Quarta noite
As lembranças de Eneida interromperam quando notou nuvens carregadas que cobriam o céu. Mais uma noite escura se aproximava. Teria alucinações desta vez? Pensar sobre tal possibilidade a deixava trêmula. O gerador funcionaria desta vez? Não perdeu tempo e colocou no bolso da blusa uma pequena lanterna. E começou a contar as horas em que o dia seria mais uma vez repelido.
Depois de um dia estranho, a noite chegou. Veio como algo que toma conta de tudo, invade e fica. Lá pelas tantas, completamente insone, Eneida, ainda na sala, tentava disfarçar a ansiedade com um pequeno cálice de licor. Dedé entretinha Dominica no quarto. Após um rápido gole, Eneida notou que os lampiões não tinham sido acesos. A única garantia caso o gerador falhasse. Por via das dúvidas, achou melhor acendê-los. Colocou o cálice na mesa do abajur, caminhou até a porta de acesso à varanda. Ao abri-la, um leve e súbito vento soprou. O susto a fez recuar, mas a necessidade sobrepôs-se ao medo. Quando todos já estavam acesos, uma aura amarelada se projetou para fora da varanda. Além da fronteira da luz, tudo parecia fundido em pretume tumular.
Como que atraída pela estranheza do lugar, Eneida permaneceu ali, atenta, como se a intuição a convencesse a ficar. Foi aí que, de lá do fundo da mata, emerge a silhueta de uma mulher. Eneida temia tratar-se de mais uma ilusão. Apertou os olhos, mas a incerteza permanecia, até que a figura se mexeu. Pelos contornos, dava para presumir tratar-se de uma mulher. “Seria ela novamente? A velha? O que faria aqui novamente?” – Pensou Eneida, temerosa. A figura permanecia parada. Eneida paralisou assim que, aos seus ouvidos, chegaram estranhos sons, murmúrios, que mais soavam como uma triste prece. Parecia vir dela.
Eneida levou as mãos ao colo, juntou forças e tomou coragem. Chegou mais perto. Precisava confirmar se era realmente ela e o que estava fazendo ali. Questão de segurança, não só de si, mas acima de tudo, de Dominica. Engoliu seco, forçou a voz e gaguejou: – Bo-boa noite! – Nenhuma resposta. Só se ouvia a prece contínua. Eneida aproximou-se mais um pouco, até que, enfim, confirmou que aquela era realmente a velha a qual já havia estado lá. Porém, ela permanecia indiferente a sua presença. A prece prosseguia em um único fôlego. De repente, a velha calou e começou a andar. Caminhou no sentido oposto das luzes do vilarejo. Uma estranha força induziu Eneida a segui-la. Seus pés não foram feitos para andar em chão rústico. Mesmo assim, prosseguia sem sentir os galhos secos e folhas a arranharem e perfurarem sua pele. Naquela noite escura, assim como nas anteriores, não dava para enxergar a um palmo a frente do nariz. Eneida logo lembrou-se da lanterna. Sacou-a do bolso, ligou-a. Andou um pouco mais rápido para alcançar a velha até ultrapassá-la. Foi quando jogou a luz bem na cara dela. Sua fisionomia havia mudado desde a última vez que a viu. Traços de extrema seriedade e nada hospitaleiros, pele profundamente sulcada. Cabelos desgrenhados, presos em forma de coque. Trajava roupas gastas e desbotadas. Também calçava sandálias de couro surradas e carcomidas. Seus lábios gretados e apertados, e o olhar fixado em Eneida denunciavam a ânsia de dizer-lhe algo importante. Eneida não se conteve e fez as primeiras perguntas:
– Por que aparece dessa forma? Por que para mim? Quem é você, afinal? Uma alucinação? Uma criação da minha cabeça?
– Você sabe muito pouco sobre a escura yamí. Vim para guiá-la pela noite da alma. E acredite, não será fácil.
– Pare com isso! Já estou apavorada. Nem sei se você é real. É isso! Você é nada mais que a minha crise de abstinência dos remédios, certo?
A velha não respondeu. Eneida prosseguiu:
– Se quiser conversar, converse. Tudo bem, podemos tomar um chá lá em casa. E… e outra coisa… esse papo de noite yamí, sei lá se é isso mesmo…
– Não brinque, mulher. − Interrompeu a velha erguendo o dedo indicador de forma ríspida. − Você não tem ideia do que fala. Não sabe o que é a noite escura.
– Vou embora. Quero voltar para casa, para minha cidade, para o meu mundo na cidade.
– Você precisa saber a verdade. Quem sabe ela lhe traga uma luz. Isso a ajudaria a trilhar as próximas noites escuras.
– Que verdade? Superstição é algum tipo de verdade? Isso é lenda de gente que só conhece mato e bichos.
– Seu marido…
– Se começar a falar de Maximiliano, é bom parar por aí. Lembre-se de que…
– … ele é louco. Fique sabendo que aquilo não é um homem. É uma criatura nojenta que vive fora da realidade, num esconderijo só dele. Foge da luz do dia e vive nas sombras da sua própria mente doentia. A escura yamí fará com que ele se revele. A fúria dentro dele despertará.
– Ele é um homem tão discreto. Fúria contra quem?
– Como é lesa! Pior do que eu pensava. Há tanta contradição em sua alma: um marido que mal conhece e uma filha cuja relação não passa da superfície. Não há fé em sua alma, ânimo, nem tampouco zelo pelo que tem. Como vai sobreviver sem coragem, sem decisão? Só lhe resta o medo, falsas amizades, omissão. Nunca se arriscou por nada. Tudo em nome de uma estabilidade que não existe. Você vendeu a alma para o vazio.
– Olha, nem tente me impressionar com esse monte de insultos. A senhora tem sorte por ser apenas uma velha perdida no meio do mato. Aliás, é algum tipo de cartomante?
– Preocupo-me com almas perdidas.
– Como assim?
– Você é uma delas. Acorde. Desse jeito coloca as pessoas em risco.
– Risco? Sou uma pessoa boa. Além disso, eu sou o que sou.
– Preste atenção: Nada é por acaso. Você será instrumento da natureza. Pode, sim, salvar-se. Terá duas escolhas. A primeira será tornar-se conhecedora da vida.
– Não entendi.
– As noites passarão e os dias renascerão. A noite escura permanecerá com você até atingir a idade de sessenta anos. Esse é o preço do conhecimento pleno. A dúvida e a descoberta andarão de braços dados com a decepção e a glória da amplitude existencial. Até completar sessenta anos o conhecimento pleno revelará coisas que estão ocultas do mundo comum. A dor de saber a verdade lhe consumirá até os ossos. E aí, você ressurgirá, plena e forte, como uma pessoa sábia. Só assim seu grande vazio será preenchido pela felicidade.
– É, até aí…, mas só vou ter isso aos sessenta? Qual é a segunda escolha?
– É permanecer ao lado do crápula do seu marido, sem nenhum tipo de mudança interior, na futilidade e nessa calmaria estúpida. Terá o encantamento necessário para seduzir o homem que acha que ama tanto. Faça sua escolha.
– Não preciso nem pensar. Claro que desejo ficar com o meu marido. Sei que ele é estranho às vezes. mas não importa. Gosto de estabilidade. E você fala assim porque nunca teve ninguém para amar. Pela sua conversa e pelo seu amargor, aposto que nunca se casou.
– Não fui amaldiçoada tanto assim.
– Viu?
– Olha, prometo que não tocarei mais no assunto. Você precisa saber: É uma mulher dentre várias que ele indiferentemente conquistou e descartou da pior forma. Acredite.
– Como sabe disso? Pura inveja sua. Preciso voltar para casa.
– Devo, então, cumprir o seu direito de escolha. Finalmente tive a confirmação de que você é uma pessoa de mente simples, soterrada em sonhos pobres e tristes. Sua escolha já era esperada. Você não é verdadeira nem consigo mesma.
Neste mesmo instante, Eneida lembrou-se do que a mulher do vilarejo havia dito: “Não escolher a segunda opção.” – Tarde demais. Como não escolher a pessoa que ela amava? Como avaliar a consequência de algo tão insólito?
A velha deu três passos atrás, baixou a cabeça, uniu as mãos e começou a entoar uma espécie de oração em voz baixa. Sua respiração tornou-se ofegante, curta e o tom da voz foi aumentando. Era uma língua estranha, incompreensível. De repente, trêmula, com a mão esquerda tirou do bolso do vestido um pedaço de osso. Estava enrolado numa espécie de crina de cavalo cuidadosamente trançada. De seus olhos fechados, dois filetes de sangue escorreram pelos cantos. As narinas dilataram. Da boca, uma bruma saiu e volitou até Eneida envolvendo seu rosto completamente. Isso a fez entrar em transe. A bruma pulsava e Eneida teve visões, como se estivesse mergulhada num arco-íris que oscilava e variava de cores e tons. Aquelas cores pareciam ter vida própria. Formas geométricas, esferas brilhantes, flores que mudavam de cores constantemente, penetravam-lhe na mente. A bruma explorou seus conhecimentos, suas memórias, instintos e emoções. Até que, em meio a tudo aquilo surgiu a figura de Maximiliano. Ele estendeu a mão e ao tocá-la o braço, transmudou numa longa serpente de metal, que se enrolou por todo o corpo e a apertou. Eneida se sentiu sufocada. Depois disso a bruma dissipou. A velha abriu os olhos e disse:
– Sua escolha está feita.