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A Escudeira – Novos Rumos

Quatro anos depois

Kaira matou o oráculo de Gudwangen à sangue frio. E aquela imagem ainda lhe atormentava noite após noite. Depois daquilo fugiu do vilarejo sem deixar vestígios e encontrou nas densas florestas de Bartingan um lugar ideal para viver, longe de tudo, longe de todos. Mas ela desencontrou-se com a sua fé. Já não acreditava nos deuses e também não retomara a sua fé católica. Sua vida mudou. Suas estratégias obrigaram-se a tomar rumos caóticos e necessários. Mas a sua bravura viking ainda prevalecia e a sua destreza no manuseio da espada, do arco e flecha e do machado estavam mais aguçadas do que se possa imaginar. Enganá-la? Passá-la para trás? Disso ninguém seria capaz. Aquela menininha católica e serelepe de cabelos vermelhos que, inocentemente, encontrou uma tartaruga indefesa na beira do mar e levou-a pra casa já não existia. Aquela guerreira e escudeira viking que passou por maus bocados em Gudwangen tão pouco. Agora ela era apenas Kaira, a escudeira. Livre. Lutando para sobreviver em uma terra rodeada de cristãos querendo dominar o mundo.

Em meio a enorme e sombria floresta de Bartingan havia uma pequena cabana feita dentro do tronco de uma grande árvore que ficava escondida e camuflada em meio às outras, não chamando atenção e nem sendo notada por ninguém que ousasse cruzar àqueles caminhos. Era naquela singela e tímida cabana que Kaira estava vivendo, desde que escolheu a solidão da floresta como seu novo lar. Certo final de tarde ela estava preparando a carne de alguma caça para seu próprio consumo, quando foi surpreendida pelo barulho estrondoso vindo do lado de fora da cabana. Ficou paralisada por alguns instantes, mas logo teve alguma reação. Correu e se jogou em cima da cama de paus, rolou para o lado e caiu entre a mesma e a parede alcançando seu machado que estava escondido preso ao lastro. Segurou-o firme. Ela escutava gritos, barulho de espadas e o relinchar de cavalos do lado de fora. Seguido disso ouviu um grito pedindo por socorro. E tudo silenciou. Um silêncio profundo e amedrontador. Um sentimento de medo tomou conta de Kaira, algo que ela não sentia há muito tempo. Levantou devagar agarrada firmemente ao seu machado e foi olhar pela fresta da janela da cabana. Viu um cavalo caído ao chão entrelaçado pelo que parecia ser uma carruagem e um jovem jogado ao lado, estirado ao chão. Com cuidado abriu a porta para poder visualizar melhor o que estava acontecendo ali. O jovem rapaz estava de bruços, desacordado e ensanguentado. Correu até ele e se agachou próximo sujando-se na terra preta que tinha naquele lugar. Aferiu a pulsação e, ao perceber que ele ainda estava vivo, deu uma suspirada aliviada. Com dificuldade arrastou-o para dentro da cabana e o colocou em cima de sua cama de paus não se importando se ele estava sujo.

O jovem vestia uma armadura de guerra bem conhecida de Kaira. Carregava um escudo de carvalho e uma espada. Ele era um viking. Mas de onde e o que estava fazendo naquela floresta ela só saberia mais tarde. Kaira, cabelos de fogo, ainda retornou para fora da cabana, tomando todo o cuidado possível para que ninguém a visse, e ajudou o pobre cavalo que estava preso na carruagem. O amarrou próximo da sua cabana e voltou para dentro. Quando retornou encontrou o jovem guerreiro viking e ferido se contorcendo na cama. Munida de algumas ervas que tinha posse, Kaira ungiu um pedaço de pano em uma pasta medicinal que ela tratou de fazer com uma mistura de plantas e limpou cuidadosamente o rosto ferido do jovem. Abriu calmamente sua armadura e ficou espantada com os desenhos que cobriam todo o tronco frontal daquele guerreiro. “Deve ser um grande viking de suas terras”, pensou ela. Estendeu o braço segurando o pano com a pasta medicinal para passar nas feridas corporais do guerreiro viking, mas foi surpreendida com a mão do jovem segurando firme o seu punho e um belo e encantador par de olhos azuis como o céu fitando o seu rosto.

“O que pensa que está fazendo?”, perguntou-lhe o jovem.

“Eu.. eu só quero ajudar.”, respondeu Kaira quase hipnotizada com aquele olhar que parecia querer lhe devorar.

“Fala meu idioma?”, perguntou o jovem se desvencilhando daquela mulher com cabelos de fogo.

Kaira se levantou e parou de pé diante da cama agarrando novamente seu machado. O jovem, com extrema dificuldade, se sentou ainda sentindo as consequências do revés que tinha sofrido.

“Minha cabeça dói, onde estou? Cadê meu cavalo? Quem é você? Você sabe quem sou?”, ele emendou uma pergunta atrás da outra.

Kaira, notando que não sofria nenhum perigo, largou seu machado, ergueu as mãos em sinal de paz, e sentou-se na cama ao lado do jovem guerreiro ferido.

“Você está na floresta de Bartingan…seu cavalo está amarrado ali fora, eu o tirei debaixo da carruagem…”

Kaira então estendeu a mão para o jovem encarando seus olhos azuis.

“Eu sou Kaira…apenas Kaira…e a propósito não sei quem você é. Pra mim apenas alguém machucado que precisava de ajuda”, disse ela.

O jovem guerreiro ferido sorriu debochadamente baixando a cabeça. E então segurou firme a mão de Kaira também encarando seu rosto.

“Odinsheir Lodbrok, ao seu dispor”, respondeu ele para surpresa da jovem.

Odinsheir Lodbrok era descendente do famoso viking Ragnar Lodbrok. Ele era filho de Hvitserk, um dos filhos de Ragnar com Aslaug. Sua mãe era uma camponesa qualquer de um vilarejo saqueado pelos pagãos comandados por Hvitserk.

Kaira realmente surpreendeu-se com aquela revelação. Odinsheir, embora ferido, contou sua saga e, na medida que foi recuperando sua lucidez, também reconheceu a jovem Kaira.

“Eu tô sabendo quem você é, Kaira. Você é a famosa escudeira que assassinou o oráculo de Gudwangen. Kaira, cabelos de fogo, não é mesmo? Correm boatos por toda a rota do nosso povo de que você se tornou o novo oráculo”. Disse Odinsheir.

Kaira também surpreendeu-se com aquelas palavras. Jamais imaginou que isso fosse parar na boca do povo. Ela ser um novo oráculo, isso não poderia ser verdade. Tratou de mudar de assunto e foi cuidar das feridas de Odinsheir. Após isso terminou de preparar a carne da caça de mais cedo e ambos comeram, cada um contando como foram os seus últimos dias.

Adormeceram. Kaira cedeu sua cama para o jovem guerreiro ferido e ficou lhe admirando pegar no sono. Aqueles olhos tinham algo especial, algo diferente. Pois enquanto ele contava dos seus momentos mais brilhantes e de bravura durante a refeição eles eram de um azul cintilante que ela nunca tinha visto. Mas quando ele falava dos maus bocados que passou eles se tornavam um azul escuro, ou como Kaira mesma denominou: um azul tormenta.

O dia amanheceu cinzento nas florestas de Bartingan. Kaira despertou assustada do seu sono na rede de bambu quando não viu o jovem deitado. Agarrou seu machado e, devagar, abriu a porta da cabana. Odinsheir trançava a crina do seu cavalo e o acariciava vestindo um longo agasalho de pele de lobo. “Parece estar melhor”, disse Kaira baixando seu machado. O jovem guerreiro se virou sorrindo. “Graças aos deuses. E, claro, aos seus cuidados, escudeira.”

“O que pretende fazer?”, questionou Kaira.

Odinsheir falou baixinho algumas palavras junto ao pé do ouvido do seu cavalo e, com extrema dificuldade no andar, se aproximou da mulher de cabelos de fogo que lhe socorreu na noite anterior. Parou à sua frente e lhe encarou sorrindo. Seu olhar e seu sorriso causavam um desconforto em Kaira, algo que ela jamais tinha sentido.

“Eu não queria. Mas preciso ficar mais um ou dois dias para me recuperar. E depois seguirei meu caminho. Espero que os cristãos não tenham encontrado a vila de rei Freddo. Vou me juntar à eles e, juntos, vamos reunir um grande exército viking para invadir o vilarejo de Bartingan…”, disse Odinsheir.

O jovem guerreiro apertou o punho com força e torceu como se tivesse enforcado algo ou alguém. “…e depois eu quero pessoalmente ter em minhas mãos o sangue daquele maldito rei Sergei…”, complementou ele.

Kaira o olhava com um misto de admiração e espanto. Seus olhos azuis cintilantes se arregalaram e a encararam. Ele sorriu. “…e eu adoraria ter a companhia da mais famosa escudeira da nossa rota viking…e quem sabe, do mais novo oráculo ao nosso dispor.”, finalizou o guerreiro viking.

Os dias passaram. Kaira e Odinsheir criaram um grande vínculo, uma amizade capaz de ultrapassar barreiras, como se aquelas duas almas já se conhecessem de outras vidas. E a amizade transformou-se em um sentimento maior, fazendo inclusive, com que Kaira retomasse aos poucos a sua crença pelos deuses.

Certa noite de intensa neblina cobrindo toda a floresta de Bartingan, Kaira acomodou-se sentada em uma rocha próxima ao riacho de águas cristalinas que cortava a floresta. Fixou seu olhar naquelas águas gélidas e pôde ver nitidamente sobre as mesmas a figura do oráculo que ela assassinou em Gudwangen. Mais atrás, em meio à alguns arbustos, Odinsheir a observava esbanjando seu sorriso largo de dentes brancos como a neve e seu olhar cintilante. Ele viu quando Kaira levantou-se de onde estava e caminhou em direção ao riacho sequer se importando com a água gelada que molhava seus membros. Odinsheir fez menção de ir até ela, mas uma força maior o impediu, pois aquele poderia ser o sinal que ela tanto precisava para retomar o seu rumo.

Em meio ao riacho, diante da visão do oráculo e coberta por aquela densa neblina, Kaira abriu os seus braços, ergueu a cabeça para o alto e fechou os olhos. Odinsheir parou de sorrir quando viu a imagem do oráculo se tornar duas vezes maior que Kaira e pôr a mão calejada sobre a cabeça dela.

“Carregar o fardo de saber o futuro de todos você pode ser capaz. Mas antes precisa retomar sua origem. Não sua origem de criança, mas a força e a bravura viking que existe dentro de você. Deixe de lado a sua arrogância e a sua teimosia. Kaira, deixou de ser criança. Kaira deixou de ser uma menina. Kaira agora é uma mulher. Uma guerreira. Uma escudeira. E precisa agir como tal. Precisa honrar os deuses…”

As palavras ditas por aquela figura gigante e de voz trêmula ecoavam pela floresta. O oráculo abria os olhos de Kaira. Ele lhe mostrava o que verdadeiramente ela era. Kaira ajoelhou-se na água na medida em que o oráculo voltava ao seu tamanho normal e sua imagem se dissipava em meio à neblina e a água. Ela chorou. Ela encontrava seu caminho. E isso fez Odinsheir voltar a sorrir escorado no tronco de uma árvore centenária.

O dia seguinte amanheceu cinzento e apático. Kaira saiu de sua cabana e se deparou com Odinsheir vestindo sua armadura e pegando suas armas. Ele se virou com aqueles malditos olhos azuis cintilantes e sorriu aquele sorriso que lhe deixava hipnotizada.

“Estás pronta, escudeira? Eu estou. E vou partir. Você vem comigo?”, perguntou ele.

Kaira não esperava por aquela pergunta e também não esperava ter que se despedir daquele guerreiro. Tão pouco podia se imaginar longe dele. Ficou sem palavras e então ele se aproximou dela, ainda caminhando com certa dificuldade. Pôs a mão sobre o rosto dela e o acariciou. Em um ato involuntário, Kaira fechou os olhos e colocou a sua mão sobre a dele em sua face. Era como se suas almas se tocassem. Como se todos os deuses e deusas os rodeassem e lhes jogassem as mais sinceras bençãos. Foi aí que a mão de Odinsheir percorreu o rosto e se posicionou na nuca, entre os fios dos seus cabelos de fogo. Ele a puxou carinhosamente para perto e a beijou. Odin abençoou este momento. Odin havia planejado este encontro e nada poderia ser diferente.

Kaira, cabelos de fogo, guerreira e escudeira viking da vila de Gudwangen, estava renovada. O que sentia naquele momento era inexplicável. Adentrou a sua cabana, juntou suas armas, vestiu um grosso agasalho e foi até a floresta atrás do seu cavalo, um corcel cor de mel, companheiro de várias jornadas. Odinsheir sentou-se sobre um grosso tronco e a esperou enquanto afiava seu machado.

“Estou pronta!”, disse Kaira montada em seu cavalo.

Odinsheir sorriu. Montou seu cavalo ao lado de Kaira e estendeu seu braço. Kaira segurou sua mão por alguns instantes e sentiu que este era o seu destino. Cavalgaram para além da floresta de Bartingan chegando na estrada de terra batida que servia de rota para os vikings…seus planos eram de chegar à salvo até a vila de Mershei ao norte, onde o rei Freddo governava um grande exército pagão. Se juntariam à eles e reuniriam forças suficientes para combater os cristãos em uma busca desesperada para manter suas tradições e crenças.

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