Terceira noite
Novamente a preparação do jantar marcava o início da noite. E após se satisfazerem com a deliciosa refeição, Dedé e Eneida sentaram-se na sala de estar para apreciarem um licor de sapoti. Comentaram sobre a preocupação de seu João naquela rápida visita de final de tarde. Enquanto isso, Dominica aproxima-se de mansinho, bem ao lado da mãe, a segurar um papel dobrado ao meio.
– Tome, mamãe. É para você.
– Para mim, querida! E o que é?
– Ontem eu fiz outra vez aquela mágica para você voltar logo. Você sabe, aquela com suco de pequi, e depois eu pinto no papel com um pincel de pelo de cotia. Tenho medo que um dia não funcione.
– Ah, meu amor, eu sempre estarei pertinho. Obrigada. Ficarei bem aqui esta noite. Prometo. Bem que você poderia me fazer companhia enquanto pinto o quadro. Que tal?
Dominica balançou a cabeça dizendo que sim e correu para o quarto.
– Ué! O que será que ela foi fazer? – Perguntou Dedé esboçando um sorriso. Eneida ergueu os ombros em sinal de não sei e deu continuidade à conversa:
– Como dizia antes, achei seu João muito preocupado. Falando nisso, ele trouxe mais um lampião para colocarmos na varanda.
– Eu vi, sim, senhora.
– Ele sugeriu que acendêssemos alguns no lado de fora da varanda para assustar os bichos. Não sei pra quê. O gerador está funcionando.
– Até agora está tudo bem. A que bicho ele se refere? Na escura yamí não há bichos por aí.
– Dedé…
– Pois não, senhora, farei isso.
– Mais um lampião é uma ótima ideia. É bom mesmo manter essas coisas longe daqui. Vou aproveitar para pintar um pouco. – Disse Eneida ao levantar-se do sofá.
– Dominica, você vem comigo? – Dominica desceu as escadas trazendo nas mãos um bichinho de pelúcia e um travesseiro:
– Estou indo.
– Onde está Perri? – Indagou Eneida.
– Achei melhor guardar ele. Vai que some por aí. Vou ficar com esse leãozinho mesmo.
Ambas foram para o ateliê. Algum tempo se passou, talvez horas. – Era engraçada uma coisa: ali era fácil perder a noção do tempo. – Bem, Dominica já estava bastante sonolenta. Remexia-se no sofá do ateliê tentando encontrar uma posição melhor para se acomodar. Mas um olho quase fechava de sono e o outro lutava para se manter aberto para não perder a mãe de vista. O silêncio profundo era quebrado pelo débil som das pinceladas sobre a tela. Vez ou outra, Eneida lançava um olhar sobre a menina só para garantir de que estava tudo bem.
– Mamãe, – balbuciou Dominica já cheia de sono – quando o papai chega?
– Não sei. Talvez amanhã. Por que, filhinha? Sente falta dele? – Houve um espaço desconcertante na resposta.
– Não muito.
– Como assim? É seu pai. Deveria estar com saudades.
– Eu sei.
Eneida colocou pousou o pincel e a paleta sobre a mesa. Então se aproximou. Sentou-se ao lado da filha e com um delicado deslizar da mão sobre os cabelos da menina perguntou:
– Aconteceu alguma coisa que você gostaria de falar?
– Nã-não.
– Pode falar. Sou sua mãe. Por que não está com saudades dele? É normal toda criança sentir falta do pai.
– É que…. Não quero falar. Ele é muito bravo. – E ao dizer aquilo, seus olhos se encheram de lágrimas.
– Tudo bem, tudo bem. Quando quiser conversar…. Sou sua mãe e também amiga. Agora deite-se aqui, assim, tente relaxar. Só vou terminar alguns detalhes e já vamos subir. Você quer dormir na minha cama esta noite? – A menina fez que sim, esforçou um sorriso e cobriu em seguida o rostinho com o cobertor.
O tempo passou. Eneida já havia guardado o material de pintura. Antes de subir, olhou pela janela. De súbito uma estranha sensação lhe ocorreu. Parecia que a escuridão tinha se tornado mais densa. Subitamente o gerador parou de funcionar. Por sorte, Dedé havia aceso os lampiões, por mera precaução. Contudo, até a luz produzida por eles parecia ter diminuído. Um vento contínuo pendia os galhos mais finos das árvores. Tudo acontecia ao mesmo tempo. Eneida foi inundada por dúvidas, medo e mais dúvidas, até mesmo sobre sua própria sanidade. E tudo mergulhado em silêncio. Difícil era descrever aquela ausência de sons. Aqueles mais comuns, aqueles que nos fazem ter a certeza de que estamos na vida real, simplesmente desapareceram. Porém, conforme o tempo avançava (como disse antes, era difícil avaliar o tempo naquele lugar) a atmosfera tornava-se mais fria. Sendo a única exceção, o vento, com seu típico som, servia de âncora para Eneida se fixar na realidade. Porém, havia uma melodia que ciciava e que era tristonha. O céu, como das outras vezes, permanecia preto.
“A escuridão me amedronta…” – Pensou Eneida em voz baixa. O frio gelava a espinha, como um aviso premonitório. Eneida olhou para Dominica, que permanecia imóvel, dormindo.
Apesar do medo, ao invés de se retirar para o quarto, Eneida decidiu sentar-se na poltrona. Estava insegura e confusa. Subitamente ouviu um som de pancada. Procurou não dar importância. Associou com estalos da casa. Para evitar que aqueles sons estimulassem algum tipo de alucinação, voltou atrás e levantou-se para carregar Dominica para o quarto. A menina laçou-lhe o pescoço com um abraço, abriu os olhos a vaguearem inconscientes sem nenhum foco. E sussurrou bem baixinho:
– Me solta.
Eneida entendeu que a filha não queria subir. E então disse:
– Filhinha, é melhor subirmos. Está frio aqui embaixo. Vamos para o quarto. – E fitou a menina em busca de alguma resposta. Mas só houve silêncio. Resolveu deixá-la ali mesmo deitada e cobriu-a. Ouviu novamente o som de pancada. Desta vez mais forte. Tinha-se a impressão de algo batia contra uma madeira. Parecia vir debaixo da casa, do porão, talvez? Outra pancada e mais outra. Eneida decidiu averiguar. Pura insanidade depois de tudo que vivenciara.
Seguiu em direção à cozinha a passos cuidadosos. Algo na janela chamou-lhe a atenção. Alguma coisa chocou-se contra ela e a arranhou. Em seguida, Eneida ouviu um ruído frenético, desesperado de bater de asas e, de repente, o canto estridente de uma ave. Tinha certeza de que era o canto de um pássaro, pois, já o ouvira antes. Entretanto, era estranho; assemelhava-se a um grito.
“Aves não cantam à noite. Ai meu Deus; tenho que me concentrar. Não darei importância a nada disso. Contarei até três, viro e subo para o quarto para ficar com a minha filha. Vamos dormir em paz e acordaremos refeitas. Amanhã será outro dia. Isso mesmo. É o que farei agora.” – Ao tornar-se, outra pancada forte. Eneida estremeceu. A força do vento aumentou. Os galhos das árvores chocavam-se entre si. A temperatura caiu, e lá fora, uma neblina súbita e densa começou a engolfar a casa. O medo crescia. Uma estranha intuição conduziu Eneida à porta que levava ao porão. Relutante, tocou a maçaneta. Hesitou. Estava indecisa quanto a abri-la. “Por que faria isso? E se forem ladrões?” – Pensou. Subitamente, à sua esquerda notou uma distorção ondulante, diáfana, como uma tênue fumaça de um fogareiro. Sua silhueta foi tomando uma forma que evocou a lembrança do espírito da mata que Eneida tinha visto na noite passada. Contudo, ao fixar o olhar já não o visualizava mais. O susto a fez recuar. Mas os sons de batidas continuaram. Agora em maior frequência. Decidiu avançar.
Abriu a porta e acionou o interruptor de luz, que não funcionou. Uma débil luminosidade, vinda de um dos lampiões da varanda, atravessava a pequena janela do porão. Havia a sensação de perigo, algo à espreita, pronto para se revelar. O lugar exalava medo. Eneida foi invadida pela impetuosa curiosidade. Agora era uma questão de segurança. Lançou-se, então, com a firme determinação de descobrir. Deu o primeiro passo para descer a escada. A incerteza a fez segurar na parede lateral que era feita de pedras de arestas grosseiras. Concentrando o olhar em direção ao final da escada, Eneida temia que a luz do lampião lá de fora se apagasse. Os degraus a remetiam cada vez mais ao fundo do porão. Parecia mais uma descida ao inferno.
“Será que algum animal ficou preso aqui? É isso! Talvez seja esse o problema e cá estou, pensando em coisas sobrenaturais. Sou idiota mesmo.”
Vencendo as dificuldades do trajeto e seus medos, à medida que se aproximava, Eneida sentia uma leve vertigem. Sua excitação chegou ao auge quando avistou duas caixas de madeira posicionadas lado a lado. O que poderiam conter? Estavam cuidadosamente lacradas. Uma delas exibia um pedaço de plástico que pendia através de uma fresta da tampa. Eneida sentiu vontade de abri-las. Pegou um pé-de-cabra deixado num canto, ali próximo. Segurou-o com firmeza, encaixou na fresta da madeira e forçou para abrir. Neste mesmo instante, ouviu algo que a fez tremer. Um gemido de dor. Alguém parecia agonizar ao mesmo tempo em que arranhava a tampa de uma das caixas. Eneida largou a ferramenta no chão e afastou-se. A curiosidade se esvaiu e foi substituída pelo horror.
Congestionada pelo pavor e respirando opressamente, Eneida foi se afastando pouco a pouco em direção à escada. Antes que pudesse chegar aos degraus, viu formar duas figuras escuras volitantes. Imediatamente o ar tornou-se denso. Apesar de não se distinguir detalhes das duas figuras, um dos espectros estendeu o braço em direção a Eneida que por pouco não perdeu os sentidos. Num esforço sobre-humano, virou-se para fugir dali, mas a porta havia se fechado. Os espectros se aproximaram lentamente de Eneida. De joelhos e sem força, tentou alcançar a maçaneta. Não resistiu e desmaiou.
Não se sabe como, mas ao recobrar os sentidos, Eneida estava em seu ateliê, deitada ao lado da filha, que dormia profundamente. A claridade do horizonte já dissipava a obscuridade da terrível noite. Eneida sentou-se na poltrona. Colocou a mão no rosto e rompeu em choro. Não suportava mais tudo aquilo. De uma vez por todas, teria que decidir se voltaria a tomar os remédios. Tudo o que havia acontecido até então, em seu julgamento, devia ser um sinal de que a saúde não estava bem.
Depois de desabafar consigo mesma, levantou-se e foi até a cozinha. Sentindo-se impotente, tentou certificar-se de que estava tudo em seu lugar, e que a porta do porão estava realmente fechada. Não encontrou nada que evidenciasse que aquilo fora real. Enfim, aliviada, decidiu preparar um café. Isso talvez a fizesse retomar a sensação de normalidade. Abriu o armário, pegou a cápsula de café e ao colocar na máquina, algo chamou sua atenção para a mesa. Sobre ela havia um pequi, aberto pela metade a exibir seu caroço espinhoso. Alguém havia se dado ao trabalho de talhar a fruta cuidadosamente. A lembrança da conversa que tivera com a velha emergiu: “Sua vida parece muito com esta fruta. É dourada, rica por fora, mas por dentro, bem lá dentro, seu coração ficará repleto de espinhos.”
Aquelas palavras pareciam agora fazer sentido. No mesmo instante, o pensamento foi interrompido ao ouvir o estalar da maçaneta da porta do porão. Precipitou-se a olhar e viu que estava entreaberta.
“Será que…”
Vagarosamente caminhou até a porta e ao abri-la cautelosamente, foi surpreendida com a chegada de Dedé e Dominica:
– Bom dia, dona Eneida! – Cumprimentou Dedé com amplo sorriso descansado – Como passou a noite? E você, menina? Não dormiu em seu quarto, hein.
– Bom dia, mamãe!
– A porta do porão…
– Ah, sim, acho que esqueci de trancá-la. Desculpe. Não tem problema. A porta lá de fora fica sempre trancada com um cadeado. Ninguém invadiria o porão assim tão facilmente.
– É… tudo bem. Tudo bem, não, o gerador deixou de funcionar.
– Pedirei para verificarem. – Dedé tocou o interruptor e a luz acendeu. Não disse nada. Eneida manteve-se calada. Para disfarçar a situação, Dedé perguntou: – Pintou até tarde? A senhora parece cansada.
– Nã-não. Só tive uma noite agitada. Não consegui dormir direito.
– Então relaxe. Vou preparar o desjejum. A senhora gostaria de um suco de frutas?
– Dedé, por favor, responda. Por que ainda não temos empregados aqui? Por que você toma conta de tudo? Dominica precisa de uma professora.
– Acredito que o doutor Maximiliano providenciará alguns auxiliares assim que chegar.
– Você há de concordar que estamos isoladas e…
– Sim, senhora. Bem, a menina deve estar com fome. Se a senhora me permitir, vou preparar algo.
– Tudo bem. Fique à vontade.