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Crimes do Coração


Se você está atravessando o inferno… não pare.

Winston Churchill

 

Açudes.

Região Centro-Sul do Rio de Janeiro. 1982.

 

 

A fazenda Serafim não estava muito distante, concluiu Elizabeth ao volante do jipe que dirigia após vê-la despontar a uma distância de 100m, apesar da relativa escuridão proporcionada pela chuva forte e suas muitas nuvens carregadas.

Sem diminuir a velocidade que vinha mantendo desde o instante em que deixara o hospital de Açudes, Elizabeth não demorou muito para alcançar e atravessar a porteira que já estava aberta, avançando logo em seguida por uma estrada de terra, reta, conseguindo divisar ao longe a casa-sede implantada ao fundo de um vale descampado onde um extenso gramado aparecia em primeiro plano.

 

Com uma manobra pouco usual diante de uma chuva que em questão de minutos parecia ter ficado mais densa, Elizabeth estacionou seu jipe à frente dcasa-sede, sem grandes dificuldades, saltando apressada e batendo com força a porta atrás de si, para logo se dirigir à escadaria que dava acesso a uma murada de pedra e a uma cobertura de telhas que tomava conta da fachada frontal da casa.

De pronto, começou a caminhar vagarosa, pouco se importando com a torrente de água que desabava sobre o seu corpo.

Dentro do veículo, no lado do carona, uma mão se estendeu para fora da janela e instantaneamente se recolheu. O homem que ainda permanecia ali, sentado, deduziu o inevitável: não lhe restava alternativa que não fosse a de descer e tentar proteger a si e a maleta que trazia sobreposta às pernas, apostando na agilidade que seus pés podiam lhe proporcionar para alcançar, no menor tempo possível, a cobertura de telhas que surgia à sua frente como uma miragem.

Tirou os óculos e os guardou no bolso da camisa, abraçou a maleta como se sua vida dependesse daquele ato e correu em disparada, passando por Elizabeth igual a um foguete, alcançando, por fim, o ponto de chegada após o esforço empreendido.

Com as roupas e a maleta um tanto ensopadas, devolveu os óculos ao rosto após secá-los com um lenço que trazia praticamente enterrado no fundo de um dos bolsos da calça, e observou a aproximação da jovem que o tinha conduzido até aquela fazenda e sua aparente tranquilidade ao passar por ele, encharcada, com os cabelos molhados e grudados na face, sem dizer uma palavra sequer.

Ela parou em frente à portada principal que era guarnecida em sua lateral esquerda por uma estátua em cerâmica de um cão de guarda, de onde, abaixando-se rapidamente, retirou uma chave para logo em seguida se levantar, se dirigindo à larga fechadura exposta diante de si, onde girou o pequeno instrumento de metal, encontrando certa dificuldade em continuar.

O homem, percebendo o repentino obstáculo, não demorou a oferecer ajuda…

… mas o semblante intimidador que Elizabeth lhe transferiu foi o suficiente para demovê-lo da investida, e enquanto recuava alguns passos, pode observar uma súbita demonstração de irritabilidade de sua anfitriã, que durou até que a pobre porta, quase colocada a baixo, fosse aberta.

Atravessando de imediato o hall de entrada com passadas fortes, Elizabeth transpôs o pórtico de madeira que ficava à sua esquerda e seguiu por um vasto salão, onde, de um lado, partiam oito corredores pelos quais se comunicavam os quartos de dormir, e do outro uma imensa parede toda ocupada por uma pintura que retratava com grandiosidade a visão externa da fazenda Serafim.

Deixando em seu rastro pequenas poças d’água e um silêncio sepulcral, a jovem continuou sendo acompanhada sem vacilar por aquele homem, cuja presença ela havia reivindicado com obstinação irredutível ao diretor do hospital de Açudes depois de ter esbarrado em uma resistência justificável, afinal de contas, iria afastá-lo de seu plantão médico, mas estava decidida, e para conseguir o que procurava não se fez de rogada em usar a posição privilegiada de ser filha de um importante empresário que mantinha referências e amizades nos mais altos patamares da sociedade.

Conforme avançava por dentro da casa-sede, o homem notou que além dele e de sua anfitriã, mais ninguém transitava por ali. Nenhuma viva alma se fazia presente. Uma casa como aquela, com toda sua estrutura, obviamente necessitava de um considerável número de empregados para que sua organização fosse mantida… Mas onde estavam todos?

Suspirou.

Não lhe interessava obviamente saber sobre a administração daquele lugar quando o cerne da questão que o havia arrastado até ali era outro. Onde estava a parturiente que iria atender? A peregrinação pelo vasto salão já estava quase terminando e tinha a impressão de que não chegariam a lugar algum. Será que ainda precisaria atravessar outros cômodos daquela casa? 

Preferiu manter-se apartado de qualquer consideração e continuou a acompanhar Elizabeth, porém deteve-se ao passar em frente a um pequeno cômodo que ficava entre o sexto e o sétimo corredor, onde uma porta, levemente entreaberta, lhe chamou a atenção. Diminuindo um pouco seus passos pode visualizar uma figura masculina, ajoelhada, com a cabeça afundada no apoio estofado de um genuflexório. Estava chorando, com toda certeza.

Tentou observar um pouco mais, contudo teve sua atenção dispersada ao ser chamado pela jovem, que o aguardava em pé, em frente ao último corredor, onde por fim entraram, estacionando na frente da primeira de uma sequência de portas que mais lhe pareceram ser todas iguais.

– O que eu disse lá no hospital, doutor, para o senhor e para o seu diretor sobre não existir uma chance de escolha diante de meu pedido… – Elizabeth girou sobre si e seus olhos e os do médico não demoraram a se encontrar.

Doutor Reginaldo não soube explicar o arrepio que atravessou toda sua espinha naquele instante, mas não evitou a afronta.

– Na verdade, também estava me referindo… – Elizabeth continuou – Pode ser que uma decisão precise ser tomada lá dentro e o meu pedido é para que salve a vida da criança e não a da mãe – ela disse sem titubear, com um sorriso presunçoso surgido no canto dos lábios, assumindo novamente ares de superioridade enquanto abria vagarosamente a porta atrás de si.

Reginaldo ainda permaneceu atordoado por alguns segundos com o que tinha acabado de ouvir. O que era aquilo? Como alguém podia ser tão prepotente?

A porta do quarto estava totalmente aberta, enfim, e a reação atônita que tomou conta de si não poderia ter sido diferente. Há exatos quarenta minutos, quando fora retirado de seu plantão, Reginaldo havia sido informado que uma jovem estava para dar a luz, ainda no começo de seu trabalho de parto, tendo a forte chuva impedido o seu transporte até o hospital.

Não seria a primeira vez que ele executaria um parto domiciliar, apesar da cultura resistente daquela prática que estava mais que arraigada entre os moradores de um município como Açudes, mesmo diante de seus inúmeros esforços em propagar a importância de que um parto feito longe de uma estrutura hospitalar, não oferecia segurança para mãe e nem para o bebê, entretanto, considerando todas essas questões, nada o tinha preparado para encontrar aquela parturiente em um estágio de total desgaste, e quem sabe até já tendo comprometido o nascimento da criança.

Em uma posição verticalizada sobre a cama, uma jovem pendia com a cabeça para o lado e os olhos fechados, com uma aparência de quem havia perdido os sentidos, dando mostras nítidas de fraqueza; seus cabelos louros, colocados para o alto dos travesseiros que amparavam sua cabeça e ombros, estavam emaranhados e molhados, e seus joelhos mantinham-se dobrados sobre um lençol branco graças à interferência de uma mulher que permanecia entre suas pernas e que tão logo se virou ao ouvir o médico chamar por seu nome.

– Que Jesus lhe abençoe, dotô – exclamou dona Antonieta, retornando para a posição em que estava – Vamu! Tem muito trabalho pra gente aqui. Essa criança tá maltratando por demais a mãe…

Reginaldo voltou-se para Elizabeth imediatamente, entregando-lhe um olhar carregado de indignidade e repreensão, o que não a intimidou, mesmo diante daquelas circunstâncias.

– Quem é você, menina? Sempre manipula tudo a sua volta para alcançar seus objetivos? Está conseguindo visualizar o absurdo que está à sua frente? Essa irresponsabilidade? – ele a interpelou sem vacilar, abandonando Elizabeth no corredor para em seguida adentrar naquele quarto sem mais demoras, fechando a porta atrás de si sem esperar justificativas.

Elizabeth engoliu em seco a reprimenda, ruminando o impropério disparado por aquele doutorzinho de merda enquanto tomava o caminho de volta ao salão, um tanto desnorteada e com o orgulho mais que ferido. Logo parou em frente ao pequeno cômodo onde ficava a saleta do genuflexório e rapidamente constatou que estava vazia.

– Onde está esse idiota? – disparou entre os dentes, esboçando uma expressão de descontentamento, continuando a percorrer o caminho de volta para sala principal da casa-sede.

A tempestade continuava caindo sobre Açudes sem dar sinais de que estava perdendo a força. Os relâmpagos cortando os céus e os estrondos dos trovões se intensificando cada vez mais davam a impressão de que as paredes da casa-sede da fazenda Serafim estremeciam, mas nada daquilo incomodava Elizabeth.

Ela estava possessa.

Sua raiva, potencializada, somada à sensação de incapacidade por perceber que não tinha mais total controle sobre a situação em que se encontrava a consumia desesperadamente.

Precisava se acalmar para colocar suas ideias em ordem. Perder o foco era inadmissível e poderia fazer tudo ir por água abaixo.

Começou a andar de um lado para o outro da sala, com a respiração ofegante e os passos firmes. Por onde havia se enfiado o infeliz do Meirelles, questionou em meio ao turbilhão de pensamentos que cruzavam sua cabeça. Fora por causa dele que esse tal médico precisou invadir o seu plano hermeticamente perfeito…

 

– Elizabeth! – exclamou um rapaz que entrou repentinamente na sala, parando junto à soleira da porta – Nem ouvi você chegar – ele completou um tanto temeroso.

Elizabeth voltou-se sem demora e de pronto seu semblante foi tomado por uma expressão de escárnio ao encarar Meirelles ao mesmo tempo em que manteve um autocontrole admirável ao se dirigir a ele.

– Ora, ora, ora… Por onde andou? Não vai me dizer que a dor de barriga ainda está atrás de você? Um belo exemplo que está dando pra sua amada, não? A situação aperta e você se borra todo…

O rapaz baixou a cabeça por alguns instantes, sem deixar a soleira da porta, perguntando num tom de voz quase inaudível se Elizabeth havia conseguido encontrar um médico.

 

– O que acha? – ela retrucou ríspida, apontando para suas roupas molhadas, trespassando Meirelles com um olhar gélido e audaz – Tive que dar um jeito, não é mesmo? 

A notícia pareceu deixar o rapaz um pouco mais tranquilo, tanto que logo tratou de buscar uma cadeira para se sentar.

– A parte mais fácil do meu plano que te restou foi a única que falhou -Elizabeth empunhou o dedo indicador em direção a Meirelles – Vamos rezar pra que tudo não termine numa grande merda onde o único responsável será o senhor. Não sei por que eu ainda me dou ao trabalho de me surpreender com sua incompetência.

– Você está sendo injusta – o rapaz tentou argumentar, pesaroso.

– Injusta?! – ela replicou um tanto indignada, recolhendo o dedo em riste – Injustiça foi acabar de ser chamada a atenção por um doutorzinho de merda, com um diploma de medicina fajuto embaixo do braço, cuspindo sua opinião em cima de algo do qual eu não fui responsável… E por quê? Porque uma parteira tradicional, a melhor que poderia existir por aqui, deveria ter dado conta do recado sem a necessidade de trazer esse individuo que agora está lá no quarto tentando remediar a imbecilidade que essa mulher, arranjada por você, conseguiu fazer.

– Dona Antonieta é a melhor parteira que existe em Açudes, Elizabeth. Quantas vezes terei que repetir que as pessoas as quais pesquisei para chegar até ela foram unânimes em suas opiniões. Não fui inconsequente em relação a isso, até porque a vida de Helena estaria correndo risco.

A postura firme com que Meirelles se defendeu chegou a impressionar Elizabeth, mas por pouco tempo…

– Você é um homem preguiçoso. Não me admiro se apenas uma meia dúzia de pé rapados tenha sido abordada e imprudentemente a primeira mulher que eles sugeriram você acreditou que seria a mais conveniente.

Meirelles se levantou decidido a enfrentar sua interpeladora sem pestanejar:

– Está passando dos limites. Mais uma vez não está sendo justa ao tomar essa posição de mártir diante de tudo isso que está acontecendo – ele se aproximou fazendo o possível para manter o tom de voz circunspecto, quase que segredando o que tinha para dizer – Não esqueça que tanto você quanto eu fizemos o inferno pra separar a Helena do Pedro, e que me enfiei nesse fim de mundo por não ter outra opção, aonde venho mentindo pra mulher que amo e me punindo dia após dia pelo sofrimento maior que irei causar a ela… Portanto, estamos no mesmo barco…

– Podemos até estar no mesmo barco, sim, mas quem precisou assumir o comando dessa canoa quase furada fui eu… – Elizabeth retrucou impassível, quase gritando ao passo em que arqueava uma de suas sobrancelhas.

Meirelles se aproximou ainda mais, lembrando-a de que não estavam a sós naquela casa. Elizabeth, mesmo contra a vontade, precisou reconhecer que seu timbre começava a beirar o descontrole.

– Não vejo a hora de isso tudo terminar e nunca mais precisar atravessar o seu caminho – ela derramou as palavras praticamente rosnando, enquanto trazia o rapaz para perto de si, puxando-o pelo colarinho, diminuindo o pequeno espaço que ainda existia entre os dois – Quis o famigerado destino que nossos interesses se cruzassem porque essa mulher que você idolatra cegamente tentou roubar o meu noivo, e que como todo homem idiota, acabou se deixando levar. Somos cúmplices, sim, diante de tudo que fizemos para que eles se afastassem e para que o Pedro passasse a odiar a Helena, mas não se esqueça de que eu me virei do avesso pra escondê-la aqui, nesse mesmo fim de mundo que você está amaldiçoando, para que o Pedro não descobrisse o filho que a sua queridinha tentou lhe empurrar com o velho golpe da barriga, e que jogaria por terra todo o nosso sacrifício.

Meirelles sempre se sentia incomodado com o tratamento que Elizabeth dispensava a Helena dentro daquela história, e aproveitando aquele momento em que estavam cara a cara, revelando o limite da tolerância de ambos, erguendo o véu de uma trégua que vinha sendo mantida de modo tácito há tempos, disparou:

 

– Não creio que a Helena tenha seduzido o Pedro não permitindo a ele qualquer tipo de defesa ou reação. Na verdade nós dois precisamos admitir, Elizabeth, que nossos parceiros buscaram o que não oferecemos, ou porque não podíamos ou porque não queríamos… Essa necessidade de culparmos alguém pra justificar o egoísmo e o orgulho que nos trouxe até aqui não cabe só à minha Helena… Nós não soubemos amar…

Meirelles baixou os olhos e mirou com veemência o ventre de Elizabeth completamente liso, sem qualquer contorno indicando um possível sinal de gravidez.

– E se pararmos um instante – ele ergueu a vista – Veremos que não é ela que estará dando o velho golpe da barriga, não é mesmo?

– Um derrotado. É o que você sempre vai ser e por nada desse mundo vai mudar, eu sei…

Elizabeth empurrou Meirelles com toda sua força, jogando-o ao chão, preparando-se para continuar a agredi-lo sem pestanejar, porém um grito, certamente o de Helena, ecoou pela casa, surpreendendo-os e fazendo o rapaz abandonar a sala num salto.

Elizabeth respirou fundo, juntou as mãos por alguns instantes, entrelaçando-as com firmeza, e assumindo uma calma aparente, buscou encontrar uma capacidade de tolerância dentro de si há tempos perdida.

Faltava pouco agora.

Caminhou sem pressa pelo salão que a levaria ao corredor onde Meirelles de certo atravessara com passos desesperados, para invadir, com o mesmo afã, o quarto de sua amada.

Não conseguiu controlar o sorriso desdenhoso que lhe tomou os lábios ao imaginar a reação que teria quando enfim tivesse em seus braços o filho de Pedro e Helena.

O vencedor leva tudo

O perdedor permanece pequeno

Ao lado da vitória

Cantarolou um trecho da canção “The winner takes is all”, do grupo Abba.

 

Quando deu por si, já estava perante Meirelles, que encostado à parede do corredor, em frente à porta fechada do quarto, permanecia retesado, quase sem respirar, sendo consumido pelos gritos de sua amada que estavam cada vez menos espaçados, se misturado às vozes de dona Antonieta e até mesmo de Reginaldo, que pediam para que a jovem mantivesse as forças, incentivando-a a dar à luz.

– E se ela morrer?- Meirelles perguntou sem conseguir erguer os olhos, choroso.

Elizabeth odiava a mediocridade. Um sinal imperdoável de fraqueza, de queda, e Meirelles, ali, à sua frente, nada mais era que uma sombra sem energia, sem caráter, despido de seu orgulho… Limitado por uma paixão!

– Trate de se acalmar e não seja pessimista! Deus não seria tão injusto conosco – ela respondeu, mas sem coragem de encará-lo.

– Ele teria todo o direito – completou o rapaz com as mãos unidas, tentando invocar uma oração.

– O que fizemos foi lutar para recobrar o que já era nosso!

Um choro forte de criança foi ouvido.

Elizabeth e Meirelles se entreolharam por alguns instantes, cúmplices, temerosos…

O rapaz, então, tratou de invadir o quarto.

 

*  *  *

A parteira estava terminando de entregar o bebê, ainda nu, à Helena, que nitidamente combalida não demorou a desfalecer.

Meirelles foi tomado por um rompante de horror, desespero, e após soltar um grito angustiante, correu na direção da amada, ajoelhando-se ao seu lado ao mesmo tempo em que começou a acariciar seus cabelos, murmurando seu nome sem parar enquanto dona Antonieta se afastava com a criança no colo, enrolando-a cuidadosamente em uma manta.

 

Elizabeth permaneceu em pé, junto à porta aberta, emudecida, estática…

Será que sua rival finalmente havia morrido?

Não teve vergonha em admitir essa hipótese.

 

Reginaldo não pode deixar de se surpreender com a turbulenta chegada daquele novo personagem, não demorando muito a reconhecê-lo. Era a figura do homem que vira chorando apoiado na saleta do genuflexório. Na verdade era somente um rapaz. Após observá-lo por alguns segundos verificou que era um jovem de não mais que 23, 24 anos a julgar pela sua aparência, e então entendeu o motivo daquele seu desespero quando esteve diante da imagem do Cristo.  

– Acalme-se – Reginaldo pediu, já se aproximando, reforçando sua dedução de que o moço pudesse ser o pai da criança – Ela não está correndo perigo. Está bastante fraca, sim, com uma fadiga extrema, pois seu parto não foi muito fácil – ele ajudou Meirelles a se levantar, sentando-o no pequeno sofá que havia próximo da cama – Vai dar tudo certo. E além do mais, a criança também está ótima. É uma menina linda. Tenho certeza de que vai se orgulhar…

 

Meirelles estancou as lágrimas sem demora ao receber a notícia. Ciúme e raiva tomaram conta de si. Não queria saber nada sobre aquela criança e nem queria conhecê-la. Aquele ser era a prova viva da traição de Helena. Levantou-se abruptamente, afastou-se do médico e saiu do quarto às pressas, tentando conter o asco que já lhe subia à garganta.

 

– Nada demais, doutor – Elizabeth interviu – Uma dor de barriga que o está perseguindo desde que o trabalho de parto da sua esposa começou.

Doutor Reginaldo, permanecendo de costas, ouviu as palavras proferidas por Elizabeth sem querer encará-la enquanto tratou de se aproximar da mesinha postada ao lado da cabeceira de Helena, onde uma bacia ainda guardava um pouco de água. Lavou as mãos e as enxugou em uma toalha que estava jogada ali próxima, tratando de retardar o máximo possível a sequência de suas ações.

 – Preciso voltar ao hospital… – ele se pronunciou, por fim, ainda de costas, franzindo a testa – Não podemos esquecer de que fui arrancado de meu plantão.

Ao se voltar na direção da porta, não encontrou Elizabeth, como esperado; ela estava com o bebê recém-nascido em seu colo, observando cada detalhe, parecendo querer encontrar algum sinal familiar naquele pequeno corpo, deixando Reginaldo impressionado com sua expressão maternal.

– Ela tem um sinal parecido com uma estrela atrás do pescoço, na altura da nuca – ele informou enquanto recolhia alguns objetos espalhados e os colocava cuidadosamente dentro de sua maleta.

– Ela é linda! – Elizabeth balbuciou. Os olhos brilhando, embevecida com aquela aproximação.

Reginaldo se dirigiu até a janela para observar como estava a chuva lá fora e logo foi surpreendido com a jovem lhe tocando o ombro.

– Podemos ir, doutor? – Elizabeth perguntou imponente, após ter devolvido a criança à parteira.

Reginaldo consentiu em silêncio, apenas com um aceno da cabeça, e após recolher sua maleta saíram do quarto imediatamente, atravessando o corredor e iniciando o caminho de volta pelo salão que os levaria até a sala da casa-sede. Antes do fim daquele trajeto, porém,  Elizabeth parou, girando sobre os calcanhares, e encarou o médico, decidida:

– Antes de ir, precisamos conversar…

– Podemos ter essa conversa no caminho – redarguiu Reginaldo, tentando continuar, mas impedido firmemente com uma das mãos de Elizabeth espalmada em seu peito.

– Você deve ter percebido que não falo enquanto dirijo… E o que tenho pra lhe dizer vai precisar de sua total atenção, além de sua compreensão não só como médico, mas como ser humano.

Diante da postura impassível da jovem, ele se deixou levar para a saleta do genuflexório, onde apenas uma imagem dum Cristo crucificado permanecia suspensa defronte daquele móvel. Não havia mais nada. Era o lugar apropriado para uma conversa emergencial onde ninguém pudesse interferir.

– Acredito que devo me desculpar pela indisposição que infelizmente acabei causando…

Elizabeth fechou a porta atrás de si e se encostou a uma parede sem deixar o médico escapar do seu raio de visão.

– Na verdade, se os detalhes pudessem ser revelados saberia que fui tão vítima da situação quanto você… Meu avô e meu pai, como já sabe, são pessoas importantes, patriarcas de uma família tradicional, família esta que não pode sofrer qualquer tipo de exposição desnecessária… E o que aconteceu hoje, aqui nesta casa, onde não posso deixar de agradecê-lo pela sua presteza, deverá permanecer incógnito, de certa forma, e pelos motivos mais óbvios que você possa deduzir.

Dentro do pequeno espaço em que se encontravam não cabia a Reginaldo outra opção a não ser fitar Elizabeth; não que sua intenção não fosse essa, pois jamais iria se permitir baixar à guarda diante da soberba daquela jovem que em tão pouco tempo já lhe inspirava desconfiança e antipatia, entretanto estava começando a se sentir incomodado, sufocado, decidindo, então, manter-se em silêncio, deduzindo que qualquer manifestação de sua parte só prolongaria sua permanência naquele local.

– A jovem que acabou de dar a luz é minha prima – Elizabeth prosseguiu, descaradamente, não se sentindo intimidada.

Sua desfaçatez se adaptava instantaneamente diante de qualquer percalço, e um embuste a mais ou a menos naquela história não faria a menor diferença quando os fins, necessariamente, justificassem os meios.

– Ela e o rapaz que o senhor viu em prantos lá dentro tiveram que se casar às pressas. Ninguém, a não ser eu, soube do verdadeiro motivo: uma gravidez inesperada! De certo essa criança que veio ao mundo, e que vai carregar o sobrenome Albuquerque de Araújo, vai precisar ser reconhecida como prematura… Você entende, não é mesmo? – um sorriso quase obsceno lhe cortou os lábios – Realmente conto com sua discrição, doutor.

Reginaldo pela primeira vez ousou olhar Elizabeth de cima a baixo, sem se importar com sua arrogância e prepotência. Por incrível que pudesse parecer, por um instante, breve, conseguiu sentir pena daquela menina mimada, mas deduziu o quão difícil deveria ser conviver com alguém que acreditava que o mundo girava em torno de suas necessidades.

Respirou fundo e falou com uma voz calma e uniforme.

– Fique tranquila. No que depender de mim o prestígio de sua família não será abalado. Não preciso de mais detalhes. Fiz o meu papel. Nada mais me diz respeito. Só peço uma coisa: a mãe e a criança precisam ir a um hospital. Este tipo de parto não oferece a segurança devida para ambos.

Elizabeth assentiu e abriu a porta da saleta dando passagem para que o médico a transpusesse antes dela, se surpreendendo quando este estacou sob a soleira e lhe dirigiu um olhar nem um pouco hesitante.

– O pobre marido de sua prima… Ele sabia sobre a determinação de que a vida da esposa seria sacrificada caso houvesse uma infausta necessidade de escolha entre a mãe e o bebê? – Reginaldo indagou.

 

Elizabeth devolveu o olhar inquebrantável, não demonstrando qualquer sinal de que fora atingida, retrucando com sua habitual altivez.

– Não acredite que o pobre marido de minha prima seja tão inocente assim, doutor.

Os dois se entreolharam por alguns segundos. A tensão nitidamente pairava no ar, mas aquele insólito diálogo precisava terminar sem mais delongas.

Ambos seguiram o resto do caminho em silêncio até alcançarem a portada principal da casa-sede, onde puderam observar que a chuva ainda caia, mas em uma profusão bem menor.

*  *  *

A manhã de sábado chegou a Açudes trazendo ainda um céu de nuvens bastante carregadas. A chuva já havia estancado e os moradores começavam a sair de suas casas para verificar o que tinha sido danificado e colocar as mãos na massa no que fosse necessário recuperar.

Na fazenda Serafim alguns estragos se faziam notar já na entrada, mas ninguém ainda havia aparecido para remediar a situação. O silêncio permanecia no local como vinha acontecendo já há alguns meses, desde que Elizabeth providenciara tudo para a permanência de Helena. Nesse período, pouquíssimas, ou até mesmo rara, às vezes em que algum empregado aparecera, e naquela manhã, pelo jeito, não ia ser diferente.

Na casa-sede o mesmo silêncio se expandia.

No quarto, Helena ainda estava dormindo e dona Antonieta permanecia em pé, à beira da janela, como se estivesse olhando para um vazio à sua frente, com o semblante macerado, não deixando dúvidas da noite que havia passado em claro. Meirelles, sentado no pequeno sofá, agora arrastado para ficar bem próximo da cabeceira da cama de sua amada, também guardava aquela mesma fisionomia e com os olhos vermelhos de tanto chorar.

O relógio já marcava por volta de 08h30h quando Helena despertou ainda meio confusa, e com uma lentidão mental típica das pessoas que passam várias horas mergulhadas em um sono profundo. Logo que percorreu os olhos em volta, reconheceu o cômodo em que estava e a memória da criança que havia tentado amparar em seus braços na noite anterior aflorou rapidamente, fazendo-a sorrir ao lembrar-se do pequeno rosto da filhinha recém-nascida. Meirelles não demorou em se colocar ao seu lado, amparando-a, ajudando-a a se sentar na cama, procurando manter a duras penas um sorriso nos lábios, tentando esvanecer como podia o semblante devastado. Helena, claro, não pôde deixar de notar a inquietação que pairava no ar e já buscando pela filha que não estava por perto, procurou em dona Antonieta e no noivo alguma explicação para aquela ausência.

 

A parteira não conseguiu encará-la, começando a chorar, o suficiente pra que Meirelles também não conseguisse mais manter a fortaleza que jurara não deixar desmoronar quando fosse dar a fatídica notícia para a noiva que sua filha havia morrido.

– Morta?… Minha filha morta?

Helena se perguntou repetidas vezes. Não podia acreditar na afirmação que o noivo estava lhe dando. Não lhe parecia justo e nem tampouco natural aquele silêncio terrível ocupando o espaço do choro de sua filhinha… Uma grande névoa obscureceu sua consciência e por uma fração de segundos sentiu ter deixado o corpo até que um último suspiro de esperança tomou conta de si. Certamente tudo aquilo não passava de um engano ou quem sabe ainda não havia realmente acordado…

Voltou a encarar dona Antonieta e a Meirelles, mas infelizmente não encontrou a resposta desejada e a aflitiva realidade tomou conta de si, derrubando-a num pranto incontrolável ao mesmo tempo em que tentou se levantar da cama, pedindo entre soluços para ver a filhinha, pois precisava segurá-la, orar por ela, lhe dizer adeus…

Meirelles a abraçou carinhosamente, sentindo-a desmoronar em seus braços.

 

*  *  *

 

O motorista do táxi olhava pelo retrovisor admirado com o silêncio daquele bebê deitado no colo da mãe, no banco de trás de seu carro. A felicidade estampada no rosto da jovem que o carregava com um cuidado extremo, era contagiante, e ele não tardou em se manifestar, um tanto reticente.

– Desculpe, mas a senhora é bastante sortuda. Minha esposa teve três filhos e todos eles deram um trabalho danado. Nunca vi aquelas crianças desse jeito. Quietinhos, tranquilos… A senhora deve agradecer a Deus por essa criança. É menino ou menina?

– É uma menina. Uma menina linda – respondeu Elizabeth com um sorriso rasgando seu rosto e os olhos brilhando, não deixando de admirar a pequena cuidadosamente aconchegada em seu colo.

 

**********

  • MUITO AMOR, Fagner

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