todos continuavam focados em suas bandejas e no seu falatório. Talvez fosse possível que aquilo já não mais os atingisse…
— Se importa de conversarmos lá fora? — Márcio Antônio perguntou, sem muita convicção, oferecendo a mão para Ronaldo, que ao tocá-la sentiu de pronto o quanto estava banhada de suor — Me segue, por favor — ele pediu, desatando a mão e se dirigindo para a porta da cozinha com Ronaldo o seguindo, ainda que bem hesitante.
Já no pátio do albergue, enquanto esperava Márcio Antônio, que estava urinando um pouco distante, no tronco de uma árvore, Ronaldo sentiu a noite um tanto gelada, apesar de estar em pleno mês de janeiro. Olhou para o alto, rapidamente, observando o céu, límpido, com uma lua cheia brilhante e algumas poucas nuvens que tentavam escondê-la.
— Às vezes, prefiro mijar aqui fora… — Márcio Antônio surgiu ao lado de Ronaldo, terminando de ajeitar a braguilha da calça jeans surrada enquanto apontava o albergue com a cabeça — Do que usar esse banheiro imundo aí de dentro.
Ronaldo não sabia o que dizer.
— Como você está, cara?
Márcio Antônio questionou genuinamente preocupado, conforme apoiou uma das mãos sobre os ombros de Ronaldo, que apenas conseguiu responder com um aceno positivo da cabeça à medida que olhava o outro, de soslaio, extremamente desconfiado.
— Acho que te devo desculpas pela forma como agi no nosso primeiro contato, né? — Márcio Antônio abandonou os ombros do novo amigo e recuou alguns passos, começando a esfregar as mãos, uma na outra, com muita força, olhando para os lados, como se estivesse buscando algo — Sei que fui um entrão, um ansioso e um mal-educado. Peço desculpas mesmo, cara.
— Não… Não precisa…
— Mas é claro que sim — Márcio Antônio voltou a se aproximar de Ronaldo — Quantos anos você tem?
__ Dezenove.
— É sério? Cara, eu também. Fiz há dois dias.
Ronaldo não podia acreditar naquela coincidência, por mais idiota que pudesse parecer. Também havia completado seus dezenove anos a dois dias, acabou por informar involuntariamente.
— Então vamos sair pra comemorar — Márcio Antônio, esfregando os olhos, sugeriu depois de ouvir a confirmação de Ronaldo — Somos praticamente gêmeos. Legal.
Ronaldo ensaiou um sorriso, mas se deteve. Não sabia o que estava acontecendo. Parecia que tudo aquilo era um tanto forçado; uma peça de teatro mal ensaiada. E além do mais, sim, sim e sim, aquele garoto não lhe passava o mínimo de confiança, principalmente no estado em que se encontrava.
— Engraçado — ele decidiu mudar o rumo da conversa — Você ainda não perguntou o meu nome.
— Pra quê? Eu já sei! — Márcio Antônio respondeu disparando uma gargalhada logo em seguida — Ro-nal-do, não é isso? — completou fazendo questão de acentuar cada sílaba — Já tinha perguntado aí dentro.
— Espera — Ronaldo se sentiu extremamente incomodado — Como assim fez perguntas sobre mim aí dentro? Essas pessoas não me conhecem e além do mais…
— Cara, relaxa. Só perguntei o seu nome. Nada mais. Não sou idiota ao ponto de acreditar que alguém aí dentro possa dar informações sobre qualquer um. Nem as assistentes sociais, que se acham as donas do mundo e da verdade, conseguem fazer isso — Márcio Antônio fechou o semblante de imediato — E eu não sou nenhum moleque. Quando quero conhecer alguém chego e me apresento, não preciso ficar rodeando.
— É melhor entrarmos — Ronaldo sugeriu.
— Pensei que íamos comemorar o nosso aniversário.
— Amanhã, durante o dia, fazemos isso — Ronaldo replicou sem titubear enquanto se virava para começar a caminhar para dentro do albergue — Esqueceu que podemos ser penalizados se dormirmos fora?
Num gesto abrupto, Márcio Antônio abraçou Ronaldo por trás, com força, pedindo para que ficasse com ele, desabando em lágrimas logo em seguida.
Um silêncio tomou conta dos dois. Ronaldo não sabia como reagir diante daquela investida, até mesmo porque não tinha ideia do que estava acontecendo…
— Escuta — Ronaldo iniciou, reticente, se desvencilhando dos braços do outro — Não vai fazer diferença se comemorarmos o nosso aniversário daqui a algumas horas, certo? Vamos dormir, descansar um pouco…
— Tentei ver minhas irmãs no dia do meu aniversário — Márcio Antônio retomou, entre soluços — Mas o canalha do meu pai, e a ordinária da minha mãe, mais uma vez, nem me deixou me aproximar. Nem mesmo do portão… — com as costas das mãos buscou enxugar as lágrimas, fungando — Mas não deixei barato. Não. Estava furioso e disse poucas e boas praqueles dois.
— Vamos lá pra dentro, Márcio — Ronaldo insistiu — Amanhã a gente conversa sobre isso, se você quiser. Mas vamos realmente lá pra dentro. Daqui a pouco não vamos mais poder entrar…
— Você deve estar me achando um maluco, não é mesmo?
— Eu não estou achando nada…
— Aquele papo que tivemos, sobre alugarmos um quarto, é verdade — Márcio Antônio, os olhos ainda mais vermelhos por causa das lágrimas, sorriu, ou, ao menos, buscou se esforçar — Mas se não quiser, não tem problema, cara. Podemos seguir como amigos, numa boa. Nem todos que vivem nas ruas são maus elementos. Muitos são apenas vítimas que não são culpadas diretamente da própria situação.
Ronaldo deixou os ombros caírem. Estava cansado. Desanimado. Esgotado. E com certeza não estava em condições de amparar quem fosse. E Márcio Antônio lhe pareceu ser uma daquelas pessoas capazes de sugar toda a energia do próximo sem muito esforço.
— Vamos? — ele perguntou já fazendo menção em ir adiante, principalmente depois que enxergou um dos vigias do albergue parado à porta, olhando na direção onde os dois estavam, decerto pronto para repreendê-los.
Esperou Márcio Antônio passar e o seguiu, deixando um ar sopesado lhe escapar dos pulmões, à medida que foi sendo tomado por uma repentina dor de cabeça e um som irritante no ouvido enquanto caminhava.
30 de Julho, 2017, domingo
Gabriela abre os olhos num sobressalto. Diante de si, escuridão. Total. Nenhum filete de luz. Nada. A cabeça dói um pouco, apercebe, enquanto sensações de desorientação e debilidade valsam dentro dela, de um canto ao outro; quimeras que não vão demorar a se tornar míseras sombras até desaparecerem por completo. Ou pelo menos quase isso, delibera, conforme sente a textura do lençol ao tatear a superfície sobre a qual está deitada.
Súbito, é tomada por uma sensação de que está sendo observada, e então, prontamente, senta-se sobre a cama, mesmo sem ter a certeza de o porquê estar fazendo isso, e daí, por alguns segundos, encara o breu à sua frente, à sua volta, lidando com a obstinada impressão de que alguém está lhe vigiando, e que esse alguém não está muito distante.
Dorlan? Provavelmente não. Além do fato de não estar em casa, o companheiro não é nem um pouco discreto ao chegar no quarto ou em qualquer outro lugar do apartamento. Faz questão de anunciar sua presença “esbarrando” em algo e acedendo todas as luzes, ou as que forem possíveis, caso algum cômodo esteja apagado ou na penumbra durante a sua passagem, ou estadia.
Meneando a cabeça, sem pressa, e com os olhos semicerrados, Gabriela, sem titubear, trata de descartar a ridícula sensação de que sua rede neural detectou sinais onde nada existe para ser detectado, não hesitando em afirmar para si mesma que provavelmente ainda está dormindo, mergulhada num sonho qualquer que, por certo, pretende se tornar angustiante, ou que talvez já até tenha se tornado, e agora cogita “terminar o serviço” com o que restou dessa jornada fora do comum, patrocinada por barbitúricos.
Dando de ombros, Gabriela faz menção em voltar a se deitar, mas muda de ideia e, convicta — outra vez sem ter a certeza do por que estar fazendo isso —, olha novamente para frente e para os lados, forçando a vista em todas as direções, até fixar o olhar num ponto exato, mesmo sem ter a noção da exatidão deste ponto, onde acredita, ou decide acreditar, que o “seu observador” esteja. Não encontra nada, exatamente nada que não seja a familiar obscuridade. Mas o que ela esperaria encontrar, não é mesmo?
Que seja! Considera, irritada com a situação, voltando, por fim, a se deitar, praticamente se jogando sobre a cama e fechando os olhos logo em seguida, certa de que não vai demorar a abri-los, já desperta para a realidade. Mas a sensação de não estar sozinha não a abandona. Assim como a débil dor na cabeça volta a se fazer presente. E agora, também, um gosto vagamente metálico na boca.
Os sonhos são uma loucura passageira e a loucura um sonho que dura, não é mesmo?
Uma voz, de repente, rasga a escuridão e Gabriela, no mesmo instante, volta a abrir os olhos.
Aqui estamos, mais uma vez, e você sempre que termina de relatar essa sequência de acontecimentos que ocorreram na chácara, naquela tarde de carnaval, acaba estacionando no mesmo ponto…
Gabriela permanece deitada, decidida veementemente a ignorar por completo esta alucinação, o truque na sua cabeça…
Há quatro meses permanecemos estagnados em um pedaço de caminho sem antes e nem depois. Não podemos e nem devemos trabalhar com conjecturas. Não temos mais o tempo ao nosso favor.
A tal voz prossegue, sem se alterar, começando a deixar Gabriela ainda mais irritada.
Você precisa ir embora. Deixar que outra pessoa cuide do seu paciente…
— Quem está aí? — Gabriela questiona, mesmo se sentindo uma completa idiota, conforme termina de se sentar sobre a cama.
Você devia ouvir o seu paciente. Você devia se ouvir.
Uma voz masculina, Gabriela apura. Um homem — ou a projeção do som da voz de um homem — que está se esforçando para distorcer a própria voz, tornando-a mais aguda, mais delicada; tentando parecer feminina, desagradavelmente feminina.
Em qualquer experiência de sofrimento, existe uma parte de realidade…
Mas onde ele está? Gabriela esquadrinha as trevas no seu entorno, aguçando ainda mais a audição à medida que a dor na cabeça começa a se intensificar.
— Vamos lá — ela desafia enquanto volta a forçar a vista, singularmente focada. Precisa ajustar os olhos. Precisa saber, afinal, onde realmente ele, essa projeção está. Precisa saber quem está falando todas essas coisas.
Silêncio.
— Vamos lá.
Gabriela repete extremamente determinada. As pupilas se dilatando, o gosto metálico na boca aumentando.
Silêncio.
Chega! Ela dá um soco no colchão, indignada, furiosa consigo mesma por estar se permitindo sucumbir às projeções do seu subconsciente. Amanhã pela manhã — sim, ela está sonhando, sim está de noite e ponto — irá conversar com o diretor Orlando — ainda que não seja o seu dia de plantão no hospital —, de uma maneira equilibrada, claro, e sem a presença daquele advogadozinho de merda. Precisa entender o motivo de o diretor ter permitido que Eve, que o desembargador interferisse, não, na verdade, decidisse em tê-la como sua médica, mesmo com a certeza de que ele, Orlando, esteja mentindo. As palavras dele, as palavras dele quando chegou ao hospital, Gabriela se esforça para lembrar, precisa lembrar, pois Orlando está mentindo, mentindo, mentindo…
“As informações que tenho sobre a senhorita foram mais que suficientes para abalizá-la a este posto”,
Isso. Isso. Irá confrontar Orlando. Foda-se.
A dor na cabeça… o gosto metálico na boca… uma dor repentina irradiando pelo baixo-ventre…
— Onde está Dorlan?
Gabriela se questiona, abrupta, levando a mão para o lado, enquanto se dá conta de que o companheiro, sem sombra de dúvida, esteja presenciando seus arroubos, tentando encontrar uma forma de acalmá-la, mas não, ele não está ali.
Você sabe qual o castigo que os deuses deram a Sísifo?
Reações e reflexos absurdos, Gabriela repete e repete e repete. É óbvio que ainda não acordou, ou, então, se encontra num estado não usual da consciência, no limiar entre a vigília e o sonho… É isso: no ponto limítrofe entre vígil e o mundo onírico… Mas… mas… mas já não tinha chegado a essa conclusão?
Vá embora! Pelo amor daquilo que você mais acredita. Você não é bem-vinda aqui. Aliás, nunca foi. Se não fosse pela insistência dele… Enfim, não sei por que eu, nós, que seja, concordamos com isso.
Gabriela fecha os olhos e se prepara para gritar, mas não o faz. Não pode… Ela abre os olhos… Sons, sons, nada mais do que sons inexistentes é o que está povoando o seu subconsciente, projetando de forma direta suas frustrações…
Está pedindo ao seu paciente que confie em você, enquanto você não confia em si mesma. Qualquer psiquiatra de quinta categoria saberia o quão isso se parece: uma aberração médica.
Lucas!… Gabriela constata, um véu sendo desnudado inesperadamente, à medida que se recorda das gargalhadas, do rosto distorcido, da expressão de satisfação e deboche estampados na face de Arnoldo.
O eu-ego não é dono da sua própria casa. A consciência reina, mas não governa.
Não. Não. Gabriela cobre os olhos, sentindo novamente uma vontade feroz de gritar. Eve — Arnoldo — apresenta sintomas de esquizofrenia, um transtorno mental está afetando o seu modo de pensar, sentir e se comportar. Ele perdeu o contato com a realidade…
Você está subestimando a capacidade de pensamento do seu paciente. Você está subestimando a sua própria capacidade de discernimento.
— Não. Não… — Gabriela descobre os olhos enquanto insiste, brusca, dando ordens a si mesma; as sobrancelhas se erguendo, intrigadas — Eve é portador de esquizofrenia com característica paranoide. Não encontrei nenhum indício de que ele seja portador do TDI. Então é óbvio que eu não estive diante de uma manifestação de um transtorno de dissociativo de identidade…
A esta altura do campeonato você deveria estar mais bem informada.
Gabriela deixa o corpo cair violentamente sobre a cama e se encolhe. Sua visão, agora, parece turva, mesmo dentre a escuridão. Formas… ela parece, também, começar a entrever algumas formas…
— Preciso conversar com Eve… com Arnoldo. Preciso.
Suas dúvidas não dizem respeito somente a você, não é mesmo? Elas envolvem os dois. Você e o seu paciente. Afetando-os. E você não se sente confortável com isso. E sabe por quê? Porque é você, somente você quem pode decidir dissipá-las.
Uma voz feminina, calma, macia, mas igualmente autoritária, toma o ambiente, também rasgando violentamente a escuridão, substituindo a voz masculina que se esforçava em parecer mais aguda e mais delicada. Gabriela, de pronto, volta a se sentar e a aguçar ao máximo a audição e a visão, lidando com a dor na cabeça, o gosto metálico…
— Você, ou o que seja — ela dispara aleatoriamente, por todo o seu entorno, enquanto as formas continuam a bailar diante de si — Saiba que tenho plena consciência de que tudo isso está na minha cabeça. Essa abstração pode ser bem real se eu permitir que ela continue…
Sim. Então é por isso que ainda estou aqui?
— Onde você está? — Gabriela exige, bradando ao léu, furiosa por se permitir ficar irritada mais do que deveria. Isso já foi longe demais.
Silêncio.
Estou te vendo e isso basta.
Chega! Gabriela esmurra outra vez o colchão, mudando seu estado de extremamente irritada para obstinadamente beligerante. Isso não faz sentido, esta escuridão, este breu… Se eu não posso ver quem é essa pessoa, a dona dessa voz, essa alucinação dos infernos, como ela pode me ver? É um sonho, claro. É um sonho… Ou talvez não seja… Mas isso aqui, agora, não é nada diferente de um sonho, de um sonho assustador.
Gabriela começa a pensar em um milhão de coisas. Não consegue evitar, por mais que se esforce. Sua mente… Pensamentos vertiginosos… Lembranças… Lembranças… Lembranças… Lembranças de sua infância, de sua adolescência, mesmo não recordando os rostos de seus pais ou como se chamavam… Lembranças de quando conheceu Dorlan. Mas quando e onde o conheceu? E por quanto tempo ficaram juntos? Como assim ficaram? Eles permanecem juntos. Sim… Sim… Gabriela sente-se ainda mais desorientada, perdida… Lembranças de seus pacientes. Cada um deles. Ou nenhum deles?… Lembranças do professor… Ex-professor! Como era mesmo o seu nome? Ela o conheceu na adolescência? Não. Estava na faculdade. Não. Não. Foi na adolescência… Gabriela sente-se mais e mais preocupada, assustada, idiota… Dorlan, Dorlan. Ela é tomada pela absurda sensação de que o companheiro não é real. De que nunca foi real. De que só ouvira relatos, histórias a seu respeito e criou uma vida, falsas recordações em cima disso…
Mas se você, Dorlan, não existe… Eu… Eu também não existo?
Gabriela tenta pensar em coisas boas, mas não consegue. Está chorando… Como assim?… Uma angústia… Uma angústia que não lhe pertence, um sentimento de vergonha e culpa.
Lembranças… Lembranças… A porra de um quebra-cabeça que não consegue montar…
Mas porque isso agora?
Palavras… Jogos de palavras… Ela os jogava com suas irmãs… Não… Com seus irmãos… Mas ela tinha algum irmão ou irmã?… Uma irmã gêmea… Isso… Ela tinha uma irmã gêmea… Mas como se chamava?
Por que essa extensa amnésia? Gabriela se questiona, novamente, completamente enfurecida.
Um entorpecimento… Não… Um formigamento… Não… Uma dor… Isso… Uma dor… Nos braços? Não… Nos pulsos!… Mas não há nada em seus pulsos, Gabriela passeia os dedos sobre eles para se certificar, apesar de a certeza de não os ter lesionado.
Você gosta de si própria?
30 de Julho, 2017, domingo
Com passadas largas e pisando forte, Orlando atravessa o pavilhão da ala vermelha do Hospital das Clínicas Juliano Pereira de Aguiar, até se deparar com o corredor onde está, entre outros, o quarto de Eve. Após estacionar por alguns instantes, mantendo o olhar fixo sobre a porta da câmera do paciente, se volta, brusco, encontrando, alguns passos atrás de si, o enfermeiro alto, truculento, encarando-o; mas não por muito tempo. O homem desvia o olhar dos olhos do diretor, conforme torce as mãos, nervosas, se entrelaçando num movimento que beira a aflição, ao mesmo tempo em que busca a chave que dará acesso ao quarto de Eve.
30 de Julho, 2017, domingo
Você gosta de si própria?
A tal voz repete. É uma voz feminina… Decerto… Gabriela constata, um resquício de hesitação.
Algumas vezes a vida pode ser agradável, mas em outras, se torna insuportável. E ai, quando você não consegue mais encarar sua própria imagem no espelho, o que resta fazer?
É uma voz feminina. Sim. Sim. Sim. Definitivamente a voz não é masculina e não está tentando parecer o que não é…
Você sabe, Gabriela…
A voz… a voz diz o seu nome, Gabriela, Gabriela, pela primeira vez… Um timbre… um timbre tenso… uma pronúncia gradual…
O Transtorno Dissociativo de Identidade geralmente é causado por um grande trauma sofrido pela pessoa ainda na infância. Em muitos casos, esses eventos traumáticos são fruto de abusos sexuais físicos ou psíquicos…
Gabriela respira fundo, engole em seco, meneando a cabeça, entre perplexa e alarmada. O timbre dessa voz… um timbre tenso… uma pronúncia gradual… Mas, porque está se importando com a porra dessa voz?
Estamos tentando sobreviver num mundo de loucos. Estamos cansadas, desgastadas, vazias…
Gabriela se sente corar. Uma súbita e inexplicável vontade de se ver a assola, ao mesmo tempo em que não se sente como ela mesma, e isso a deixa ainda mais irritada e agora, também, sem sombra de dúvida, intimidada, completamente intimidada.
30 de Julho, 2017, domingo
Doutor Orlando estaciona alguns centímetros adiante da porta que acaba de ser fechada atrás de si. Circunspecto, observa Eve deitado, os olhos no vazio. Balançando a cabeça, bem, bem devagar, caminha, então, com gestos lentos e ponderados, até a cabeceira da cama, onde, ao chegar, examina, de pronto, as pupilas do paciente, constatando que ele se encontra numa profunda e esperada apatia.
— Arnoldo. Desembargador. Lucas… Eve… — Orlando diz, com visível desprezo, mas também carregando na voz um resquício de comiseração — Seja qual for o nome que queira usar, seja por qual motivo for, culpa, homenagem ou medo, nunca deixará de ser você mesmo… — ele suspira, ao tempo que se inclina para baixo, mantendo tão somente uma mínima distância entre o seu rosto e o do paciente — Ao menos por enquanto.
Orlando se ergue e após mirar Eve por um longo instante, fala, num tom de voz autoritário, emoldurado por um semblante impassível:
— Depois que o primeiro véu vai ao chão, é uma questão de tempo para que os demais o acompanhem. E a partir daí, quando passamos a treinar os nossos olhos, notamos que eles se recusam a aceitar qualquer tipo de venda — erguendo as sobrancelhas, dá um tapinha no braço do paciente, relaxando, em seguida, os músculos da face — É claro. Mas isso não se aplica a você.
30 de Julho, 2017, domingo
Gabriela está pingando de suor. Sim. Mas também está sentindo ondas de frio emanando de um ponto específico, um ponto que não está muito distante de si… na verdade… na verdade…
O outro desempenha sempre na vida de um indivíduo o papel de um modelo, de um objeto, de um associado ou de um adversário…
Essa voz… essa voz…
Quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir…
Essa voz… essa voz…
Se convence que os mortais não podem ocultar nenhum segredo. Aquele que não fala com os lábios, fala com as pontas dos dedos: nós nos traímos por todos os poros.
Essa voz, por incrível que pareça, é a sua! Gabriela conclui, sentindo-se como se estivesse embaixo d’água, incapaz de se mover rumo à superfície. No mesmo instante, como num estalar de dedos, a escuridão se dissipa e ela sente a visão enturvar, efeito que não se prolonga por tanto tempo, até que, à sua frente, a imagem nítida de um quarto individual, de 3,20 x 3,20, se forma, trazendo consigo, também, imagens de um pequeno sofá, um criado mudo e uma cama de solteiro, onde está deitada.
Gabriela fecha os olhos. Não, não. Não pode ser. Ela mantém os olhos fechados, a respiração pesada, a cabeça balançando em negativa.
Precisamos evoluir. Eu quero te ajudar e para que isso aconteça você precisa me ajudar. Há quatro meses permanecemos estagnados em um pedaço de caminho sem antes e nem depois.
Gabriela abre os olhos. É o quarto de Eve. Sim. É o quarto do paciente Eve.
Então se apresente. Se mostre
Uma súbita sede a assola ao mesmo tempo em que dores musculares trituram suas costas, suas coxas…
Uma cadeira surge não muito distante… Ela está ocupada… Gabriela sabe que está ocupada, apesar de se recusar a olhar na sua direção.
Vamos, Gabriela. Conhecer a sua própria escuridão é o melhor método para lidar com a escuridão dos outros.
Há uma mulher sentada nesta cadeira… Uma estranha? Não… Não… Gabriela semicerra os olhos, a despeito de hesitar em mirá-la… Essa mulher… Essa mulher… Está sentada, pernas cruzadas… É uma estranha, com certeza, mas também tem a impressão de conhecê-la…
A tal mulher, a tal imagem a encara, um olhar fulminante.
Quem é você? Gabriela pergunta, ou julga ter perguntado, pois nenhum som escapa de sua boca. Há um silêncio absurdo em tudo e em todos os cantos.
A mulher, a tal mulher, tem os cabelos louros, curtos, bem cortados, e seu semblante, antes furioso, agora, segue relativamente inexpressivo; seu olhar, absorto, amargurado, é acompanhado de um vinco vertical entre as sobrancelhas; ao redor da boca, linhas proeminentes, um tanto recuadas; as maças do rosto, menos definidas…
Gabriela se sente incomodada. Extremamente incomodada. Não sabe o motivo, mas não quer continuar olhando para essa mulher, não quer… E por quê?… Mas ela a fita mais uma vez… A mulher… Um rosto simples… Não. Não podemos compreender o mundo pela racionalidade, não podemos… A mulher… Um espelho… Isso… Mas não pode ser. Não pode ser…
Gabriela sente dificuldade em respirar…
Um espelho… A mulher diante de si…
Não podemos compreender o mundo pela racionalidade, não é mesmo?.
É ela! Sim. Gabriela constata, assustada, nervosa. A tal mulher, a tal imagem… É ela, Gabriela… Mas… Mas… Uma versão… Uma versão madura de si própria. Sim… Mas… Mas…
O paradoxo curioso é que quando me aceito como sou, então eu mudo.
Gabriela abre os olhos. Não. Tem a impressão, a quase certeza de que já estavam abertos, bem abertos, e em questão de segundos, um nanossegundo talvez, percebe, apesar de não ter a mínima noção de como foi parar ali, que está de pé, próxima à cama em que Júlia Mathias se encontra deitada…
Um tubo? Sim. Há um tubo acoplado a um respirador artificial que também está acoplado a um monitor conectado ao peito de Júlia, que se eleva espantosamente lento. O pescoço e as pálpebras estão inchados…
Gabriela fecha os olhos, um gesto quase involuntário, e daí entreve Júlia, não, na verdade não pode afirmar ser Júlia. É uma silhueta feminina à sua frente. Sim. Porém, nada, além disso, dessa imagem embaciada, que sua visão oferece. A mulher, a figura, está terminando de enrolar uma corda na grade de metal que fica na parte superior do portão da garagem, possivelmente de onde mora, até se que se deixa deslizar após passar a outra extremidade em volta do pescoço.
Ela implora por socorro…
Precisa ser resgatada…
Nada neste mundo é perfeito. Nenhum sofrimento ou angústia pode durar para sempre.
Gabriela abre os olhos. Júlia permanece deitada, adormecida. Há um tubo acoplado a um respirador artificial que também está acoplado a um monitor conectado ao peito dela.
Qual foi a percepção de Júlia Mathias antes de tomar essa decisão? Por que não lutou? Antidepressivos e antipsicóticos? Transtorno psiquiátrico? Família disfuncional? Relacionamento abusivo? Ou será que foi somente a pressão do caso do paciente Eve que a empurrou para esse abismo? Gabriela pondera, se questiona, ainda que se sinta incrível e improvavelmente calma.
“Sou o marido da Júlia, Infelizmente a senhora não poderá falar com minha esposa… Ela está na UTI”.
“Como?”
“Júlia tentou o suicídio”.
Gabriela engole saliva enquanto recorda as palavras exatas e cortantes do marido de Júlia, ao mesmo tempo em que tem a estranha sensação de que aquelas mesmas palavras haviam penetrados os ouvidos de outra pessoa, de uma pessoa adormecida…
— Doutora?
A voz de Júlia, terrivelmente lenta, se faz ouvir conforme levanta a mão com extrema dificuldade, ao tempo que Gabriela se apressa para sustentá-la.
— Doutora…
A pressão dos dedos de Júlia sobre os de Gabriela se acentuam.
— Poderia ter sido eu…
O sinal sonoro do monitor se amplifica e Gabriela, hesitante, aproxima o rosto ao de Júlia para tentar entender o que ela está dizendo. Contudo, inexplicavelmente, é a sua própria face que encontra diante de si, com os olhos abertos, as pálpebras inchadas e o globo ocular parcialmente injetado de sangue.
Gabriela recosta a cabeça no sofá. Sente alguma coisa, alguma coisa roubando seus sentidos, deixando tudo suave, lento, num tênue silêncio… De repente, uma calma, uma súbita calma toma conta de todo o seu ser… Sim. Sim. Seja lá o que isso possa significar, está se sentindo mortalmente calma…
O Pondera e seus efeitos… Os barbitúricos que ingeriu…
Inesperadamente, um som… A merda de um som… Um som que lhe parece familiar, mas distante…
Não. Ela não vai sair dali. Não vai abandonar esse instante de quietude que a muito custo conseguiu impor à sua consciência, mas a porra do barulho segue e vai se tornando intenso, intenso…
Mas que merda!
O celular… Sim. A porra do celular segue tocando, ininterrupto, e Gabriela, instintivamente, tateia o sofá; primeiro próximo de onde está sentada e em seguida estica o braço, o corpo, a fim de encontrá-lo. Nada. Ato contínuo dá início a uma busca auditiva: o som, percebe, está vindo do quarto. Ela dá um salto do sofá e a passos rápidos alcança o cômodo, mergulhando sobre a cama, tateando, tendo a certeza de que o celular foi deixado ali…
O som cessa, por alguns instantes, porém, logo volta a se fazer presente e Gabriela, então, se entrega a uma nova busca até que, por fim, encontra o famigerado aparelho sob o travesseiro, local que acredita ter verificado há pouco. No visor, o número do telefone da doutora Júlia Mathias. Antes de atender, se sente completamente invadida por uma sensação, um pressentimento angustiante.
— Alô?
— Doutora Gabriela?
A voz do marido de Júlia, como era de se esperar, entretanto, Gabriela é tomada pela repentina e absurda impressão de que a voz do outro lado lhe é bastante familiar.
— Doutora Gabriela?
Sim. Sim. Esta voz não é a do homem que lhe dera a notícia da internação de Júlia… Não é. Não é… É uma voz familiar, e ela pode ouvir, sim, sim, ela pode ouvi-la dentro da sua cabeça, é uma voz familiar… Só não está conseguindo distingui-la…
— Doutora Gabriela a senhora está aí? Doutora Gabriela?
— Sim… — Gabriela responde, hesitante, mesmo sem saber o porquê ao tempo que sente um gosto metálico na boca e a cabeça sendo tomada por uma dor excruciante — Como a Júlia está? — questiona imediatamente, uma reação quase involuntária. Não consegue se conter. A própria respiração flutuando ao seu redor.
— Infelizmente, doutora, ela não resistiu.
26 de Julho, 2017, quarta-feira
Após inserir algumas anotações no bloco que traz preso a uma prancheta, Júlia Mathias inala com força todo o ar para dentro dos pulmões, ao mesmo tempo em que empurra a cadeira para trás, se levantando e se dirigindo de pronto para a saída daquele quarto localizado no Manicômio Estadual para insanos criminosos. Ato contínuo, pressiona um interruptor fixado à parede e daí, sem demora, vê a porta sendo aberta, e do lado de fora, lhe aguardando, como sempre, um homem alto, um tanto truculento dentro do seu uniforme branco, parecendo fazer questão de sustentar um semblante de poucos amigos.
Médica e enfermeiro trocam olhares dentro de uma mudez absoluta, até que a porta é fechada tão logo a passagem de Júlia. No seu encalço, um silêncio palpável e lúgubre toma conta não só de todo o aposento que deixou para trás, um espaço de 3,20 x 3,20, tornando-o “imenso”, mas também da pessoa, quase uma estátua humana, que está sentada sobre uma cama de solteiro, olhando fixamente para uma janela com grades, cerrada diante si.
— Somos o que pensamos. Tudo o que somos surge com os nossos pensamentos. Com nossos pensamentos, fazemos o nosso mundo.
Manifesta, súbito, uma voz calma, macia, mas também um tanto vacilante, enquanto a imagem de um rosto feminino, os olhos absortos, um vinco vertical entre as sobrancelhas, e com linhas proeminentes mais recuadas ao redor da boca, vai tomando forma no reflexo da janela fechada.
— Meu pensamento sou eu e é por isso que não posso parar de pensar. Sou aquela que me puxo do nada a que aspiro. Sou o tempo que se esgota e só tenho essa existência para ser quem sou — o tom, suave e tranquilo, bruscamente se transforma em um matiz grave, carregado de indignação — Não posso e não vou perder essa guerra. Não cheguei até aqui para nada.
Laura remata, olhando, decidida, para o seu reflexo, conforme acarinha uma folha de papel depositada ao seu lado, sobre a cama.
— Espero poder ser útil a você, Ronaldo. De alguma forma. Ao menos enquanto este curioso fragmento de vida me for permitido.
28 de fevereiro, 2017,
terça-feira de carnaval: 13h30min.
Com o impacto, Ronaldo e o outro homem são jogados para trás e daí, um nanossegundo, não mais que isso, é o suficiente para que Ronaldo perca totalmente a cabeça, partindo para cima do tal homem, atirando-se sobre ele, jogando-o no chão, imobilizando um de seus braços enquanto tenta, com grande dificuldade, dominar o outro, à medida que é fuzilado veementemente por sua vítima com os olhos de um animal atordoado. Ele, o adversário, desfere mil impropérios, ao mesmo tempo em que segue lutando para se desvencilhar, até conseguir apoiar um dos joelhos contra o peito de seu agressor.
Ronaldo é catapultado para trás, quase numa cambalhota, por uma força descomunal. Por um instante, sente uma estranha calmaria, mas que é logo substituída por um misto de sensações absurdas, conflitantes e tenebrosas que acabam por tomar proporções exponenciais. Ele ergue o olhar para frente; suas pálpebras parecem extremamente pesadas. Ao divisar o tal homem se colocando de pé, Ronaldo também o faz, porém, o adversário consegue ser mais rápido e, num salto, naturalmente começa a correr na direção contrária ao seu algoz, acabando por seguir para a beirada da pedreira, para onde ele, Ronaldo, os levara.
O homem, atordoado, ao perceber, por fim, que havia tomado o caminho errado, freia a poucos metros da beirada do precipício, uma escavação deslumbrante de quinhentos metros de extensão por duzentos de profundidade; decerto, ele precisa sair dali, o mais rápido possível, voltar para o seu carro, tentar encontrar o celular e chamar a polícia, conclui, arfando, determinado.
Em poucos segundos, se volta, pronto para enfrentar Ronaldo, convicto de que apelará para o extremo, se for preciso, a fim de conservar a própria vida. Contudo, se depara com o louco correndo em sua direção, uma pedra enorme nas mãos e arremessando-a, sem lhe dar tempo sequer de se desvencilhar… A pedra o atinge, em cheio, no peito, enquanto Ronaldo, parado, ofegante, o observa agitando os braços rapidamente, berrando, um brado que vai mudando de volume conforme seu corpo despenca.
Sem pressa, Ronaldo caminha até a beirada a tempo de ver o corpo se chocar na parte inferior do penhasco.
— Nos vemos no inferno, desembargador.
No mesmo instante, um toque, longe, abafado, de um telefone, o resgata de seu torpor. Ronaldo instintivamente leva as mãos ao bolso da bermuda vermelha que está usando e não encontra o celular, começando, de pronto, uma busca auditiva, conforme segue caminhando sobre os pedregulhos, o chão áspero, captando o som do aparelho cada vez mais próximo.
Ele sabe muito bem quem está do outro lado da linha e chega mesmo a se deleitar imaginando a aflição crescente por detrás do aparelho.
Finalmente, se depara com o telefone que segue chamando, chamando… Ronaldo o observa do alto, sem mover um músculo sequer.
— Sinto muito, meu amigo. Agora é tarde demais.
Artes: Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real, terá sido mera coincidência.
“Apparat Goodbye” – DARK Theme
fonte: Youtube